Sem função para reservas,
país corre risco de jogar dólares fora
Solange Srour
Nos últimos anos, vários países emergentes acumularam um enorme volume
de reservas internacionais, entre os quais se destaca o Brasil. As reservas
provêm um seguro contra choques negativos que desestabilizam os fluxos de
capitais e podem levar a uma grave crise de balanço de pagamentos e,
consequentemente, a uma instabilidade financeira.
A literatura econômica é repleta de estudos sobre qual seria o nível
ótimo de reservas, o que depende fundamentalmente da tolerância do país aos
riscos externos, do custo de carregar tal seguro e dos efeitos secundários que
o acúmulo de reservas possa gerar na economia. No entanto, as mesmas reservas
podem ser uma ameaça em um país que não consegue controlar o gasto.
Entre 2006 e 2008, o Banco Central do Brasil comprou no mercado à vista
cerca de US$ 120 bilhões e, entre 2010 e 2011, cerca de US$ 90 bilhões.
Obviamente, durante todo esse processo, discutiu-se bastante se estávamos mesmo
adquirindo um seguro ou se estávamos tentando frear o movimento de apreciação
cambial gerado pelo enorme influxo de capitais do momento.
A literatura não traz nenhum tipo de certeza com relação à eficácia das
intervenções esterilizadas no nível da taxa de câmbio, quando o Banco Central
se endivida para comprar reservas, impedindo que a sobra de dinheiro na
economia acabe gerando inflação.
Especialmente após 2010, quando o Brasil possuía um nível de reservas de
US$ 300 bilhões, as intervenções pareciam bastante custosas diante do aumento
marginal na nossa proteção e ao mesmo tempo não pareciam diminuir
significantemente a volatilidade cambial, principal justificativa do Banco
Central na época.
O que pouco chamou atenção dos analistas foi o efeito que tal acúmulo
teve na dívida pública e nas relações do Banco Central com o Tesouro Nacional.
Um aspecto bem conhecido das intervenções cambiais é que elas têm como
contrapartida um forte aumento do estoque de operações compromissadas. Nessas
operações, o Banco Central vende títulos do Tesouro que estão na sua carteira
ao mercado, títulos esses que são de curto prazo e indexados à Selic.
Mas, além da piora do perfil da dívida, existe outro aspecto muito
importante do acúmulo de reservas. A legislação atual trata de maneira
diferenciada os repasses do lucro ou prejuízo do Banco Central ao Tesouro,
resultante da variação cambial das reservas.
De acordo com a regra em vigor, os ganhos do Banco Central são
depositados na conta única do Tesouro em moeda corrente. Já as perdas são
compensadas com aportes de títulos do Tesouro na carteira do Banco Central.
Essa prática levou a conta única do Tesouro a deter mais de R$ 1 trilhão, valor
muito acima do que se encontra em outros países.
Pagamento das pedaladas
Esse caixa, inflado pela valorização das reservas cambiais, acabou de
ser usado para o pagamento das chamadas "pedaladas". Em vez de o
governo pagar gastos atrasados emitindo dívida no mercado, preferiu usar um
caixa construído em grande parte pela valorização das reservas.
Se, em algum momento futuro, as reservas gerarem grandes perdas ao Banco
Central, o caixa do Tesouro não terá que ser usado. Este emitirá títulos para o
Banco Central diretamente, sem mesmo afetar as taxas de mercado. Com os
pagamentos das pedaladas resolvido, o governo espera que o dinheiro injetado
nos bancos públicos continue gerando crédito subsidiado em um país praticamente
sem demanda e com as contas fiscais completamente desajustadas.
Tudo isso é condizente com a legislação atual, mas tal prática não passa
mais despercebida pelos analistas e pelos investidores. Assim como não passam
mais em branco as propostas de usar as reservas para dar crédito a determinados
setores ou para custear nosso enorme deficit da Previdência.
Parece que chegamos ao ponto em que as reservas deixaram de ser um
seguro e passaram a ser uma ameaça. Torna-se urgente dar-lhes uma função, sob o
risco de jogarmos nossos dólares fora. Vamos piorar o problema fiscal com mais
subsídios ou fingir que não precisamos reformar a Previdência?
Hoje as reservas estão de alguma forma financiando o pagamento do gasto
público e são fonte de inspiração para ideias que aprofundam cada vez mais a
crise de confiança atual. Não temos uma crise de balanço de pagamentos e sim
uma crise fiscal de difícil solução. A única forma de as reservas contribuírem
nesse quadro é abatendo a dívida pública, que cresce de forma acelerada e sem
freio.
Mas é importante entender que gastar nossas reservas para diminuir o
estoque da dívida não evita que esta continue crescendo por conta de um gasto
público completamente descontrolado. Ao abater a dívida, as reservas podem
gerar uma valorização do câmbio, muito bem-vinda para um país que não vê a sua
inflação cair mesmo vivendo a maior recessão de sua história.
Com menos dívida e menos inflação podemos ver as taxas de juros reais
recuarem, sem precisarmos recorrer a voluntarismos, como no passado. Mas, não
custa repetir, tudo isso só será sustentável se for apenas uma ponte para a
chamada reforma fiscal.