segunda-feira, 8 de maio de 2023

NÃO CONFUNDA PRISÃO PREVENTIVA COM PRISÃO DEFINITIVA

 

Por
Roberto Motta – Gazeta do Povo


| Foto: Bigstock

O sentimento que une todos os brasileiros é o medo de ser vítima de um crime violento. Desde a década de 1980 todos os índices criminais pioraram de forma dramática. No Brasil de 2023 todo mundo já foi, ou conhece alguém que foi, vítima de um crime*.

Para entender o que acontece nas ruas do Brasil é importante, primeiro, entender o que acontece nas delegacias e nos tribunais.

Um aspecto particularmente confuso, para o cidadão comum, é entender quando e como acontece a prisão de criminosos no Brasil.

Há criminosos que cometem um crime e são presos imediatamente. Outros são soltos logo após a prisão. Outros são presos, soltos, presos de novo. Alguns, aparentemente, são imunes à prisão: ouvimos notícias de que crimes cometidos, às vezes há décadas, ainda são objeto de novos julgamentos e recursos, enquanto o acusado vive livremente.

Desde a década de 1980 todos os índices criminais pioraram de forma dramática. No Brasil de 2023 todo mundo já foi, ou conhece alguém que foi, vítima de um crime

Afinal, quando é possível prender um criminoso no Brasil? Vamos tentar responder a essa pergunta.

Quando um crime acontece, é função da polícia civil investigá-lo. Essa investigação é feita através de um procedimento chamado inquérito policial. Quando a polícia termina o inquérito, ele é encaminhado ao Ministério Público, que pode pedir novas investigações, arquivar o inquérito ou denunciar os acusados a um juiz. Ao receber a denúncia, o magistrado verifica se ela cumpre os requisitos para que a acusação seja recebida pelo judiciário – por exemplo, se há indícios de autoria do crime e prova da materialidade, assim como a ausência de causas de exclusão de ilicitude. Recebida a denúncia pelo judiciário, começa um processo criminal.

Se, ao final do processo, os réus forem condenados, eles podem vir a receber, eventualmente, uma sentença de prisão. Essa sentença, por si só, não obriga que eles sejam imediatamente presos. Eles têm o direito de recorrer à segunda instância, onde o caso será revisto e novamente julgado. Enquanto recorrem, os réus permanecem em liberdade. Essa é a regra: liberdade até o trânsito em julgado da ação penal. A prisão é, cada vez mais, a exceção.

Mesmo que sejam novamente condenados na segunda instância, isso ainda não obriga a prisão. Segundo decisão do STF, enquanto houver a possibilidade de recursos, não pode haver prisão. Mas em que momento acaba a possibilidade de recursos? Isso ninguém sabe dizer com muita certeza. Mas a regra é que o acusado possa entrar com os recursos em liberdade.

Esse processo que acabei de descrever tem exceções peculiares. Quando um criminoso é preso em flagrante, ele deve ser levado a um juiz dentro de 24 horas para a chamada “audiência de custódia”, cujo único objetivo é verificar o bem-estar do preso. Nessa audiência o juiz pode determinar a soltura do preso, conceder-lhe liberdade sob determinadas condições – tais como o uso de tornozeleira eletrônica – ou decretar a sua prisão.

Perceba: essa prisão preventiva nada tem a ver com a prisão que ocorre depois que o preso é julgado e condenado. A prisão preventiva é determinada em casos em que o preso representa risco claro para a sociedade (quando ele pode continuar a cometer crimes, por exemplo), quando se trata de alguém que pode fugir (inclusive para o exterior) ou quando o acusado tem condições de atrapalhar as investigações (por exemplo, no caso de políticos poderosos). A prisão preventiva não tem prazo pré-estipulado, e pode ser feita em qualquer fase da investigação policial ou da ação penal, quando existirem indícios que liguem o suspeito ao crime.

Essa prisão preventiva é motivo de grande confusão para a mídia e para o público. Muita gente confunde a prisão preventiva com a prisão definitiva, aquela que vem após a sentença. A mídia mostra fulano de tal sendo preso por um crime, e a sociedade respira aliviada – um bandido a menos na rua. Uma semana depois a mídia mostra a soltura do acusado, e o sentimento de revolta é geral: “por que não conseguimos manter os criminosos presos? “, perguntam-se as pessoas.

Segundo decisão do STF, enquanto houver a possibilidade de recursos, não pode haver prisão. Mas em que momento acaba a possibilidade de recursos? Isso ninguém sabe dizer com muita certeza.

A explicação, em casos como esse, é que a prisão preventiva pode ser revogada a qualquer momento. E a maioria do público e até da mídia, sem compreender que aquela prisão não era resultante de uma sentença definitiva, ecoa um sentimento de injustiça.

No sistema de justiça brasileiro, o magistrado tem grande autonomia para decidir se impõe ou se revoga a prisão preventiva. Os elementos considerados nessa decisão são, frequentemente, subjetivos e, na maioria das vezes, desconhecidos do público.

Dois casos que acabam de acontecer revelam o potencial que esse dispositivo legal tem de gerar controvérsia.

O primeiro caso foi a revogação da prisão preventiva de uma pessoa apontada, depois de investigações policiais, como suspeita de trocar as etiquetas das bagagens de duas mulheres que acabaram presas na Alemanha por tráfico de drogas. É provável que a pessoa acusada pela troca das etiquetas tenha envolvimento com alguma facção criminosa (são elas que dominam o tráfico). Por causa da troca de etiquetas de bagagem, supostamente feita pela acusada, duas pessoas de bem foram consideradas criminosas em um país estrangeiro e foram presas. Foi um ato criminoso com consequências gravíssimas, que poderiam ter caído sobre qualquer um de nós, ou nossas famílias.

Ainda assim, a acusada foi solta.

O segundo caso foi a revogação da prisão preventiva de um ex-governador de estado condenado a 425 anos de prisão em 23 processos. O ex-governador ficou seis anos em prisão preventiva, mas, como ainda cabem recursos em seus processos, a justiça considerou que houve “excesso de prazo” na prisão preventiva, e o libertou.

É muito difícil nesses casos – e em muitos outros que se sucedem diariamente – explicar a lógica do funcionamento desse sistema ao cidadão comum. Como a aplicação da prisão preventiva, assim como sua duração, dependem exclusivamente da decisão do magistrado, esse dispositivo está aberto a interpretações que variam muito de um caso para o outro.

No Brasil, quase sempre, há um intervalo de muitos anos entre o crime e a decisão judicial final, da qual não cabe mais recurso. Em um sistema com essa lentidão, a prisão preventiva fica parecendo, aos olhos dos cidadãos, a única forma de justiça possível contra os ricos e poderosos, que contam com bons advogados.

Mas isso é um erro. A justiça final e verdadeira deveria ser feita com processos judiciais ágeis e um código de processo penal que impedisse advogados hábeis – e muito bem-relacionados – de adiar indefinidamente uma decisão.

A justiça precisa ser feita no nosso tempo de vida.
Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/roberto-motta/bandido-bom-e-bandido-preso-mas-quando/
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