sábado, 23 de janeiro de 2016

SERTÃO BRASILEIRO



  

Manoel Hygino



“Essa coisa de escrever, essa estranha coisa-necessidade de escrever começou com a História. A própria”. Assim começou o prestigioso poeta Ronaldo Werneck, de Cataguases para o Brasil, entrevista ao A União – Correio das Artes, de João Pessoa, cinco anos atrás.
Faço uso do seu pensamento ao ler “Cadernos de Ediclar – Memórias do Brejo das Almas”, de Karla Celene Campos, lançado pela Millenium, em Montes Claros, no final do ano passado, com prefácio de Charles Rodrigues Luís. Para o prefaciador, a autora é exímia amazona das letras, para percorrer grandes distâncias em vigorosas montarias.
Não é fácil emitir opinião sobre os livros de Karla, cuja bibliografia conheço de outras belas cavalgadas. Antes de mais nada, seria lícito estender o elogio a outras autoras mineiras da região. Ali se formou um celeiro de excelentes escritoras para fazer companhia adequada a Cyro dos Anjos e Darcy Ribeiro, que conquistaram – sem favor algum – cadeiras na Casa de Machado de Assis.
Justifica-se a anotação final de Maria Inês Silveira Carlos ao declarar que Karla, graduada em letras pela Unimontes, jornalista pela Fafi-BH, pós-graduada em literatura brasileira e espanhola pela PUC Minas e pela Eurocenter, de Salamanca, “representa a força, a raça e a vitória da mulher norte-mineira”. Por que tão alto privilégio a um dos mais esquecidos rincões do Estado?
A partir de uma personagem popular e querida de Brejo das Almas (cujo nome sensibilizou e marcou ilustres autores), hoje Francisco Sá, Karla oferece um retrato vívido e colorido do burgo em que nasceu e de que Ediclar é representativo. Simples e simplório, mas com desenvoltura e criatividade, tornou-se figura amada em todos os círculos, fazendo poesia e com iniciativas que tocaram a alma da cidade, como a formação da sua primeira escola de samba – a “Estrela Dalva”.
Sob a maestria esfuziante da escritora e com os versos de Ediclar, forma-se uma vívida ideia da cidade, sua gente, velhos e moços, suas tradições, os momentos de alegria e de dor. Karla descreve bem, sem apelar para a sofisticação vocabular. “Iaiá era uma mulher miúda, olhos brilhantes, corpo esperto. Quando a conheci, seus cabelos já revelavam a visita apressada do tempo”, até porque o tempo, esse pintor de cabelos, é incontentável.
O dia não nasce: “Faz pouco mais de uma hora que o dia abriu os olhos”. E há indagações: “Hoje as crianças não têm verrugas como tínhamos... Não existem mais verrugas? Ou não existem mais estrelas? Ou foram as pessoas que perderam o encantamento de contá-las”. “Tanta poluição em todos os céus; tanta luminosidade a espantar a beleza do escuro da noite; tanta falta de tempo para contar estrelas; tanta falta de interesse pelas coisas mágicas do céu. As pessoas não perdem mais o senso... Não escutam, não conversam, não amam, não entendem estrelas... Como Bilac, como nós...”
O livro também propicia pitadas de histórias, da cidade e da região, das famílias que por ali se estabeleceram desde que pedras preciosas foram encontradas a partir de fins do século XVII, princípio do XVIII. Para manter a ordem entre os garimpeiros, o imperador mandando para ali o sargento-mor Jerônimo Xavier de Souza, sobrinho nada menos do que de Tiradentes. Percebe-se que, para este comentário, o espaço precisaria ser maior.

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