Editorial
Por
Gazeta do Povo
Imagem de arquivo de Cruz Machado, uma das cidades mais pobres do Paraná.| Foto: Brunno Covello/Arquivo/Gazeta do Povo
Toda
pessoa com o mínimo de sensibilidade humanitária e de amor ao próximo
gostaria de viver numa sociedade em que todos seus habitantes tivessem
um padrão de vida digno, sem miséria e sem pobreza, isto é, onde todos
sem exceção tivessem atendidas suas necessidades de alimento, moradia,
saúde, educação, cultura e lazer. A desigualdade, nesse caso, ainda
existiria; entretanto, ainda que alguns tivessem elevado padrão de vida,
ninguém estaria em miséria, sem habitação digna, com saúde precária,
analfabetismo e nenhum acesso a bens culturais e de lazer. O problema
não está na existência de classes diferentes por nível de renda, mas sim
na existência de miséria e pobreza.
Segundo parâmetros internacionais, inclusive do Banco Mundial, são considerados pobres os que vivem com até US$ 5,50 por dia, e como miseráveis os que vivem com US$ 1,90 por dia. Essas faixas são comparativas com a renda média mundial e os preços médios dos bens e serviços; porém, mesmo feitas com técnicas de cálculo, significam valores muito baixos, pois notoriamente continua miserável quem esteja em faixas superiores a US$ 1,90 por dia, como continua pobre quem esteja em algumas faixas superiores a US$ 5,50 por dia. Eliminar a miséria e a pobreza exigiria ir além desses parâmetros e fazer que todos os habitantes tivessem renda suficiente para que os fatores da pobreza e miséria deixassem de existir.
Dos 193 países filiados à Organização das Nações Unidas (ONU), 35 deles são classificados como desenvolvidos, o que não significa estarem todos livres da existência de parcelas de pobres e miseráveis em sua população. Poucas são as nações nas quais praticamente não há pobres e miseráveis, como Dinamarca, Noruega, Suíça e Finlândia. Há países que, embora considerados ricos, como Estados Unidos e Alemanha, estão longe de eliminar totalmente a pobreza. O que resta dessa realidade é que a pobreza é um mal bem pior que a desigualdade. Se houver desigualdade de renda, mas ninguém estiver em situação de miséria nem de pobreza, a desigualdade não constitui um grave flagelo social.
A tragédia africana do século 20 foi causada principalmente por conflitos militares; corrupção; desprezo pela lei; políticas fiscais indisciplinadas; infraestrutura precária; e baixo investimento em capital físico
No caso do Brasil, o país tem 215 milhões de habitantes nesta metade de 2023, conforme projeção do IBGE, e pelos padrões do Banco Mundial há 55 milhões de pobres, entre eles 14 milhões de miseráveis. Mas pelo menos outros 45 milhões estão em faixas de renda pouco acima da linha da pobreza, portanto ainda pobres segundo padrões de vida compatível com a classificação de não pobres. De qualquer forma, ainda que os números possam variar para mais ou para menos, não há dúvida de que a parte da população brasileira vivendo em situação de miséria ou pobreza é alta; logo, o país tem o desafio de enfrentar esse problema com prioridade e urgência.
Os que desejam dar sua contribuição para a criação de um modelo de sociedade que consiga eliminar a pobreza e a miséria nas próximas décadas devem ter consciência de que é necessário conhecer as causas da pobreza, entender as razões de sua existência e chegar à conclusão sobre quais soluções são efetivamente eficientes. Isso não dispensa a obrigação humanitária de ações individuais no campo da solidariedade social, as quais podem começar imediatamente. A ajuda governamental em forma de programas sociais é solução temporária e não constitui instrumento para que os pobres subam na escala social, coisa que depende de melhor educação e qualificação profissional, além do crescimento da economia para gerar as oportunidades de trabalho.
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Atraso institucional e a persistência da pobreza (editorial de 5 de fevereiro de 2023)
Gargalos da máquina produtiva (editorial de 19 de novembro de 2022)
A respeito das possíveis soluções, vale retornar a um relatório
feito pelo Fórum Econômico Mundial, em 2004, sobre a estagnação da
África, classificada como a maior tragédia econômica do século 20. O
relatório assinado pelos economistas Xavier Sala-i-Martin, da
Universidade de Columbia, e Elsa V. Artadi, da Universidade Harvard,
trouxe uma informação intrigante. Em 1970, a África abrigava 10% dos
pobres do mundo; em 2000, essa taxa era de quase 50%. O crescimento
econômico foi tão reduzido que a maioria dos países ao sul do Saara
estava em condições piores que na época em que se tornaram
independentes.
O relatório sobre a tragédia africana identificava as seguintes causas principais: conflitos militares; corrupção; desprezo pela lei; políticas fiscais indisciplinadas; infraestrutura precária; e baixo investimento em capital físico. O documento terminava afirmando que “não deve haver dúvida de que o maior desastre econômico do século 20 é a performance deprimente do crescimento no continente africano”. Analisando as causas citadas como responsáveis pela tragédia econômica e social africana, sem dispensar outros fatores contribuintes para o mesmo problema, a maioria delas também está presente no Brasil.
Se há razoável diagnóstico sobre as causas do atraso e da pobreza, as soluções começam por enfrentá-las com medidas e ações capazes de superar tais causas, sabendo que muitas dessas causas somente têm solução em longo prazo. A dificuldade maior está na incapacidade de governo e sociedade, por meio de seus políticos, dirigentes, burocratas e agentes privados, colocarem em andamento planos de ação com programas eficientes para atingir o progresso em duas ou três décadas.
O Brasil tem as principais condições e os recursos naturais para se tornar um país desenvolvido. Mas uma das características do governo e da sociedade é a inércia e certa insensibilidade diante do tamanho dos problemas sociais
Uma questão específica que merece comentário é o fato de o setor privado e os empresários serem vistos por alas da política e parte da população como insensíveis, egoístas e dedicados inteiramente à busca de dinheiro, lucro e enriquecimento, sem disposição para contribuir na luta contra a pobreza e a miséria. Certamente há políticos, burocratas, empresários e profissionais que merecem essa acusação. Porém, todos seriam beneficiados se o Brasil tirasse de vez aqueles 55 milhões da pobreza e da miséria e, adicionalmente, elevasse o padrão de renda dos outros 45 milhões logo acima da linha da pobreza, pois isso criaria um enorme mercado consumidor adicional que o mundo econômico e dos negócios teria de atender.
O Brasil tem as principais condições e os recursos naturais para se tornar um país desenvolvido. Mas uma das características do governo e da sociedade é a inércia e certa insensibilidade diante do tamanho dos problemas sociais. Seguramente, a tragédia da África decorrente de sua pobreza e miséria extremas chegou ao nível constatado pelo relatório citado em boa parte pela apatia e a quase normalidade com que seu flagelo social vem sendo encarado há décadas. E a triste ironia brasileira é que não há um só governante ou representante do povo – prefeitos, governadores, presidente da República e membros dos Legislativos – que tenha sido eleito sem prometer luta incessante para superar a pobreza, melhorar a educação e a saúde, lutar contra as injustiças e ser um fiel servidor das causas sociais.
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