domingo, 17 de outubro de 2021

DEBATE SOBRE PREÇOS DE COMBUSTÍVEIS

 

Alta de preços

Por
Célio Yano – Gazeta do Povo

No início do mês, Jair Bolsonaro, Arthur Lira e Paulo Guedes se reuniram para tratar dos preços dos combustíveis. Os três defenderam nesta semana discutir a privatização da Petrobras| Foto: Edu Andrade/Ascom/ME

A disparada de 39% no preço da gasolina em 12 meses acendeu o alerta do Palácio do Planalto, que passou a tratar a questão do preço dos combustíveis como prioritária nas últimas semanas. Depois de a Câmara dos Deputados aprovar, com apoio do governo, mudanças no cálculo do ICMS para reduzir o valor dos produtos nos postos, o presidente Jair Bolsonaro disse na quinta-feira (14), “ter vontade” de privatizar a Petrobras. Outras medidas, como a criação de um fundo para amortecer os reajustes dos derivados do petróleo, também estão em discussão no Legislativo.

Com impacto relevante sobre toda a economia, principalmente em razão dos custos do frete, o preço dos combustíveis tem também forte apelo eleitoral. Desde o início do ano, Bolsonaro tem tentado se desvincular da responsabilidade pela inflação dos combustíveis, atribuindo a culpa aos governos estaduais, responsáveis pela cobrança do ICMS sobre os produtos.

Em fevereiro, sob pressão de grupos de caminhoneiros, Bolsonaro partiu para cima do então presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, anunciando sua substituição pelo general Joaquim Silva e Luna, então diretor-geral brasileiro da Itaipu Binacional.

Embora estivesse no fim de sua gestão, Castello Branco ainda poderia ser reconduzido ao cargo por mais dois anos. O movimento foi visto pelo mercado como uma interferência do chefe do Executivo na companhia, o que fez com que o valor da estatal na B3 caísse mais de 20% em um pregão.

Na sequência, o governo publicou decreto obrigando postos a exibirem a composição dos preços e os tributos que incidem sobre os combustíveis.

Em março, Bolsonaro editou decreto zerando as alíquotas de PIS e Cofins sobre combustíveis por dois meses. Para cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal, uma medida provisória aumentou a CSLL sobre instituições financeiras, encerrou o Regime Especial da Indústria Química (Reiq) e alterou regras do IPI para a compra de veículos por pessoas com deficiência.

Meses depois, o próprio presidente disse que a medida “não adiantou porra nenhuma”, durante um evento de entrega de terrenos rurais no Mato Grosso do Sul. Um único reajuste do óleo diesel “anulou” o impacto do corte dos tributos, que correspondem hoje a R$ 0,35 por litro do produto.

Preço do combustível é influenciado por cotação do barril de petróleo e pelo câmbio
Entre os principais fatores que tem levado à alta nos preços dos combustíveis estão o aumento na cotação do petróleo no mercado global, uma vez que a Petrobras adota o chamado preço de paridade internacional (PPI), e a desvalorização do real, já que esse valor de referência é precificado em dólar.

Para se ter uma ideia, o valor do barril brent fechou a quinta-feira (14) acima de US$ 83. Em abril de 2020, com a queda na demanda em razão da pandemia do novo coronavírus, a commodity chegou a ser cotada a US$ 23,34. E o dólar, que estava cotado a R$ 3,71 no início do governo Bolsonaro, fechou a quinta-feira a R$ 5,51, uma alta de 48,5%.

Embora a alíquota do ICMS não tenha sofrido alterações relevantes nos últimos anos, o tributo incide sob a forma de um porcentual do preço final. Assim, o valor nominal correspondente ao imposto estadual cresce proporcionalmente aos reajustes feitos pela Petrobras.

Presidente da Petrobras diz que ICMS é o que mais impacta no valor dos combustíveis
No dia 14 de setembro, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), transformou o plenário da Casa em comissão geral para ouvir o presidente da Petrobras, Joaquim Silva e Luna, a respeito do preço dos combustíveis. Em uma rede social, o deputado fez cobranças à empresa: “Tudo caro: gasolina, diesel, gás de cozinha. A Petrobras deve ser lembrada: os brasileiros são seus acionistas.”

Na audiência, no entanto, Silva e Luna repetiu o discurso de Bolsonaro de que o ICMS é o que mais impacta no valor cobrado dos consumidores nos postos. A fala do general foi criticada por deputados da oposição, que questionaram a política de composição de preços da Petrobras.

No fim de setembro, durante evento na cidade de Teotônio Vilela (AL), ao lado de Bolsonaro, Lira também incorporou o discurso do presidente de que seriam os estados os responsáveis pela alta no preço dos combustíveis. “Sabe o que é que faz o combustível ficar caro? São os impostos estaduais. Os governadores têm que se sensibilizar”, falou o parlamentar.

Após críticas de governadores, o deputado classificou o tributo como um “primo malvado” na formação do preço final dos combustíveis. “Nós nunca dissemos que é o ICMS que ‘starta’ o aumento do combustível. Para que isso fique claro.”

Bolsonaro diz ter vontade de privatizar a Petrobras. O que você acha da ideia?
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Câmara acelera alteração na cobrança de ICMS sobre combustíveis
O desgaste que o preço dos combustíveis tem causado fez com que a busca por uma maneira de conter as altas se tornasse urgente para o governo, que obteve o apoio do Legislativo no tema. O substitutivo ao projeto de lei complementar (PLP) 11/2020, que promove mudanças na base de cálculo do ICMS sobre combustíveis, entrou em pauta e foi aprovado na Câmara dos Deputados a toque de caixa.

Outras matérias importantes, como a PEC dos Precatórios e a criação do Auxílio Brasil, programa que deve substituir o Bolsa Família, acabaram ultrapassadas na fila de prioridades.

O projeto aprovado pelos deputados, que ainda precisa do aval do Senado e da sanção do presidente da República, prevê que o ICMS passe a ser cobrado na forma de um valor fixo por litro de gasolina, etanol e diesel, que será reajustado uma vez por ano. Na prática, o imposto fica invariável durante o ano frente às variações do preço do combustível ou de mudanças no câmbio.

Além disso, o cálculo desse valor leva em consideração a média dos preços dos combustíveis praticados ao longo dos dois exercícios imediatamente anteriores, e não pode exceder a alíquota aplicável em 31 de dezembro do último ano. Hoje, o cálculo é feito com base no chamado preço médio ponderado ao consumidor final (PMPF), levantado a cada 15 dias.

O efeito da mudança deve ser limitado. No relatório do projeto, o deputado Dr. Jeziel (PL-CE) argumenta que com a entrada em vigor das novas regras o preço final praticado ao consumidor deve cair, em média, 8% para a gasolina comum, 7% para o etanol hidratado e 3,7% para o diesel B.

No último dia 8, dias antes da votação, a Petrobras anunciou reajuste de 7,9% no preço da gasolina vendido às distribuidoras, acumulando alta de 31% em 2021. No fim de setembro, a estatal já havia elevado o valor médio do diesel em 8,89% (28% no ano).

Por outro lado, a medida deve gerar perda de arrecadação para estados e municípios. Estudo da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite) estima em R$ 24,1 bilhões a queda anual na receita dos entes federativos, sendo R$ 12,7 bilhões da gasolina, R$ 7,4 bilhões do diesel e R$ 4 bilhões do etanol.

Além disso, uma eventual queda futura no valor dos derivados de petróleo no mercado internacional poderia gerar efeito inverso: o ICMS continuaria a ser cobrado sobre uma base maior, deixando de refletir as reduções em curto prazo.

O Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz) criticou as alterações. A entidade defende que a solução para o problema passa por uma mudança na política de preços da Petrobras e pela reforma de todo o sistema tributário.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), prometeu “boa vontade” na apreciação do PLP 11/2020 na Casa. “Precisamos estabilizar o preço dos combustíveis, tornar o preço mais palatável para o desenvolvimento do país. Não tem como desenvolver o país com este preço. O Senado está muito aberto às boas propostas”, disse Pacheco.

Ele disse ainda que a Petrobras “precisa ter elementos para colaborar com um preço mais acessível”, lembrando que a empresa tem “uma função social”.

Deputados discutem outras medidas para conter alta de preços
Enquanto isso, a Câmara trabalha em outras frentes para atacar os preços. Nesta sexta-feira (15), a Comissão de Finanças e Tributação aprovou parecer sobre o PLP 10/2020, que impõe um limite às alíquotas do ICMS sobre combustíveis.

De acordo com o texto, o tributo incidirá, no máximo, em 20% para a gasolina, 10% para o diesel e 15% para o etanol. Caso entre em vigor juntamente com o PLP 11, este será o teto a ser considerado na definição do valor fixo do ICMS a partir de 2022. Hoje os estados têm autonomia para definir as alíquotas. No caso da gasolina, por exemplo, o tributo vai de 25% a 34%, dependendo da unidade federativa.

Outra proposta que está à mesa é a da criação do chamado Fundo de Estabilização dos Preços dos Derivados do Petróleo (FEPD), que seria abastecido por um imposto cobrado sobre a exportação do petróleo bruto. A ideia é que os recursos dessa reserva sejam utilizados para subsidiar o valor dos combustíveis, contendo as altas no curto prazo.

A alternativa consta do projeto de lei (PL) 750/2021, do deputado Nereu Crispim (PSL-RS) e que está em análise na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços. Em uma audiência no colegiado, o Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP) se manifestou contrariamente à ideia, que, segundo a entidade, afastaria investidores e contrariaria princípios de livre mercado e livre concorrência.

Representantes de caminhoneiros e o ex-consultor legislativo Paulo César Lima defenderam o modelo. Apesar disso, o relator Geninho Zuliani (DEM-SP) apresentou parecer preliminar pela rejeição do projeto.

Custo elevado de combustíveis reacende discussão sobre privatização da Petrobras
No dia seguinte à aprovação do PLP 11/2020, Bolsonaro disse, em entrevista à Rádio Novas da Paz, de Pernambuco, que o texto não é o ideal, mas parabenizou Lira por ter conseguido encaminhar a votação. E citou a possibilidade de privatizar a Petrobras como uma forma de conter os preços.

“É muito fácil: aumentou gasolina? Culpa do Bolsonaro. Eu já tenho vontade de privatizar a Petrobras. Tenho vontade. Vou ver com a equipe econômica o que a gente pode fazer. O que acontece? Eu não posso melhor direcionar o preço do combustível, mas quando aumenta, a culpa é minha”, disse.

Uma eventual venda do controle acionário da Petrobras, que tem capital aberto, mas tem a União como sócia majoritária, precisaria do aval do Congresso Nacional. O assunto já havia sido levantado por Lira em uma entrevista no dia anterior à CNN Rádio.

“Há uma política que tem que ser revista, porque hoje ela [Petrobras] não é pública nem privada completamente. Só escolhe os melhores caminhos para performar recursos e distribuir dividendos. Então não seria o caso de privatizar a Petrobras? É hora de discutir qual é a função da Petrobras no país. É distribuir dividendos?”, questionou.

A ideia de desestatizar a companhia petrolífera é defendida também pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Em um evento promovido pela International Chamber of Commerce – Brasil (ICC-Brasil) há duas semanas, ele defendeu que a Petrobras “entrasse na fila” de vendas. “Qual o plano para os próximos dez anos? Continuar com as privatizações: Petrobras, Banco do Brasil, todo mundo entrando na fila, sendo vendido e isso sendo transformado em dividendos sociais”, afirmou.

Esta semana, em entrevista a jornalistas em Washington, nos Estados Unidos, Guedes voltou a falar sobre o assunto. “Quando o preço do combustível sobe, os mais frágeis estão com dificuldade, não estão? Que tal se eu vender um pouco de ações da Petrobras e der para eles esses recursos?”, sugeriu.

“Se a gente fizer um fundo, colocar lá umas ações da Petrobras, da Caixa Seguridade, de empresas estatais que a gente queira. Se não quiser privatizar, tudo bem, paga dividendos sociais. Agora, se quiser privatizar, aí sim, vende.”


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PESQUISAS ELEITORAIS

 

Eleições

Por
Isabella Mayer de Moura – Gazeta do Povo

Entrevistador preenche caderno de respostas de pesquisa: levantamentos eleitorais são um retrato da opinião do eleitorado em um determinado dia.| Foto: Pixabay

Faltando um ano para as eleições, as pesquisas eleitorais começam a ganhar mais destaque na imprensa e passam a ser observadas com mais atenção por partidos, políticos e consultores. A Gazeta do Povo ouviu quatro especialistas da área que explicam o que são as pesquisas, como são feitas e o impacto que elas têm nas eleições. Confira a seguir.

  1. O que são as pesquisas eleitorais e para que servem?
    Para responder a essa pergunta, é necessário primeiro dizer o que elas não são. As pesquisas de intenção de voto não são uma previsão do resultado das eleições, muito menos quando ainda se está a um ano do pleito. Os institutos têm como objetivo fazer uma “retrato” das preferências do eleitorado no dia em que a pesquisa foi realizada. “É uma opinião muito pontual que pode mudar dois ou três dias depois”, explica David Verge Fleischer, cientista político e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB).

Esse retrato é importante para entidades de classe, mercado financeiro e, principalmente, para lideranças políticas – tanto é que são esses os principais contratantes dos levantamentos. Para o último grupo, as pesquisas de intenção de voto que já estão sendo divulgadas servem para testar nomes de futuros candidatos e ajudam na formulação de estratégias de campanha e busca por apoios. Para empresários e líderes de entidades de classe, elas ajudam a decidir apoios e, mais adiante, podem ser relevantes para os investimentos no mercado financeiro.

“As pesquisas servem para contar histórias e mostrar tendências”, define Márcia Cavallari Nunes, CEO do instituto Ipec, que faz pesquisas de opinião.

A curva de evolução de cada candidato ou pré-candidato é tão ou mais importante que o percentual de intenções de voto em si, pois indica tendências e reações do eleitorado a determinados fatos. Geralmente, as principais mudanças ocorrem quando os candidatos formalizam as candidaturas e quando começa o horário de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV – embora acontecimentos políticos importantes possam ter mais peso no decorrer de um ano eleitoral.

  1. Existe um método melhor para fazer entrevistas?
    Existem várias maneiras de se realizar uma pesquisa de opinião. As mais usadas pelos institutos para os levantamentos de intenção de voto são a presencial e a telefônica. A “face a face” pode ser realizada por entrevistador que vai até a casa de um eleitor para entrevistá-lo ou ainda em um local de fluxo de pessoas – uma rua de um determinado bairro, por exemplo. O Instituto Datafolha, por exemplo, realiza suas pesquisas dessa maneira.

A entrevista por telefone também pode ser realizada de duas maneiras: com um entrevistador fazendo as perguntas ou por meio de gravações automatizadas em que o entrevistado responde clicando em números do seu telefone ou celular. Um dos institutos que adota este modelo “robotizado” é o PoderData.

Há vantagens e desvantagens entre esses métodos e os institutos decidem qual deles aplicar dependendo do objetivo do levantamento. Em uma pesquisa presencial, por exemplo, o contato com o entrevistador pode influenciar em uma determinada resposta ou, ainda, o viés do entrevistador pode influenciar quem ele escolhe para abordar na rua – no caso do método de fluxo.

Já as pesquisas por telefone ficam limitadas a bases de dados com números de telefone que são compradas pelos institutos, além da possibilidade de erro de digitação ou pressa em responder no caso das entrevistas automatizadas.

Essas possibilidades são previstas e incluídas nas margens de erro das pesquisas, que geralmente são de dois ou três pontos percentuais para a maioria dos institutos.

Mas qual é o método mais confiável? Existem maneiras de validar as pesquisas eleitorais, segundo explicou à Gazeta do Povo Daniel Marcelino, cientista de dados do Jota, site de notícias especializado na cobertura das instituições públicas brasileiras. Uma delas é comparar as pesquisas eleitorais realizadas na semana anterior às eleições com o resultado do pleito. Nesse caso, as presenciais têm uma diferença menor do que as realizadas por telefone, de acordo com o cientista (em torno de dois pontos percentuais, enquanto que as telefônicas, o erro aumenta para três pontos, segundo análise do cientista). Ele lembra também que, quanto mais perto da eleição a pesquisa for realizada, menor tende a ser o erro.

  1. Qual tem sido o grau de acerto das pesquisas eleitorais no Brasil?
    “As pesquisas acertam muito, mas dependem do tempo. Quanto mais próximo da eleição, maior a acurácia, independentemente do método. No Jota, fizemos um levantamento que envolveu cerca de 1.800 pesquisas eleitorais em 2018 e encontramos que 85% acertaram resultado – considerando pesquisas das últimas três semanas”, conta Marcelino. Ele ainda diz que, quanto mais frequentes forem as pesquisas realizadas por um instituto, mais precisas elas tendem a ser.

No primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, por exemplo, todas as pesquisas divulgadas na semana que antecedeu o dia de votação acertaram o resultado: o pleito iria ao segundo turno entre o então candidato Jair Bolsonaro e o petista Fernando Haddad. O percentual de votos atribuído a cada candidato, porém, variou bastante do resultado final.

Os dois principais institutos de pesquisa na época, Ibope e Datafolha, colocavam Bolsonaro, respectivamente, com 41% e 40% das intenções de votos válidos. Haddad aparecia com 25% e a margem de erro das pesquisas era de dois pontos percentuais. Bolsonaro, porém, venceu o primeiro turno com 46% dos votos válidos. O petista fez 29%. Naquele ano, votos que essas pesquisas informaram que seriam de outros candidatos, como Marina Silva e Geraldo Alckmin, acabaram indo para os dois principais concorrentes.

Marcelino afirma que os resultados do primeiro turno são mais difíceis de acertar devido ao grande número de candidatos. Além disso, alguns institutos podem ser melhores em estimar o percentual para um candidato do que para outro. “Isso tem a ver com os recursos disponíveis. Por exemplo: tipo de lista telefônica, base de contatados, onde o instituto coleta as entrevista, entre outros fatores. Isso faz com que, às vezes, o instituto inclua um componente de erro sistemático na sua pesquisa.”

No segundo turno, com apenas dois candidatos, as pesquisas tendem a ser mais certeiras. A realizada pelo Datafolha na véspera do segundo turno em 2018 cravou o resultado final: Bolsonaro com 55% e Haddad com 45%. O Ibope indicava 54% para Bolsonaro e Haddad com 46%.

Além dos métodos, outros fatores também podem influenciar o resultado de uma pesquisa eleitoral: a quantidade de entrevistados, a ordem e a maneira como as perguntas são feitas e como a amostra foi estratificada. Fatores de interesses também podem ter um peso, segundo Marcelino. “É preciso se perguntar: quem contratou essa pesquisa está tentado criar uma narrativa?”.

De acordo com ele, uma das maneiras de minimizar os vieses, sejam eles técnicos ou de interesse, é observar os agregadores, que usam modelos probabilísticos para calcular uma espécie de média entre os resultados das pesquisas. Com o tempo, o modelo aprenderá a corrigir esses vieses.

  1. Como confiar em pesquisas eleitorais, se nunca conheci alguém que foi entrevistado?
    O número de pessoas que serão entrevistadas para uma pesquisa depende de critérios estatísticos. Quanto mais pessoas forem entrevistadas, mais confiável será a pesquisa. Mas, depois de um determinado número, a redução na margem de erro é tão pequena que não compensa os custos. Para pesquisas nacionais de eleições, geralmente são entrevistadas cerca de duas mil pessoas, mas há variações entre institutos.

Usando bases de dados sobre o eleitorado disponíveis no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Censo Demográfico, os institutos definem como vão estratificar a amostra. Um exemplo fictício: se as mulheres representam 53% dos eleitores do Brasil, o instituto deve entrevistar 53% de mulheres em sua amostra. Também são levados em conta fatores como escolaridade, região, população economicamente ativa, idade, renda, entre outros.

Ou seja, se a amostra for bem selecionada, ela estatisticamente representa toda a população. E isso garante o acerto das pesquisas. Mas, como apenas alguns milhares de pessoas representam milhões de brasileiros, a possibilidade de que alguém conheça um entrevistado é baixa.

  1. Os institutos têm um “controle de qualidade” das pesquisas?
    De acordo com o diretor do Instituto Paraná Pesquisas, Murilo Hidalgo, e a CEO do Ipec, Márcia Cavallari Nunes, há sim um controle de qualidade dos levantamentos. Ambos os institutos realizam uma revisão de 20% das entrevistas feitas por entrevistador, para verificar como ele está conduzindo as perguntas e conferir as respostas com o banco de dados.

A tecnologia também permitiu que outras checagens sejam feitas a fim de garantir a precisão dos resultados, como o uso de tablets ligados a um sistema de GPS, por meio do qual é possível saber se o entrevistador está no local determinado pela amostragem para fazer as entrevistas.

“Também monitoramos o tempo da entrevista. Se uma delas foi realizada muito rápido em relação à média daquele grupo, revisamos para ver se está tudo certo”, diz Márcia, acrescentando que, se necessário, todas as entrevistas de um entrevistador podem passar por revisão.

Hidalgo lembra ainda que, no ano eleitoral, todas as pesquisas divulgadas precisam ser antes registradas na Justiça Eleitoral, com informações da amostra, das perguntas realizadas, metodologias, quem foi o contratante e o preço que foi cobrado dele para a realização da pesquisa.

  1. Teremos mais institutos de pesquisa nas eleições de 2022?
    Há um grande crescimento deste mercado no país. Segundo Murilo Hidalgo, esse impulsionamento se deu, principalmente, pelo maior interesse do mercado financeiro em contratar suas próprias pesquisas.

Daniel Marcelino, cientista de dados, acrescenta que esse movimento se deu, particularmente, nos últimos três anos, impulsionado também pela tecnologia. “A diversidade de empresas [que fazem pesquisas] significa que mais metodologias estão sendo testadas, mais pessoas estão sendo entrevistadas. Isso acaba diminuindo dois efeitos que podem ocorrer quando temos poucos institutos de pesquisa: o herding (rebanho, quando os pesquisadores se escutam mais entre si do que ao público) e o hedging (quando, para se precaver de um resultado inesperado, ajustam seu resultado para a margem de erro de pesquisas de outros institutos)”.

  1. Pesquisas eleitorais influenciam eleições?
    Na opinião de Fleischer e Marcelino, sim. Além de servirem como uma ferramenta de campanha para candidatos e partidos, as pesquisas de intenção de voto também podem influenciar o voto do eleitor indiferente, aquele que vai votar apenas porque é obrigado a fazê-lo.

“Há uma grande chance de que esse eleitor vote em quem está liderando as pesquisas”, diz Marcelino, acrescentando que alguns estudos pequenos em cenários fictícios apontam para esse resultado – embora saliente que não há literatura conclusiva sobre a influência das pesquisas no voto do eleitor. Contudo, um impacto no resultado da eleição só ocorrerá, segundo ele, se a disputa entre os candidatos for muito apertada.

Márcia, por sua vez, afirma que não há influência no resultado. “A pesquisa eleitoral é uma informação adicional que o eleitor pode ou não usar para decidir seu voto. Não há uma influência maligna sobre o eleitor. Vemos candidatos que começam lá embaixo nas pesquisas, depois vão ganhando força e acabam ganhando”, exemplificou.
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OS BIPOS CATÓLICOS SÃO DE ESQUERDA?

Religião e política
Por
Jocelaine Santos – Gazeta do Povo

Os fiéis católicos são obrigados a seguir apenas o que o bispo da sua diocese determinar e, mesmo assim, desde que sejam orientações sobre o conjunto da fé e a moral.| Foto: Arquivo / CNBB

Nas comemorações do dia da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, em 12 de outubro, chamou a atenção o discurso do arcebispo de Aparecida, dom Orlando Brandes. Durante a homilia, o bispo disse que “para ser pátria amada não pode ser pátria armada”, o que foi interpretado como uma crítica direta ao presidente Jair Bolsonaro, que vem atuando em defesa da flexibilização das leis que regem a compra e o porte de armas no país.

Em 2019, o mesmo bispo já havia feito uma homilia controversa, também durante as celebrações da festa de Nossa Senhora Aparecida, quando afirmou que “a direita é violenta, é injusta. Estamos fuzilando o papa, o Sínodo, o Concílio Vaticano II”.

Críticas ao governo federal e declarações com teor político por parte de bispos brasileiros aparecem não apenas em posicionamentos pessoais dos sacerdotes. Em setembro deste ano, por exemplo, o canal oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) veiculou um vídeo em que o presidente da entidade, dom Walmor Oliveira de Azevedo (que também é arcebispo de Belo Horizonte), pedia que o povo brasileiro “não se deixe convencer por quem agride os poderes Legislativo e Judiciário”. A declaração foi feita poucos dias antes das manifestações de 7 de setembro em apoio a Bolsonaro.

Em abril, no fim da 58.ª Assembleia Geral da CNBB, os bispos também criticaram “discursos e atitudes que negam a realidade da pandemia, desprezam as medidas sanitárias e ameaçam o Estado Democrático de Direito”, o que também foi considerado uma crítica direta a Bolsonaro, embora, assim como em outras vezes, o nome do presidente não tenha sido citado.

Além disso, a CNBB promove ações e mobilizações em conjunto com grupos e até partidos de esquerda, como o tradicional Grito dos Excluídos, série de manifestações que acontecem normalmente perto do dia 7 de setembro. A ação já se tornou um palco comum para organizações como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) ou partidos políticos, como o Partido dos Trabalhadores (PT). Neste ano, na última edição do evento, por exemplo, PT, sindicatos, movimentos estudantis e outras organizações atrelaram a ação à campanha “Fora Bolsonaro”.

Diante desses fatos, quem ignora como funciona a Igreja Católica pode ter a falsa ideia de que “quem manda na Igreja Católica no Brasil é de esquerda”. Mas isso não é verdade: a Igreja é suprapartidária – não tem partido político. Além disso, a CNBB não faz parte da estrutura de poder da Igreja Católica; seus poderes são bastante limitados e é formada por todos os bispos que atuam em solo brasileiro, independentemente de suas opiniões políticas.

Em artigo escrito por outro bispo, dom Fernando Rifan, e publicado no site da própria instituição, o papel da CNBB é devidamente descrito: “Uma conferência episcopal, como a CNBB, não faz parte da hierarquia da Igreja como tal, que é formada pelo Papa e pelos bispos em comunhão com ele. A conferência, instituição eclesiástica, não existe para anular o poder dos bispos, instituição divina. Não confundir conferência episcopal com o episcopado ou colégio dos bispos, sucessor do Colégio Apostólico, de instituição divina”.

Isso significa que os fiéis católicos são obrigados a seguir apenas o que o bispo da sua diocese determinar e, mesmo assim, desde que sejam orientações sobre temas de fé e moral – em todo o resto, são livres para defender o que bem entenderem em temas políticos, sociais, econômicos, sanitários etc. Da mesma forma, os bispos não estão submetidos a tudo que venha da CNBB. Mesmo pronunciamentos da presidência da entidade e outras manifestações, como análises de conjuntura, temas da Campanha da Fraternidade e posicionamentos em política e economia, nada disso tem caráter obrigatório nem para os católicos brasileiros, nem para os bispos e padres.


Qual é o poder da CNBB?
Quem coordena as diferentes regiões administrativas da Igreja Católica, chamadas de dioceses, são os bispos, e dentro das dioceses o bispo é a autoridade máxima. Ele responde apenas ao papa, e não às conferências episcopais de seus países. Suas decisões precisam estar alinhadas apenas com as do papa e com os ensinamentos da Igreja. Mas, se é assim, qual é o papel de uma conferência episcopal como a CNBB?

Basicamente, a CNBB só tem autoridade naqueles temas que o próprio papa delega às conferências episcopais. Um exemplo é o calendário litúrgico: as conferências podem determinar que certas celebrações possam ser mudadas de data – no caso brasileiro, por exemplo, as comemorações de São Pedro e São Paulo, em 29 de junho, e da Assunção de Nossa Senhora, em 15 de agosto, são movidas para o domingo mais próximo. Também dentro da área litúrgica, é a CNBB que elabora a tradução brasileira do missal e de outros livros usados nas celebrações. Algumas questões disciplinares também ficam a cargo das conferências episcopais, como a abstinência das sextas-feiras: a CNBB permitiu que os católicos troquem a abstinência de carne por alguma outra penitência.

No entanto, a CNBB tem uma estrutura muito maior, com presidência, secretaria-geral, várias comissões, pastorais, organismos e entidades, responsáveis por inúmeros pronunciamentos e ações, mas que não são vinculantes nem mesmo para os bispos, tampouco representam a “posição da Igreja Católica” sobre o assunto. Em 2010, por exemplo, a Comissão Pastoral da Terra, vinculada à CNBB, participou da organização de uma consulta popular sobre a imposição de limites máximos para as propriedades rurais, e vários bispos se manifestaram abertamente contrários à iniciativa e proibiram que suas paróquias fossem usadas como locais de votação. Consequentemente, muitos documentos da CNBB sobre questões sociais e políticas são apenas reflexo do pensamento dos bispos sobre essas questões, podendo ser seguidos ou não pelos fiéis. “São documentos que devem ser recebidos com respeito, mas há liberdade para se discordar deles”, afirma o doutor em História Rafael de Mesquita Diehl.

Essa liberdade de julgamento também se aplica às chamadas “Campanhas da Fraternidade” realizadas pela CNBB todos os anos durante a Quaresma, período que antecede a Páscoa dos católicos. Alguns dos temas propostos para a reflexão nos últimos anos foram alvo de protestos de fiéis pelo distanciamento ou até afronta aos ensinamentos da Igreja. Na última das campanhas, feita em parceria com o Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) em 2021, por exemplo, quem coordenou a ação foi a pastora luterana Romi Bencke, defensora da legalização do aborto.

Além da política
Por princípio, a Igreja Católica não tem um regime político próprio, nem partido ou ideologia política, nem teoria social ou econômica, como explica Diehl. Por isso, ressalta o historiador, em tudo aquilo que não for relacionado à fé ou à moral – como a grande maioria dos temas políticos –, tanto os fiéis católicos quanto os padres e bispos têm liberdade de sustentarem as suas próprias posições.

“Existem algumas ideologias que são condenadas pela Igreja por sustentarem uma visão de mundo ou de ser humano distintas ou por serem intrinsecamente contrárias à religião e aos direitos humanos”, lembra Diehl. Ele cita como exemplo o socialismo e o comunismo, que embasam o pensamento de partidos de esquerda, mas também o liberalismo radical, o fascismo e o nazismo, que por vezes permeiam os discursos de algumas alas da direita. Nesses casos, o fiel que adota uma postura divergente da Igreja Católica pode ser até punido, mesmo que faça parte do clero. Durante o pontificado de João Paulo II, por exemplo, houve punição a alguns teólogos que defenderam uma visão mais marxista ou materialista, e a substituição de bispos em vários lugares do mundo pelo mesmo motivo.

Origens da CNBB
Criada em 1952 por dom Hélder Câmara (1909-1999), a entidade surgiu com o objetivo de “coordenar e subsidiar as atividades de orientação religiosa, de beneficência, de filantropia e assistência social” em todo o Brasil. Em outubro daquele ano a instituição foi aprovada por Pio XII (papa entre 1939 e 1958).

A preocupação com as questões sociais e econômicas na América Latina era bastante forte na época. No período, surgiram diversas correntes teológicas que buscavam fundamentar a missão social da Igreja Católica a partir da Bíblia e de outros escritos cristãos. Algumas dessas correntes foram influenciadas por ideias do marxismo – como a Teologia da Libertação – e até mesmo buscaram se engajar em revoluções e lutas armadas, mas, alerta Diehl, isso não foi uma regra. Havia muitos teólogos que buscavam uma teologia social alinhada com o ensino oficial da Igreja Católica e em contraposição às ideias socialistas e comunistas, como os casos de Oscar Romero (declarado santo em 2018) em El Salvador e Jorge Mario Bergoglio (o atual papa Francisco) na Argentina.

Ainda assim, entre as décadas de 1970 e 1980, diz o historiador, os bispos de tendências políticas ou sociais mais à esquerda se tornaram efetivamente um grupo expressivo dentro da Igreja Católica no Brasil – e da CNBB. Com o início do papado de João Paulo II, em 1978, porém, houve uma mudança de postura, visando diminuir a força das tendências do marxismo dentro da Igreja. Mas isso não significa que todas as posturas de esquerda tenham sido combatidas. A preocupação com as questões sociais e a cooperação com movimentos sociais – alguns com forte viés de esquerda, como o MST – continuou forte.

Direita ou esquerda?
Ainda assim, não seria possível, na opinião do historiador, atribuir uma determinada posição política à CNBB. “É claro que ainda há bispos com maiores simpatias pela esquerda na CNBB, mas isso não é suficiente para afirmar que a instituição seja de esquerda. Mas isso é até difícil de mapear, sendo que a direita passou a buscar construir uma identidade muito recentemente no Brasil”, ressalta.

E, mesmo se passasse a assumir um posicionamento claramente de direita, a CNBB igualmente estaria equivocada, explica Diehl. O Direito Canônico proíbe que clérigos se candidatem a cargos políticos justamente por isso: para reforçar que a Igreja Católica não tem partido. Os padres, bispos e religiosos podem ter suas preferências políticas, como todos os cidadãos, mas devem tomar cuidado para não fazerem essas ideias se confundirem com o ensino oficial da Igreja.

“Um padre ou bispo poderia advertir os fiéis sobre algum partido ou candidato que defenda agendas contrárias ao ensino moral da Igreja, mas não poderia usar de sua posição de sacerdote para recomendar o voto em um candidato ou partido político”, salienta o historiador. Esta postura tem, inclusive, o apoio dos papas. Em discurso aos bispos do Maranhão em 2010, Bento XVI afirmou que “quando os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem, os pastores têm o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas”, acrescentando que, “quando os projetos políticos contemplam, aberta ou veladamente, a descriminalização do aborto ou da eutanásia, o ideal democrático – que só é verdadeiramente tal quando reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana – é atraiçoado nas suas bases”.

Em outros países
A CNBB foi uma das primeiras instituições do gênero a surgir no mundo, em 1952. Formalmente, a Igreja Católica só instituiu as conferências episcopais anos depois, em 1966. Em todo o mundo, existem instituições semelhantes, que congregam os bispos de um país ou uma determinada região para deliberarem sobre assuntos locais.

Na Itália, por exemplo, a Conferência Episcopal Italiana (CEI) prefere atuar de forma bem distinta da brasileira. Em vez de declarações polêmicas a respeito da pandemia, a CEI emitiu um documento orientando a ação pastoral intitulado “Vamos recomeçar juntos”, para auxiliar bispos, padres e comunidades a pensar o sentido de ser cristão a partir das lições da pandemia e pós-lockdown.

A instituição também apoia iniciativas pró-vida na Itália, além de ser responsável pelo financiamento de diversos projetos sociais pelo mundo. Em julho deste ano, por exemplo, a CEI destinou 15 milhões de euros, obtidos por meio de impostos pagos pela população italiana, para projetos na área de saúde, educação e geração de renda em países da África, Ásia, Oriente Médio e América Latina, incluindo o Brasil.

Para a realização desta reportagem, a Gazeta do Povo entrou em contato com a assessoria de comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e solicitou entrevista a respeito do suposto posicionamento político da entidade. A CNBB respondeu apenas que não seria possível atender à solicitação da reportagem porque os presidentes estavam em viagem.


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TRAVESSIA PARA OS ESTADOS UNIDOS

Pandemia e crise econômica na América Latina agravam crise migratória nos EUA

Beatriz Bulla, enviada especial a Yuma, EUA, O Estado de S.Paulo

Há um rastro de cadarços, peças de roupa e sapatos de criança por quilômetros na estrada de terra que separa México e EUA. São uma hora da tarde em Yuma, no Arizona. A temperatura de 20º C é amena, comparada ao calor do verão. Rompendo a monotonia do deserto, um grupo caminha em fila, com sacolas e mochilas na cabeça. Com os cabelos presos em um rabo de cavalo, tênis e camiseta rosa, a menina brasileira de 10 anos vai à frente do irmão mais velho e dos pais, como se quisesse encerrar logo um tormento. 

Ao avistar a caminhonete branca dos agentes americanos, adultos e crianças querem duas coisas: água e a confirmação de que chegaram aos EUA. “De onde vocês são?”, pergunta o guarda de fronteira, em espanhol. “Passaportes”, ordena ao saber que são brasileiros. Enquanto checa os documentos, manda que todos retirem os cadarços dos sapatos, os cintos e qualquer coisa que possa ser usada como corda. Anéis, correntes e dinheiro devem ser guardados. Na pressa, muita coisa fica pelo caminho. Está explicado o rastro de peças infantis em meio ao deserto. 

Em poucas horas, pelo menos cinco menores brasileiros estavam entre os detidos na fronteira, além de dezenas de crianças de diferentes nacionalidades. Caminhando atrás da filha, Maria (o nome real dos migrantes brasileiros é omitido, por temerem represálias) conta que a família, como todo o grupo, veio de Minas Gerais. PUBLICIDADE

Imigração
Família de imigrantes brasileiros é detida ao chegar em Yuma, Arizona Foto: Beatriz Bulla

Os guardas determinam que ela não fale mais com a reportagem e pedem que os brasileiros subam na parte traseira na caminhonete. O pai retruca: “As crianças também? Na caçamba?”. O guarda olha de novo aos menores e concorda que sentem no banco de trás do veículo, protegidos. A família de Maria é uma das mais de 34,7 mil brasileiras detidas com parentes – filhos, pais idosos e cônjuges – na fronteira americana desde outubro de 2020, de um total de 50 mil brasileiros que chegaram aos EUA ilegalmente pelo México. O governo americano não detalha quantos menores chegam com parentes. “Há um número muito significativo de brasileiros e venezuelanos em Yuma”, diz um porta-voz da patrulha da fronteira (CBP, na sigla em inglês). 

Há também menores brasileiros desacompanhados. Em um ano, foram 198 – mais da metade entrou por Yuma. A maior parte, segundo fontes nos dois países, é de adolescentes ao redor dos 16 anos. Em 12 de outubro, dia das crianças no Brasil, guardas que faziam a patrulha na barragem de Morelos avistaram dois pequenos pontos cor de rosa. Eram duas irmãs hondurenhas, de 4 e 6 anos, abandonadas por coiotes. A mais velha carregava uma folha sulfite com o nome de uma “tia”, que supostamente vive nos EUA. No dia seguinte, uma menina de 7 anos de El Salvador foi abandonada por um coiote na cidade vizinha, chamada El Centro.

A orientação é para que os menores desacompanhados sejam reunidos com parentes o quanto antes. Em mais de 80% dos casos, a criança tem alguém que já vive nos EUA. Em 40% das vezes, esse parente é um dos pais ou responsável legal.

As famílias também têm tratamento diferente dos adultos que chegam sozinhos. É mais fácil, especialmente quando há menores, passar pelo processo de pedido de asilo em liberdade. É o que fez com que Silvia, brasileira que hoje vive em El Paso, fosse pressionada por coiotes para permitir que dois de seus três filhos cruzassem acompanhando outros adultos. A brasileira aceitou em troca da promessa de ganhar a travessia sem pagar. Antes de embarcar, ela quis voltar atrás, mas foi ameaçada de morte.

Na entrada, um exame de DNA detectou que as crianças não eram filhas dos adultos. Silvia, que entrou depois nos EUA, foi acusada de tráfico de pessoas e presa. Os filhos, incluindo um bebê de 6 meses, foram levados para um centro de detenção, segundo César Rossatto, cônsul honorário do Brasil em El Paso, no Texas, que ajudou na defesa da brasileira. Ela agora responde em liberdade ao processo, para que possa ter a guarda dos filhos. “Essas pessoas estão correndo um risco grande. Alguns acham que vale, mas outros não sabem o que os aguarda, vêm iludidos”, disse o cônsul Marcelo Dantas.

O futuro de quem se entrega aos agentes é incerto. Quando as funcionárias de um pequeno café brasileiro em Yuma chegaram para trabalhar, na segunda-feira, estranharam ao ver um recado deixado de madrugada na caixa postal. De Massachusetts, com voz afobada, uma brasileira telefonava buscando quem pudesse ajudar um casal de amigos detido na travessia. A família foi presa. Nos 16 dias em que mãe, pai e dois filhos passaram em um centro de detenção, pegaram covid. Foram levados para cumprir isolamento em um hotel, mas estavam debilitados. Hoje, eles aguardam o pedido de asilo em liberdade vigiada.

Outros não têm a mesma sorte. Cerca de 20% são deportados em voos semanais. Antes disso, são levados a centros de detenção, onde permanecem por até oito meses. “Quando liberados, ficam com monitoramento facial e eletrônico muito rígido e data marcada na Justiça. A pessoa chega sem dinheiro e, de repente, precisa enfrentar um juiz. O tradutor é caro, o advogado é caro. É outro processo que começa ali, quando eles também podem também ser deportados ao final”, disse Rossatto. “O número de brasileiros chegando é inédito, porque a situação no Brasil é ruim. Basta ver o preço da comida e do gás.”

Para os deportados, o sacrifício continua. Os voos costumam sair do Estado da Louisiana – a mais de 20 horas de carro de Yuma. No entanto, ao avistar os EUA pelo deserto, tudo isso parece distante. “Qualquer coisa que aconteça aqui será melhor do que ficar lá”, disse Maria, ao lado dos dois filhos, antes de subir na caminhonete dos agentes da patrulha e desaparecer.

A maioria dos que consegue cruzar a pé a fronteira comemora ao ver os agentes americanos, como Maria e sua família. É hora de se entregar para dar início formal ao processo de permanência nos EUA.

Um casal explica o roteiro: em Governador Valadares, eles pegaram um ônibus até o aeroporto de Belo Horizonte. Depois, um voo para Guarulhos, outro para a Cidade do México, onde dormem duas noites, e um avião para Mexicali, já na fronteira com os EUA. A cidade, que é rota do tráfico de drogas, recebe a maioria dos brasileiros que buscam o sonho americano. Dali, os imigrantes seguem de carro até Los Algodones para a travessia a pé até Yuma. 

O mesmo casal, que prefere não se identificar, diz ter pagado US$ 15 mil (mais de R$ 80 mil) a coiotes, em um acerto feito no Brasil. O dinheiro veio de economias e empréstimos, que eles planejam quitar em breve com o emprego que dizem ter em New Jersey, onde amigos trabalham com faxina e construção civil.

Imigração
Imigrantes na cidade americana de Yuma Foto: Beatriz Bulla / Estadão

Alguns negam, na chegada, ter contratado coiotes para a travessia, mas os “guias” que levam o grupo são visíveis do lado americano. Com voos rasantes, helicópteros dos EUA tentam encontrar os criminosos que conduzem os imigrantes. Muitos, como os venezuelanos, se queixam da extorsão que começa já no aeroporto, com pedido de propina por funcionários mexicanos que ameaçam barrar a passagem.

“Nos EUA, sabemos que, como venezuelanos, temos tratamento diferenciado, porque eles entendem a gravidade da nossa situação. Mas, para chegar até aqui, passamos por extorsões”, afirma um deles.

Em Yuma, a cena da chegada de imigrantes se repete frequentemente, à noite ou à luz do dia. Os latino-americanos caminham pela região, onde uma grade de ferro que separa os EUA do México é interrompida em dois trechos, para preservação da reserva indígena Copocah. No primeiro ponto, próximo a uma barragem, é possível atravessar pelas águas do Rio Colorado. 

Do lado americano, guardas acompanham a movimentação de carros e ônibus em Los Algodones, onde muitos desembarcam e descem a pé um barranco que dá acesso à fronteira. “Olhe aí, você terá mais clientes hoje”, diz um agente ao outro, ao ver um pequeno grupo se equilibrando na ribanceira. Cerca de 30 minutos depois, eles chegam enlameados até os joelhos.

Sujos, suados, com lágrimas nos olhos e implorando por água, um grupo de 49 pessoas se entrega aos americanos. Entre eles, sete crianças da Nicarágua, alguns venezuelanos, cubanos e duas famílias do Haiti. Eles viajaram por dois meses, dizem, de ônibus e a pé, desde a América Central.

Bebê brasileiro

Exausto e desorientado, um haitiano que se mudou para o Brasil em 2019, carrega uma sacola com roupas e uma lata de leite Nan. Sua mulher traz no colo uma bebê de 9 meses, Lovelie, nascida no Brasil. Ele conta que migrou porque as coisas não vão bem no Brasil. “Eles exigem experiência de trabalho. Sem experiência, não contratam”, disse. “Morava em um lugar perigoso em Curitiba, onde matavam gente toda a semana. Não conseguia mais dinheiro para alugar outra casa.” 

“Todos os dias, há muitas demandas no consulado de brasileiros com necessidade de documentos, pessoas que se machucam na travessia e são abandonadas pelos coiotes. Há casos de pessoas que não são encontradas, que morrem com mais frequência do que é noticiado”, disse Marcelo Dantas, cônsul do Brasil em Los Angeles. 

A imigração para os EUA foi praticamente interrompida em 2020, no auge da pandemia, pelas restrições de viagem e pela política do governo de Donald Trump. Com o chamado “Título 42”, Trump proibiu a entrada de imigrantes e requerentes de asilo, usando a saúde pública como justificativa.

Joe Biden manteve a medida e deve ser obrigado a retomar a política de Trump de mandar de volta ao México requerentes de asilo que esperam pela análise do caso na Justiça americana. Conhecida como “Permaneça no México”, a regra foi considerada legal pela Suprema Corte. 

A chegada de Biden ao poder, visto como um presidente menos hostil à imigração, o fim da pandemia e a crise econômica na América Latina têm levado milhares de imigrantes à fronteira dos EUA. Desde outubro do ano passado, 1,5 milhão de pessoas foram detidas ao tentar entrar ilegalmente no país. A conta de especialistas é que para cada um detido, outros dois conseguem passar.

Diferentemente dos haitianos, os brasileiros evitam a travessia pela barragem de Morelos, onde a maioria que chega vem da América Central. A 20 minutos de distância, há um trecho de caminhada mais longa e menos visível. “Na barragem, é complicado se a água estiver alta. Por onde os brasileiros cruzam, é menos perigoso. Isso quando conseguem atravessar o deserto”, conta um dos guardas, que nos últimos meses aprendeu a dizer “obrigado” em português. l

 

LEITURA EFETIVA É FEITA SOBRE PAPEL

 

‘Ainda acho que a leitura efetiva é feita sobre papel. Idade? Talvez’, escreve Karnal

Leandro Karnal


‘Olho para as folhas que se amontoam no chão após a batalha cotidiana contra a ignorância. Por hoje, venci a luta’, escreve KarnalHELCIO NAGAMINE/ESTADÃO

Pablo Picasso decidiu fazer uma colagem. As vanguardas estavam colocando a arte tradicional de pernas para o ar. O ano era 1913. O espanhol esboçou uma garrafa de Vieux Marc na tela, rabiscou um vidro e colou um pedaço de jornal. Cubismo sintético! Há várias versões da ideia, quase sempre com a possibilidade de ler o título do periódico, como o Figaro. Ele imortalizou aquele papel impresso nas paredes de museus. Evitou a sina do diário: servir para embrulhar o peixe na feira no dia seguinte.

Os pescados são proteínas nobres. Houve um declínio: hoje, quem assina jornal físico é disputado no prédio em função das necessidades fisiológicas dos gatos e dos cachorros. Já sofri muito assédio em condomínios nestes últimos anos. “O senhor joga fora os jornais que assina? Eu tenho um labrador que…”

Hábito de ler o ‘Estadão’ no papel passa de pai para filho na família de Fábio (à esq.) e Theodoro AbreuMARCELO CHELLO/ESTADÃO

Talvez seja uma particularidade minha. Nunca li um livro grande em formato digital. Descobri muitos no computador, curtos e bons. Eu não seria capaz de ler a EneidaOs Sertões ou Guerra e Paz nas telas. Minha cultura teve por base a celulose. A tinta do noticiário manchava os dedos. Após uma leitura do que queríamos, havia provas do ato, indícios de culpa. A memória do lido ficava nos dedos também. Claro, quem teve o privilégio de um mordomo inglês saberá que basta passar a ferro todas as páginas do diário e elas não tingirão a mão do leitor. Nunca tive um funcionário assim.

Um jornal denso como o Estadão implica uma liturgia. Há os que começam por uma parte específica. Outros seguem rigorosa ordem de cadernos pelas letras e das páginas pelos números. Aprendi que, com o passar do tempo, lemos as idades nos necrológios, uma forma difusa de antecipar fatos e médias etárias: “Falecido ontem, com 63 anos, deixa mulher e filhos”. “Nossa”, eu penso, “cinco anos a mais do que eu…”

Eu sempre inicio pelos editoriais. Dali, em geral, parto para cultura. Sigo com os textos e fotos do setor internacional, depois nacional e metrópole. O que vem em seguida depende da umidade relativa do ar. Pode ser um demorado exame no caderno sobre automóveis para ver algo novo ou um mergulho na parte de economia. Já me surpreendi analisando balanços de empresas. Uma capa promocional chamativa pode me ocupar algum tempo. Um leilão judicial aguça meus piores instintos. Há algo de podre no reino da Dinamarca de alguém. A letra está pequena em um edital? Imagino conspirações do jurídico e da contabilidade das empresas para que nada se revele.

E você, querida leitora e estimado leitor, pula algo sempre? Tem uma ordem? Seu jornal tem uma maneira ideal de ser lido? O costume pode revelar tudo, da idade à formação.

Um jornal denso como o Estadão implica uma
liturgia. Há os que começam por uma parte
específica. Outros seguem rigorosa ordem de
cadernos pelas letras e das páginas pelos números

A liturgia do papel incluía uma área ao redor da poltrona com páginas espalhadas. Reorganizá-las demandava um TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) agudo e persistente. Como a rolha de um vinho antigo, parece que nunca volta à forma antiga. Ouvi falar de homens irritados pelo seu jornal não ter o alinhamento preciso de texto virgem.

O que eu amo no periódico físico? Recortar os artigos que chamaram minha atenção: uma crônica, uma notícia, algo que eu deseje guardar por mais tempo. Acumulam-se em pastas e continuam a me inspirar por anos. Viram um álbum de fotografias escritas e, como toda memória, reinventam significados pelos anos seguintes.

Ainda acho que a leitura efetiva é feita sobre papel. Idade? Talvez. Quando abro o Estadão físico, não entram mensagens, não saltam propagandas e o sistema não pede para ser atualizado. Meu cérebro se entrega à absorção de cronistas, notícias, fotos e gráficos. Termino sabendo mais, assimilei novos dados e, ainda, tenho os dedos ungidos pela tinta. Preciso me levantar, tomar um café e lavar as mãos.

Fui alvo de uma metamorfose cognitiva. A memória é outra. O rito se completou. Sorrio e olho para as folhas que se amontoam no chão após a batalha cotidiana contra a ignorância. Por hoje, apenas hoje, eu venci a luta. Amanhã tem mais. Esta é sempre a minha esperança, pelo menos desde 1875. Sim, eu sou muito mais velho do que pareço e o Estadão está rejuvenescido.