Pesquisadores
querem derrubar tabu e atrair voluntários para estudos clínicos
Malú Damázio
O estudante do último período de medicina João Gabriel Zanetti, de 25
anos, decidiu ser doador após passar pelas aulas de anatomia
Para que um
medicamento chegue até as farmácias ou aos postos de saúde são necessários
vários testes em seres humanos. E embora o número de voluntários em estudos
clínicos tenha aumentado nos últimos anos, conseguir participantes ainda é um
desafio para pesquisadores mineiros, que têm trabalhado para mudar esse cenário
e fomentar o desenvolvimento da ciência no país.
No imaginário de
parte da população, a ideia de ter os efeitos de uma nova droga observados no
organismo carrega uma imagem negativa, de “cobaia”, como explica a coordenadora
do Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital das Clínicas da UFMG, Flávia
Andrade Ribeiro.
“Infelizmente, as
pessoas ainda têm uma resistência com relação a isso, muito porque não conhecem
o aparato de segurança que existe para que uma pesquisa chegue na fase de
testes em humanos”, diz a médica.
Divulgação em
jornais, TV e redes sociais, cartazes pela cidade com explicações sobre
benefícios e riscos de ser voluntário em um estudo e até mesmo o boca a boca
são estratégias adotadas por pesquisadores para atrair mais interessados.
Ainda que muitos
candidatos sejam da área da saúde, Flávia garante que as ações têm trazido
resultados. No Brasil, a UFMG e a Universidade de São Paulo (USP) foram as duas
instituições escolhidas por uma entidade internacional para testar a vacina
contra a zika em humanos.
Só a federal mineira
conseguiu recrutar cerca de 40 pessoas a mais para o estudo e, mesmo após ter
atingido o número ideal, foi procurada por outros interessados em tomar as
doses do medicamento. Ao todo, 138 pessoas recebem três aplicações da droga no
Hospital das Clínicas e serão monitoradas quinzenalmente pelos próximos dois
anos.
Uma das
participantes é a estudante de nutrição Lívia Iannarelli Galvão Alves, de 18
anos, que soube da oportunidade por meio de um cartaz. Ela convidou a irmã
gêmea, Camila, para aderir à causa também. Mesmo que nunca vejam o resultado da
pesquisa, as duas garantem que fazem “por um bem maior”. “Não estou ganhando
nada com isso, mas é algo que faz a diferença para a comunidade inteira”, diz
Lívia.
Abordagem
Atualmente, 35
estudos sobre novos fármacos estão em curso no Hospital das Clínicas da UFMG.
Porém, desde a criação do Centro de Pesquisas Clínicas da unidade, em 2007, já
foram testadas cerca de cem novas tecnologias voltadas para oncologia,
dermatologia, saúde mental e HIV, além de remédios contra os males de Parkinson
e Alzheimer.
Para a aprovação dos
recursos foi preciso que centenas de indivíduos se apresentassem como
voluntários. “Se ninguém participar, não haverá novas tecnologias e vamos
paralisar a produção de novos medicamentos. Temos todo um aparato de segurança,
com comitê de ética e termos de consentimento garantindo o cuidado com o
organismo das pessoas”, explica Flávia Ribeiro.
Vida após a Vida
Engana-se quem pensa
que pode participar do desenvolvimento científico do país somente se estiver
vivo. No programa de doação de corpos para estudos na Faculdade de Medicina da
UFMG, chamado Vida Após a Vida, é possível manifestar a intenção de ser
voluntário ao morrer.
Até o fim de 2018, o
projeto somava mais de 1.500 interessados em deixar o cadáver para estudos na
área da saúde, número que dobrou nos últimos 15 anos.
A aposentada Aglaé
Horta Rodrigues, de 80 anos, se inscreveu no projeto há três, quando leu um
artigo de jornal que falava sobre um professor que havia deixado o cadáver para
a universidade.
“Achei a atitude
dele tão bonita, um gesto de altruísmo. Aí pensei que queria fazer o mesmo com
meu corpo e ajudar a medicina e a ciência”, conta.
Em seguida, ela
procurou a instituição, conversou sobre o programa, foi entrevistada pela
equipe e assinou o termo de intenção. Ao chegar em casa e conversar com o
marido, David Rodrigues, o convenceu também a participar.
O fim da vida chegou
mais cedo para David, cujo corpo já integra o grupo de cadáveres utilizados nas
aulas de anatomia. Ele faleceu aos 79 anos, de insuficiência renal. A família
se despediu ainda no hospital, com uma cerimônia simples. Em seguida,
funcionários da UFMG foram até o local fazer o recolhimento, que não teve custo
para a esposa e os filhos.
Lucas Prates
Consentimento
Nessas situações, os
familiares devem assinar um segundo termo, de cessão do corpo. Caso não
concordem com o desejo do ente querido, é possível avisar a UFMG sobre a
mudança de ideia. Para evitar que isso ocorra, a instituição entrevista os
interessados em fazer a doação e pede que eles conversem com os familiares
sobre a intenção.
A Faculdade de
Medicina recebe cerca de 12 cadáveres e cem manifestações de interesse por ano,
explica o diretor da unidade e coordenador do programa, Humberto José Alves.
“Nos últimos oito
anos, temos visto cada vez mais pessoas dispostas a ajudar. O tabu ainda existe
quando se fala de corpos, mas a divulgação e até mesmo os participantes do
projeto têm ajudado a sociedade a entender o gesto. Agradeço aos doadores e às
famílias”, diz.
Aprendizado
Além de auxiliar os
calouros a entender diferenças e particularidades de cada ser humano e ver como
funcionam as estruturas, o trabalho com os cadáveres também é importante para
que os alunos se acostumem com a morte e estejam preparados para auxiliar a família
dos falecidos.
“É o impacto de
lidar com um corpo que faz as pessoas refletirem sobre a finitude da vida”, diz
Humberto.
Estudante do último
período de medicina, João Gabriel Zanetti, de 25 anos, decidiu ser doador após
passar pelas aulas de anatomia. “O professor falou sobre o programa e percebi
que as opções eram cremar, enterrar ou doar o cadáver. Esta última pode ser
mais útil e ainda ajuda alunos, como fui ajudado”, afirma.
Processo
Antes de ingressar
em um estudo sobre uma nova droga, o voluntário do Centro de Pesquisas Clínicas
da UFMG é informado sobre todos os riscos e benefícios que o medicamento pode
trazer a ele. Além disso, é permitido desistir do projeto a qualquer momento.
Os participantes são
monitorados regularmente pela equipe médica. Em caso de qualquer
intercorrência, a instituição deve fornecer atendimento imediato. Custos com
transporte e alimentação são cobertos pelo Hospital das Clínicas.
Na Faculdade de
Medicina, o projeto Vida Após a Vida, de doação de corpos, também aceita
voluntários. Os interessados devem ligar para (31) 3409 9739 ou 3409 9632, no
período da tarde.
Não há impedimento
formal para o procedimento ou qualquer custo para a família. Porém, a unidade
só recolhe corpos que não passaram por morte violenta ou suspeita de
assassinato.
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