Em ‘O Grande Ditador’, Chaplin usa o que nenhum poderoso tolera: o riso que os expõe ao senso comum
Roberto DaMatta, O Estado de S.Paulo
No filme O Grande Ditador, do genial Charles Chaplin (que até hoje é chamado carinhosa e intimamente de “Carlitos”), o tema traçado pela comédia é o totalitarismo. Lançado em 1940, o filme foi indicado para cinco Oscars – não levou nenhum –, mas foi censurado em alguns países, como no Brasil de Getúlio Vargas.
Nossa memória seletiva (e desonesta) esquece que Chaplin sempre usa o riso contra o poder. No caso, o de Adolf Hitler e de Benito Mussolini, então “grandes” e “pequenos” ditadores, respectivamente, da Alemanha – no filme, Tomânia – e da Itália, na película, Bactéria.
Chaplin usa aquilo que nenhum poderoso ou f.d.p. tolera: o riso que os expõe ao senso comum e destrói sua autoconcedida eternidade. Nenhum totalitário suporta a transitoriedade explosiva e denunciadora do riso. Por isso, os pequenos ditadores querem ser grandes ditadores e, como grandes f.d.p., dominarem o país como fonte de renda de modo pessoal e intransferível.
No filme, exibido dois anos antes de os Estados Unidos entrarem na Segunda Guerra Mundial, existem cenas memoráveis, que todas as pessoas dotadas de bom senso imaginam que jamais vão se repetir. Por exemplo: a perseguição de etnias tidas como sub-humanas como negros e judeus; a supressão de direitos políticos ao lado da repressão ao merecimento, ensino ou à circulação daquilo que o “grande ditador” (seja pessoa ou junta) controla como religião.
Dentre elas, destaco o grande canhão que o recruta chapliniano teme como um símbolo sinistro de um falo destrutivo e jamais amoroso e fecundador; a surpresa do barbeiro judeu quando sua loja é destruída pelos fascistas e, muito especialmente, o longo discurso realizado no final quando o barbeiro judeu é idêntico ao “grande ditador”. Um discurso esperançoso que rejeita a enganosa fórmula – “essa é a guerra que vai acabar com todas as guerras”. Como se a selvageria que se encontra dentro de cada um de nós fosse um micróbio (ou pecado) incapaz de resistir a certos remédios e não uma dimensão que também nos define e cujo controle só pode ser eventualmente disciplinado quando nos convencemos de que somos feitos de um feixe desordenado de bondades, invejas e maldades…
A cena mais profunda ocorre quando o “grande ditador” brinca com o mundo representado por uma bola, em um jogo cômico-macabro que hoje se desenha com a agressão da Rússia à Ucrânia. O resultado, exposto por Chaplin, é que, se tratamos o mundo como uma bola, ele estoura.
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