‘Ainda acho que a leitura efetiva é feita sobre papel. Idade? Talvez’, escreve Karnal
Leandro Karnal
Pablo Picasso decidiu fazer uma colagem. As vanguardas estavam colocando a arte tradicional de pernas para o ar. O ano era 1913. O espanhol esboçou uma garrafa de Vieux Marc na tela, rabiscou um vidro e colou um pedaço de jornal. Cubismo sintético! Há várias versões da ideia, quase sempre com a possibilidade de ler o título do periódico, como o Figaro. Ele imortalizou aquele papel impresso nas paredes de museus. Evitou a sina do diário: servir para embrulhar o peixe na feira no dia seguinte.
Os pescados são proteínas nobres. Houve um declínio: hoje, quem assina jornal físico é disputado no prédio em função das necessidades fisiológicas dos gatos e dos cachorros. Já sofri muito assédio em condomínios nestes últimos anos. “O senhor joga fora os jornais que assina? Eu tenho um labrador que…”
Talvez seja uma particularidade minha. Nunca li um livro grande em formato digital. Descobri muitos no computador, curtos e bons. Eu não seria capaz de ler a Eneida, Os Sertões ou Guerra e Paz nas telas. Minha cultura teve por base a celulose. A tinta do noticiário manchava os dedos. Após uma leitura do que queríamos, havia provas do ato, indícios de culpa. A memória do lido ficava nos dedos também. Claro, quem teve o privilégio de um mordomo inglês saberá que basta passar a ferro todas as páginas do diário e elas não tingirão a mão do leitor. Nunca tive um funcionário assim.
Um jornal denso como o Estadão implica uma liturgia. Há os que começam por uma parte específica. Outros seguem rigorosa ordem de cadernos pelas letras e das páginas pelos números. Aprendi que, com o passar do tempo, lemos as idades nos necrológios, uma forma difusa de antecipar fatos e médias etárias: “Falecido ontem, com 63 anos, deixa mulher e filhos”. “Nossa”, eu penso, “cinco anos a mais do que eu…”
Eu sempre inicio pelos editoriais. Dali, em geral, parto para cultura. Sigo com os textos e fotos do setor internacional, depois nacional e metrópole. O que vem em seguida depende da umidade relativa do ar. Pode ser um demorado exame no caderno sobre automóveis para ver algo novo ou um mergulho na parte de economia. Já me surpreendi analisando balanços de empresas. Uma capa promocional chamativa pode me ocupar algum tempo. Um leilão judicial aguça meus piores instintos. Há algo de podre no reino da Dinamarca de alguém. A letra está pequena em um edital? Imagino conspirações do jurídico e da contabilidade das empresas para que nada se revele.
E você, querida leitora e estimado leitor, pula algo sempre? Tem uma ordem? Seu jornal tem uma maneira ideal de ser lido? O costume pode revelar tudo, da idade à formação.
Um jornal denso como o Estadão implica uma
liturgia. Há os que começam por uma parte
específica. Outros seguem rigorosa ordem de
cadernos pelas letras e das páginas pelos números
A liturgia do papel incluía uma área ao redor da poltrona com páginas espalhadas. Reorganizá-las demandava um TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) agudo e persistente. Como a rolha de um vinho antigo, parece que nunca volta à forma antiga. Ouvi falar de homens irritados pelo seu jornal não ter o alinhamento preciso de texto virgem.
O que eu amo no periódico físico? Recortar os artigos que chamaram minha atenção: uma crônica, uma notícia, algo que eu deseje guardar por mais tempo. Acumulam-se em pastas e continuam a me inspirar por anos. Viram um álbum de fotografias escritas e, como toda memória, reinventam significados pelos anos seguintes.
Ainda acho que a leitura efetiva é feita sobre papel. Idade? Talvez. Quando abro o Estadão físico, não entram mensagens, não saltam propagandas e o sistema não pede para ser atualizado. Meu cérebro se entrega à absorção de cronistas, notícias, fotos e gráficos. Termino sabendo mais, assimilei novos dados e, ainda, tenho os dedos ungidos pela tinta. Preciso me levantar, tomar um café e lavar as mãos.
Fui alvo de uma metamorfose cognitiva. A memória é outra. O rito se completou. Sorrio e olho para as folhas que se amontoam no chão após a batalha cotidiana contra a ignorância. Por hoje, apenas hoje, eu venci a luta. Amanhã tem mais. Esta é sempre a minha esperança, pelo menos desde 1875. Sim, eu sou muito mais velho do que pareço e o Estadão está rejuvenescido.
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