Os efeitos sobre a soberania nacional
Mais que as guerras, foram as
pandemias que causaram redução da população no último milênio e trouxeram
consigo o fim de costumes e o aparecimento de outros
A gripe espanhola contagiou, entre 1918 e 1920,
cerca de 500 milhões de pessoas, um quarto da população mundial da época.
Provocou entre 17 milhões e 50 milhões de óbitos, tornando-se uma das epidemias
mais mortais da história da humanidade. Cem anos depois, chega o novo
coronavírus.
Mais que as guerras, foram as pandemias que
causaram redução da população no último milênio e trouxeram consigo o fim de
costumes e o aparecimento de outros. O medo e a morte que atingem em larga
escala a população mundial marcaram a história do Renascimento Italiano, que
encontrou na peste negra do ano de 1348 um motivo sério para quebrar
paradigmas.
O florentino Giovanni Boccaccio escreveu
“Decamerão” no contorno da peste em Florência. Apesar de o seu conteúdo ter
sido considerado libertino por muitos séculos, ergue-se como uma das maiores
inovações literárias de todos os tempos. Nele, Boccaccio coloca o homem comum
no papel de protagonista, revelando seus sentimentos, suas experiencias, suas
tendências, enquanto deixa heróis e mitos fora da cena. Deu-se início na
literatura aos temas normais, da beleza, da natureza, dos relacionamentos, da
arte de viver.
Não se pode, evidentemente, afirmar que a pandemia
foi a única responsável por essa fase áurea florentina, embora fique claro o
contributo que deu para quebrar o gelo, abrir a visão e iluminar, depois de mil
anos de era medieval e escritura de ordem épica ou teológica.
Boccaccio descreve a permanência em isolamento,
atual nestes dias, de sete moças e três moços de famílias abastadas numa rica
casa de campo. Em alternância, a cada dia um dos “isolados” conta uma história
de sua autoria, sem economia de amores, experiências e percepções que nunca
teriam lugar na normalidade medieval. A catástrofe na cidade descongelou os
sentimentos.
Florência regrediu de 130 mil para 30 mil
habitantes. Aplicando o resultado em idênticas proporções a Belo Horizonte, a
capital perderia, em alguns meses, 1,9 milhão de seus atuais habitantes. Os
números assustam.
A Covid-19 é o primeiro fenômeno pandêmico em era
de conectividade global. Nesse contexto, a China, de onde partiu o vírus que
provoca milhares de mortes e paralisa as economias de meio mundo,
paradoxalmente já se mostra como país mais beneficiado. Saiu do surto e ainda
aparece como única alternativa de suprimentos de insumos e equipamentos
hospitalares. Os demais países abdicaram dessa produção pela competitividade da
manufatura chinesa que saiu de uma estratégia de adiamento de direitos
trabalhistas e sociais, comuns no ocidente. A China monopoliza, na atualidade,
diferentes setores de produção.
No caso dos insumos hospitalares, são vendidos por
preços de dez até 20 vezes maiores do que se cobrava no começo do ano. Mesmo
assim, é preciso pagar antecipado para entrar numa fila incerta e sem prazo
garantido de entrega.
A guerra para comprar produtos chineses, deixando
alguns países gravemente vulneráveis, deve mudar o comportamento de outras
potências econômicas. O que ocorre com os produtos da linha de saúde pode
acontecer para outros setores.
Está em curso a desvalorização e a falência de
empresas ocidentais, que surgem como bons negócios para quem está capitalizado,
exatamente na medida das corporações chinesas que estão adquirindo o que
aparece pela frente.
Os benefícios sociais do governo brasileiro,
distribuídos nesses primeiros momentos de isolamento
e paralisação das atividades, poderão brevemente levar à desagregação
econômica nacional, que assiste à queda da arrecadação de impostos. O momento é
delicado.
A China ensina aos demais países a importância de
se recuperar a soberania sobre a produção industrial que se segue da perda da
capacidade tecnológica. A Covid-19 coloca os países ocidentais em alerta total.
Por outro lado, nos círculos intelectuais, a discussão
levanta a teoria – ridicularizada até alguns anos atrás – da desaceleração
econômica “feliz”. Quer dizer, queda dos consumos, especialmente os supérfluos.
Novos modelos de melhoria das condições de vida sem aumentar o consumo de bens,
mas aprimorando as relações sociais, os serviços coletivos e a qualidade
ambiental.
Mais
pobres, mas felizes. Parece até utopia uma construção de equilíbrios que siga
movimentos coordenados no nível mundial com o objetivo comum de mudar o
paradigma dominante do consumismo como fonte de bem-estar.