Indonésia pagará preço
político alto pelo direito de ser selvagem
Carlos Eduardo de
Oliveira Vasconcelos
Depois do fuzilamento do brasileiro Marco Archer e
outros em janeiro, Rodrigo Muxfeldt Gularte e outros sete condenados tiveram
o mesmo destino, apesar do brasileiro ter sido diagnosticado com
esquizofrenia e de a lei indonésia proibir execução nessas condições. Estima-se
que mais de 130 presos estejam no corredor da morte no país asiático.
Não vou aqui falar
da irracionalidade e da inutilidade do tratamento exclusivamente penal do grave
problema das drogas, pois o que temos por certo é que seu tráfico é crime grave
punido com duras penas tanto no Brasil quanto na Indonésia.
O que causa, ou
deveria causar, comoção é a insistência da Indonésia em aplicar a pena de morte
a despeito da intensa pressão internacional não apenas do Brasil, mas também da
Austrália, da Noruega, de outros países que têm seus cidadãos entre os
condenados, da Anistia Internacional e das Nações Unidas, que mais uma vez
apelou ao dirigente da Indonésia que declare uma moratória e considere a
abolição da pena capital.
O governo indonésio
responde invariavelmente com argumentos de "soberania nacional",
alheio ao consenso internacional de que a pena de morte constitui um tipo de
pena cruel, desumana e degradante. No caso da Indonésia, a pena de morte,
adicionalmente, traduz um injustificável escárnio à dignidade humana.
A Folha, de 5 de abril passado, publicou extensas matérias
sobre a pena de morte e a venda de drogas na paradisíaca ilha indonésia de
Bali, das quais se conclui que o único efeito da criminalização é o aumento da
tarifação das propinas cobradas.
Recomendo fortemente
a leitura desses artigos àqueles brasileiros que, em tantos comentários de
blogs e sites aplaudiram as execuções, às vezes impiedosamente, na suposição de
que "na Indonésia a lei funciona". Não é bem assim.
A Indonésia é um
país selvagem em termos de lei penal e digo isso por experiência própria, como
relatarei. Das várias reportagens destaco algumas assertivas mais impactantes:
"traficantes não encontram dificuldade em abordar potenciais clientes na
noite de Bali"; "a lei que manda matar não inibe o tráfico, mas
aumenta a propina"; "presídio Kerobokan é o lugar mais seguro para o tráfico de
drogas"; "um inglês saiu do julgamento com uma
sentença de seis anos por porte de ecstasy. Quando os papeis dele chegaram a
Kerobokan, a pena era de três anos. O que aconteceu no caminho: R$ 110
mil".
Alguns traficantes
lhe vendem a droga para, em seguida, avisarem a polícia. O brasileiro Archer
tentou vender um apartamento no Rio para levantar um milhão de reais para
comprar a comutação de sua pena. O assédio de traficantes nas ruas, hotéis,
aeroportos, taxis e pontos turísticos é tal faz supor que a oferta é maior do
que a procura.
Há advogados
especializados na negociação de propinas, que também incluem os jornalistas,
porque se o caso chega à imprensa a cotação aumenta. E por aí vai.
Direito selvagem
Na pequena
experiência que tive na reconstrução de Timor Leste sob os auspícios das Nações
Unidas, tive a oportunidade de familiarizar-me um pouco com o direito
indonésio. Participei da reedificação das instituições jurídicas e das
primeiras investigações das atrocidades indonésias durante os 26 anos de
ocupação de Timor-Leste, em que um país de 200 milhões de habitantes (hoje 240
milhões) quase dizimou uma pequena nação de 1 milhão de habitantes.
A Indonésia utilizou
largamente a técnica de combate denominada escudo humano, crime de guerra
segundo a IV Convenção de Genebra, que consiste em fazer marchar à frente das
colunas de seu exército familiares do inimigo, mulheres, crianças e velhos,
enquanto disparavam fogo pesado contra os timorenses que lutavam por sua
independência.
Como é usual em
transições políticas para evitar vácuos normativos, o nascente Estado, por
deliberação da Administração Transitória das Nações Unidas, aplicava a
legislação indonésia até que o país contasse com um legislativo eleito apto a
elaborar novas leis.
Ocorre que o Código
de Processo Penal indonésio era tão selvagem, tão inquisitivo, tão incompatível
com o devido processo legal, com os princípios das Nações Unidas, com um mínimo
de dignidade para o indivíduo suspeito de uma infração penal, que foi preciso
que as Nações Unidas improvisassem às pressas uma resolução que fizesse as
vezes de processo penal para funcionar para o cotidiano dos crimes comuns e
para as grandes atrocidades.
Noutros termos, o
direito indonésio não é selvagem apenas na prática, como frequentemente ocorre
no Brasil, mas também o é em teoria. No país que possui a polícia secreta mais
capilarizada do mundo, de fazer inveja às imaginações mais férteis de ficções
sobre o macartismo e o stalinismo, não sobra muito sequer para um arremedo de
estado de direito.
Desafio o encarregado
de negócios da Indonésia no Brasil, que tem entre suas missões a de desfazer
incompreensões e corrigir desinformação sobre seu país, no sentido de estreitar
as relações amistosas entre os dois países, a corrigir equívocos em minhas
assertivas, certo de que não lhe faltará espaço na grande imprensa brasileira
para tanto.
Pois bem, esse é o
país que se sente com superioridade moral (ou cinismo) para condenar indivíduos
à morte por tráfico de drogas, inclusive um diagnosticado com esquizofrenia,
depois de estarem no corredor da morte por tempo equivalente à pena máxima
prevista para o tráfico de drogas no Brasil.
Talvez sua
inconsciência tenha amenizado seu sofrimento e sua dor, pois o outro, segundo
relatos, soube de tudo até o último momento, teve crise de choro, de diarreia -
logo assepsiado à distância com jatos d"água, porque precisava ser
conduzido à morte limpo -, para depois seguir para o crematório. Até a última
visita de parente ocorreu mediante propina.
Dirão alguns, se não
muitos, "mas é um traficante, e os que morreram das drogas que ele
traficou?". A isso eu respondo: qual a utilidade dessa morte ritualizada
em relação à outra? Tem a sociedade e o Estado o direito de matar por vingança
apenas, sem utilidade?
Por tudo isso,
considero corretíssimas as iniciativas diplomáticas do governo brasileiro, e
bem assim a iniciativa da Secretaria de Cooperação Internacional do Ministério
Público Federal de tentarem reverter a primeira execução ainda em janeiro,
embora frustradas todas.
Se a Indonésia pretende
aferrar-se ao seu direito de ser selvagem em nome da soberania nacional, deve
pagar um preço político e diplomático alto por isso internacionalmente.