Pandemia e crise econômica na América Latina agravam crise migratória nos EUA
Beatriz Bulla, enviada especial a Yuma, EUA, O Estado de S.Paulo
Há um rastro de cadarços, peças de roupa e sapatos de criança por quilômetros na estrada de terra que separa México e EUA. São uma hora da tarde em Yuma, no Arizona. A temperatura de 20º C é amena, comparada ao calor do verão. Rompendo a monotonia do deserto, um grupo caminha em fila, com sacolas e mochilas na cabeça. Com os cabelos presos em um rabo de cavalo, tênis e camiseta rosa, a menina brasileira de 10 anos vai à frente do irmão mais velho e dos pais, como se quisesse encerrar logo um tormento.
Ao avistar a caminhonete branca dos agentes americanos, adultos e crianças querem duas coisas: água e a confirmação de que chegaram aos EUA. “De onde vocês são?”, pergunta o guarda de fronteira, em espanhol. “Passaportes”, ordena ao saber que são brasileiros. Enquanto checa os documentos, manda que todos retirem os cadarços dos sapatos, os cintos e qualquer coisa que possa ser usada como corda. Anéis, correntes e dinheiro devem ser guardados. Na pressa, muita coisa fica pelo caminho. Está explicado o rastro de peças infantis em meio ao deserto.
Em poucas horas, pelo menos cinco menores brasileiros estavam entre os detidos na fronteira, além de dezenas de crianças de diferentes nacionalidades. Caminhando atrás da filha, Maria (o nome real dos migrantes brasileiros é omitido, por temerem represálias) conta que a família, como todo o grupo, veio de Minas Gerais. PUBLICIDADE
Os guardas determinam que ela não fale mais com a reportagem e pedem que os brasileiros subam na parte traseira na caminhonete. O pai retruca: “As crianças também? Na caçamba?”. O guarda olha de novo aos menores e concorda que sentem no banco de trás do veículo, protegidos. A família de Maria é uma das mais de 34,7 mil brasileiras detidas com parentes – filhos, pais idosos e cônjuges – na fronteira americana desde outubro de 2020, de um total de 50 mil brasileiros que chegaram aos EUA ilegalmente pelo México. O governo americano não detalha quantos menores chegam com parentes. “Há um número muito significativo de brasileiros e venezuelanos em Yuma”, diz um porta-voz da patrulha da fronteira (CBP, na sigla em inglês).
Há também menores brasileiros desacompanhados. Em um ano, foram 198 – mais da metade entrou por Yuma. A maior parte, segundo fontes nos dois países, é de adolescentes ao redor dos 16 anos. Em 12 de outubro, dia das crianças no Brasil, guardas que faziam a patrulha na barragem de Morelos avistaram dois pequenos pontos cor de rosa. Eram duas irmãs hondurenhas, de 4 e 6 anos, abandonadas por coiotes. A mais velha carregava uma folha sulfite com o nome de uma “tia”, que supostamente vive nos EUA. No dia seguinte, uma menina de 7 anos de El Salvador foi abandonada por um coiote na cidade vizinha, chamada El Centro.
A orientação é para que os menores desacompanhados sejam reunidos com parentes o quanto antes. Em mais de 80% dos casos, a criança tem alguém que já vive nos EUA. Em 40% das vezes, esse parente é um dos pais ou responsável legal.
As famílias também têm tratamento diferente dos adultos que chegam sozinhos. É mais fácil, especialmente quando há menores, passar pelo processo de pedido de asilo em liberdade. É o que fez com que Silvia, brasileira que hoje vive em El Paso, fosse pressionada por coiotes para permitir que dois de seus três filhos cruzassem acompanhando outros adultos. A brasileira aceitou em troca da promessa de ganhar a travessia sem pagar. Antes de embarcar, ela quis voltar atrás, mas foi ameaçada de morte.
Na entrada, um exame de DNA detectou que as crianças não eram filhas dos adultos. Silvia, que entrou depois nos EUA, foi acusada de tráfico de pessoas e presa. Os filhos, incluindo um bebê de 6 meses, foram levados para um centro de detenção, segundo César Rossatto, cônsul honorário do Brasil em El Paso, no Texas, que ajudou na defesa da brasileira. Ela agora responde em liberdade ao processo, para que possa ter a guarda dos filhos. “Essas pessoas estão correndo um risco grande. Alguns acham que vale, mas outros não sabem o que os aguarda, vêm iludidos”, disse o cônsul Marcelo Dantas.
O futuro de quem se entrega aos agentes é incerto. Quando as funcionárias de um pequeno café brasileiro em Yuma chegaram para trabalhar, na segunda-feira, estranharam ao ver um recado deixado de madrugada na caixa postal. De Massachusetts, com voz afobada, uma brasileira telefonava buscando quem pudesse ajudar um casal de amigos detido na travessia. A família foi presa. Nos 16 dias em que mãe, pai e dois filhos passaram em um centro de detenção, pegaram covid. Foram levados para cumprir isolamento em um hotel, mas estavam debilitados. Hoje, eles aguardam o pedido de asilo em liberdade vigiada.
Outros não têm a mesma sorte. Cerca de 20% são deportados em voos semanais. Antes disso, são levados a centros de detenção, onde permanecem por até oito meses. “Quando liberados, ficam com monitoramento facial e eletrônico muito rígido e data marcada na Justiça. A pessoa chega sem dinheiro e, de repente, precisa enfrentar um juiz. O tradutor é caro, o advogado é caro. É outro processo que começa ali, quando eles também podem também ser deportados ao final”, disse Rossatto. “O número de brasileiros chegando é inédito, porque a situação no Brasil é ruim. Basta ver o preço da comida e do gás.”
Para os deportados, o sacrifício continua. Os voos costumam sair do Estado da Louisiana – a mais de 20 horas de carro de Yuma. No entanto, ao avistar os EUA pelo deserto, tudo isso parece distante. “Qualquer coisa que aconteça aqui será melhor do que ficar lá”, disse Maria, ao lado dos dois filhos, antes de subir na caminhonete dos agentes da patrulha e desaparecer.
A maioria dos que consegue cruzar a pé a fronteira comemora ao ver os agentes americanos, como Maria e sua família. É hora de se entregar para dar início formal ao processo de permanência nos EUA.
Um casal explica o roteiro: em Governador Valadares, eles pegaram um ônibus até o aeroporto de Belo Horizonte. Depois, um voo para Guarulhos, outro para a Cidade do México, onde dormem duas noites, e um avião para Mexicali, já na fronteira com os EUA. A cidade, que é rota do tráfico de drogas, recebe a maioria dos brasileiros que buscam o sonho americano. Dali, os imigrantes seguem de carro até Los Algodones para a travessia a pé até Yuma.
O mesmo casal, que prefere não se identificar, diz ter pagado US$ 15 mil (mais de R$ 80 mil) a coiotes, em um acerto feito no Brasil. O dinheiro veio de economias e empréstimos, que eles planejam quitar em breve com o emprego que dizem ter em New Jersey, onde amigos trabalham com faxina e construção civil.
Alguns negam, na chegada, ter contratado coiotes para a travessia, mas os “guias” que levam o grupo são visíveis do lado americano. Com voos rasantes, helicópteros dos EUA tentam encontrar os criminosos que conduzem os imigrantes. Muitos, como os venezuelanos, se queixam da extorsão que começa já no aeroporto, com pedido de propina por funcionários mexicanos que ameaçam barrar a passagem.
“Nos EUA, sabemos que, como venezuelanos, temos tratamento diferenciado, porque eles entendem a gravidade da nossa situação. Mas, para chegar até aqui, passamos por extorsões”, afirma um deles.
Em Yuma, a cena da chegada de imigrantes se repete frequentemente, à noite ou à luz do dia. Os latino-americanos caminham pela região, onde uma grade de ferro que separa os EUA do México é interrompida em dois trechos, para preservação da reserva indígena Copocah. No primeiro ponto, próximo a uma barragem, é possível atravessar pelas águas do Rio Colorado.
Do lado americano, guardas acompanham a movimentação de carros e ônibus em Los Algodones, onde muitos desembarcam e descem a pé um barranco que dá acesso à fronteira. “Olhe aí, você terá mais clientes hoje”, diz um agente ao outro, ao ver um pequeno grupo se equilibrando na ribanceira. Cerca de 30 minutos depois, eles chegam enlameados até os joelhos.
Sujos, suados, com lágrimas nos olhos e implorando por água, um grupo de 49 pessoas se entrega aos americanos. Entre eles, sete crianças da Nicarágua, alguns venezuelanos, cubanos e duas famílias do Haiti. Eles viajaram por dois meses, dizem, de ônibus e a pé, desde a América Central.
Bebê brasileiro
Exausto e desorientado, um haitiano que se mudou para o Brasil em 2019, carrega uma sacola com roupas e uma lata de leite Nan. Sua mulher traz no colo uma bebê de 9 meses, Lovelie, nascida no Brasil. Ele conta que migrou porque as coisas não vão bem no Brasil. “Eles exigem experiência de trabalho. Sem experiência, não contratam”, disse. “Morava em um lugar perigoso em Curitiba, onde matavam gente toda a semana. Não conseguia mais dinheiro para alugar outra casa.”
“Todos os dias, há muitas demandas no consulado de brasileiros com necessidade de documentos, pessoas que se machucam na travessia e são abandonadas pelos coiotes. Há casos de pessoas que não são encontradas, que morrem com mais frequência do que é noticiado”, disse Marcelo Dantas, cônsul do Brasil em Los Angeles.
A imigração para os EUA foi praticamente interrompida em 2020, no auge da pandemia, pelas restrições de viagem e pela política do governo de Donald Trump. Com o chamado “Título 42”, Trump proibiu a entrada de imigrantes e requerentes de asilo, usando a saúde pública como justificativa.
Joe Biden manteve a medida e deve ser obrigado a retomar a política de Trump de mandar de volta ao México requerentes de asilo que esperam pela análise do caso na Justiça americana. Conhecida como “Permaneça no México”, a regra foi considerada legal pela Suprema Corte.
A chegada de Biden ao poder, visto como um presidente menos hostil à imigração, o fim da pandemia e a crise econômica na América Latina têm levado milhares de imigrantes à fronteira dos EUA. Desde outubro do ano passado, 1,5 milhão de pessoas foram detidas ao tentar entrar ilegalmente no país. A conta de especialistas é que para cada um detido, outros dois conseguem passar.
Diferentemente dos haitianos, os brasileiros evitam a travessia pela barragem de Morelos, onde a maioria que chega vem da América Central. A 20 minutos de distância, há um trecho de caminhada mais longa e menos visível. “Na barragem, é complicado se a água estiver alta. Por onde os brasileiros cruzam, é menos perigoso. Isso quando conseguem atravessar o deserto”, conta um dos guardas, que nos últimos meses aprendeu a dizer “obrigado” em português. l
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