Estrelas Além do Tempo' traz à tona
três mulheres negras escondidas na história dos EUA
Longa faz resgate
intimista da história não contada
ATLANTA - Com uma vitória surpreendente no Screen
Actors Guild Awards - SAG (de melhor elenco) e uma bilheteria que já passa dos
US$ 100 milhões nos Estados Unidos, Estrelas Além do Tempo ganhou fôlego na
corrida pelo Oscar, no qual concorre a três estatuetas - filme, atriz
coadjuvante (Octavia Spencer) e roteiro adaptado.
O
longa-metragem dirigido por Theodore Melfi, que estreia no Brasil nesta
quinta-feira (2), conta uma história real, quase desconhecida até aqui, das
mulheres negras que fizeram parte do programa espacial americano nas décadas de
1950 e 1960, quando as leis de segregação racial já estavam em vigor. “É isso
que é racismo. É isso que é sexismo. Se definirmos o racismo ou o sexismo como
tornar algo mais valorizado do que outra coisa, a verdade é que essa história
não foi valorizada”, disse Melfi numa visita ao set em Atlanta, onde a produção
foi rodada.
Estrelas
Além do Tempo foca em três personagens: Katherine Johnson (Taraji P. Henson),
gênio da matemática responsável pelos cálculos que tornaram John Glenn o
primeiro americano no espaço, Dorothy Vaughan (Octavia Spencer), supervisora
informal dos “computadores negros” (havia também uma ala de mulheres brancas
trabalhando em cálculos) e Mary Johnson (Janelle Monáe), que se tornou a
primeira física negra da agência espacial. O filme injeta bastante humor no drama
das mulheres, que sofriam preconceito e tinham, por exemplo, de correr pelo
câmpus todo para ir ao banheiro, já que não havia aqueles destinados a mulheres
negras no prédio onde passaram a trabalhar. Ou entrar na justiça para ter o
direito de estudar numa escola para brancos. “Não faz sentido para mim não
encontrar comédia em tudo”, afirmou Melfi. “Mas a ideia era ser uma história
inspiradora, que junta as pessoas em vez de separar, algo de que o mundo está
precisando”, completou o diretor.
A força está com elas. Octavia Spencer, Taraji P.
Henson e Janelle Monáe
Filmes
sobre mulheres, ainda mais mulheres negras, são raridade em Hollywood. “Muito
do meu trabalho é procurar mercados mal servidos e eu acho que as mulheres
estão mal servidas no mercado cinematográfico”, lembrou a produtora Donna
Gigliotti. “Além de ser uma história incrível, para mim era importante expor
imagens positivas de mulheres negras, o que é incomum em produções de
Hollywood. Elas são engenheiras e matemáticas. Normalmente, nos filmes, são
escravas e empregadas.”
A
mistura rara de elementos fez com que muita gente fizesse questão de
participar. Melfi se retirou da disputa para dirigir o próximo Homem-Aranha
para fazer Estrelas Além do Tempo, e Pharrell Williams, que cresceu a poucos
quilômetros de onde a história se passou, no Estado da Virginia, entrou como
produtor e, de quebra, compôs duas músicas.
“As
coisas estão mudando, mas demorando mais tempo do que gostaríamos”, disse a
cantora Janelle Monáe, que lançou sua carreira de atriz com este filme e
Moonlight - Sob a Luz do Luar, de Barry Jenkins, que concorre a oito Oscars.
“Ainda não recebemos o mesmo salário que os homens. Mulheres de minorias ganham
ainda menos do que as brancas. E as mulheres trans ainda nem entram no debate.
Há muita desigualdade, obstáculos que precisamos superar. Espero que o
espectador possa ver essa história e sentir mais compaixão por aqueles que são
considerados os outros, ou a minoria”, ressalta ainda Janelle.
Num
momento de tanta desunião nos Estados Unidos, parece a mensagem certa, sem
lição de moral.
Pode
ser mera coincidência, mas havia em Os Eleitos, de Philip Kaufman, de 1983 - o
maior filme sobre a epopeia espacial dos EUA -, uma cena emblemática. Chuck
Yeager, o piloto rejeitado pela Nasa por seu individualismo, sobe mais alto que
qualquer outro homem pilotando um jato, e em paralelo com as nuvens que ele
atravessa existe a dança da mítica Miss Sally Rand. Dançarina de strip-tease,
ela ficou famosa na ‘América’ pelas plumas que a envolviam. Há, agora, em
Estrelas Além do Tempo, de Theodore Melfi, outra cena de montagem paralela, e
não pode ser só coincidência.
Os
Eleitos era, até certo ponto, sobre um excluído (Chuck Yeager). O filme de
Melfi é sobre excluídas, no plural. No filme dele, Kevin Costner detecta um
problema de cálculo pouco antes do lançamento de John Glenn. O próprio Glenn,
já na plataforma, sugere que ‘the lady’, a moça, refaça os cálculos. A ‘moça’ é
Katherine Johnson, gênio da matemática, um dos computadores humanos da Nasa.
Naqueles tempos heroicos da computação, ‘Kat’ corrigia a máquina. De salto
alto, a atriz Taraji P. Henson corre com seus cálculos refeitos. Chega a tempo
de salvar o astronauta, mas a porta lhe é fechada na cara. Pois Katherine é
negra e os protocolos da Nasa não permitem a entrada de mulheres, muito menos
negras.
Para
urinar, em tempos de segregação racial, Katherine tem de correr muito até o seu
banheiro sem conforto. Por isso, muitas vezes, Al Harrison/Kevin Costner, não a
encontra quando procura. E ele se exaspera. ‘Al’ é a soma de três homens que
existiram de fato na Nasa dos anos 1960. Kat, Dorothy Vaughn e Mary Jackson,
interpretadas por Taraji, Octavia Spencer e Janelle Monáe, são figuras reais.
Dorothy terminou dando nome a um edifício da Nasa. Mas, na época, eram figuras
ocultas (Hidden Figures, título original). Como mulheres e negras, por mais
brilhantes que fossem, eram vítimas de um sistema baseado na exclusão.
Havia
o banheiro para negros, a cafeteira para negros. Talvez de forma muito
hollywoodiana, ou seja, romanceada, seja preciso um Kevin Costner, com tudo o que
a persona desse ator representa, para abrir a porta, ou um garoto radiante,
cheio de esperança como Glenn, que já vive no futuro, para enxergar ‘beyond’.
Além. E é sobre isso que o filme fala. Sobre as lutas de mulheres negras para
se afirmar no mundo preconceituoso. E o preconceito não é só dos brancos - de
Kirsten Dunst, que acha que não é racista, como lhe diz Octavia Spencer, e as
duas têm belas cenas depois. É um pouco do marido de Mary e do pretendente de
Katherine, interpretado por Mahershala Ali, que acaba de ser premiado no SAG
Award (por Moonlight). É um filme polifônico, nada simplista e muito bem
realizado e interpretado. Não por acaso, ganhou o prêmio de elenco do SAG
Awards.
Foto: Divulgação