Treinamento
Por
Luis Kawaguti – Gazeta do Povo
Infantaria de Selva do Exército Brasileiro| Foto: Exército Brasileiro
Um quadrilátero de selva de 1.152 km2, delimitado ao norte pela rodovia AM-010, ao sul pelo Rio Amazonas, a leste pelo Rio Preto da Eva e a oeste pelo Rio Puraquequara, no Amazonas, representa só 0,02% da área da Amazônia Legal. Mas, tem grande importância em uma discussão que vem ganhando volume no cenário internacional devido às mudanças climáticas: a soberania do Brasil sobre a parcela de seu território coberto por selva amazônica.
É nessa “pequena” área – 2,5x maior que a cidade de Manaus – que fica o Campo de Instrução General Sampaio Maia (CIGSM), onde ocorrem as atividades do Curso de Operações na Selva, do Centro de Instrução de Guerra na Selva, o CIGs .
Esse é o treinamento do Exército Brasileiro que mais chama a atenção das forças armadas dos outros países, pelo nível de rigor exigido e pela eficácia das técnicas de combate em região de selva. Há uma fila de espera de países para enviar militares para cursar a parte não sigilosa do treinamento.
“A rigidez e a intensidade das atividades promovem um desgaste físico intenso e prolongado nos militares que frequentam o curso, trazendo uma experiência marcante durante 12 semanas. Desta forma a delimitação física do CIGSM, aliada às atividades nele desenvolvidas, fizeram com que o mesmo fosse carinhosamente apelidado de Quadrado Maldito”.
Essa foi a resposta singela que este colunista recebeu do CIGs por e-mail ao perguntar sobre a origem do curioso apelido.
Mas, a explicação não dá ideia da magnitude do assunto. Tendo visitado o CIGs como jornalista em 2008 e em 2021, eu compararia o treinamento que ocorre lá a cenas que o leitor pode ter visto no filme Tropa de Elite (2007), sobre o Bope do Rio de Janeiro.
Nele, candidatos a policiais são vistos sendo submetidos a provações físicas e psicológicas extremas, entre elas abstinência de alimentação e sono, combinados com atividade física extenuante e exercícios de combate.
Mas, sugiro ao leitor que imagine as cenas do filme acontecendo não nas colinas da região metropolitana do Rio de Janeiro, mas no interior da selva amazônica.
Lá, o treinamento de combate acontece à noite. Os militares são treinados no uso da mata fechada para emboscar, como fazem as onças que habitam a região. Ou seja, levam horas em um deslocamento silencioso até chegar apenas a alguns metros de distância do inimigo, para então abrir fogo a curta distância.
Na selva fechada, equipamentos de navegação GPS funcionam mal. Bússolas e técnicas de orientação e sobrevivência aprendidas com militares de ascendência indígena fazem diferença.
Alguns analistas dizem que o terreno favoreceria o Brasil em um eventual conflito com um país mais forte. Isso porque, a impossibilidade de usar alguns recursos tecnológicos na selva faria o conflito menos desproporcional. O Comando Militar da Amazônia é mais cauteloso e diz que não é possível definir de antemão qual será “a chave da vitória”.
Adicione-se ao cenário do treinamento operações com metralhadoras pesadas, morteiros, artilharia de obuseiros e lançadores de foguetes pesados, armas antiaéreas, saltos de paraquedistas e ataques de helicópteros.
As manobras com armamento pesado, como o lançador de foguetes por saturação Astros II, e os treinamentos onde as forças brasileiras atuam como guerrilheiros (escondendo armamento pesado na mata e fazendo ataques surpresa contra forças mais poderosas) são um recado diplomático sutil.
Ele diz nas entrelinhas: uma ação militar estrangeira na Amazônia pode resultar em uma dispendiosa “guerra infinita”, como foram as operações no Iraque e no Afeganistão.
É isso que se faz no Quadrado Maldito.
Sobre os disparos de armas pesadas na floresta, o leitor pode se tranquilizar: são feitos em “polígonos de tiro” isolados e previstos em lei, onde não há atividade humana. Equipes de manejo ambiental verificam a área a cada exercício, para evitar que membros da comunidade ribeirinha ou animais se machuquem com explosivos não detonados. Além disso, ninguém mora no Quadrado Maldito.
Mas o que mudou na geopolítica mundial para voltarmos a falar da Amazônia?
Primeiro, uma ressalva para evitar alarmismo: os focos de atenção das potências mundiais e as possibilidades de conflito armado de grandes proporções passam longe da região amazônica.
Eles estão relacionados hoje à expansão da Otan (aliança militar ocidental) sobre países que a Rússia considera sua área de influência na Europa. E também à região marítima ao sul da China, onde Pequim e Washington medem forças em uma disputa sobre o destino de Taiwan – o que alguns analistas dizem fazer parte de um cenário que já vem sendo chamando de Guerra Fira 2.0.
Mas, o tema do combate às mudanças climáticas vem ganhando força na agenda das potências mundiais – especialmente a partir do início do governo democrata do presidente Joe Biden, nos Estados Unidos.
O presidente Emmanuel Macron, da França, e o presidente Jair Bolsonaro já haviam batido boca sobre o desmatamento da Amazônia. Isso foi interpretado por alguns analistas como uma tentativa da França usar a causa ambiental para boicotar produtos brasileiros, protegendo seu mercado.
Mas a discussão vai além disso. O tema do combate à mudança climática chegou para ficar e não vai sair da agenda mundial tão cedo.
Nesse contexto, floresce nos meios acadêmicos e políticos do Ocidente a ideia de que nações não teriam direitos de soberania ilimitados sobre seu território quando o futuro do planeta está em jogo. Sem entrar em debate científico, a Amazônia é tratada por alguns políticos e ativistas como o “pulmão do mundo”.
Neste mês de dezembro, o ONU analisou a possibilidade de adotar uma resolução pela qual o Conselho de Segurança poderia deliberar sobre assuntos de segurança relacionados a mudanças climáticas.
Mas o que isso quer dizer?
Na prática, seria levar temas de segurança relacionados a mudanças climáticas da alçada da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas para a maior instância de poder do organismo: o Conselho de Segurança – que em última instância pode autorizar e legitimar embargos e ações militares.
A proposta, levantada pela Irlanda e pelo Níger, estava mais focada em questões relacionadas a conflitos deflagrados por grandes secas ou fomes, especialmente no continente africano. Mas, segundo analistas, em teoria poderia abrir precedentes para resoluções envolvendo a região amazônica.
Moscou, membro permanente do Conselho de Segurança, barrou a discussão por ora, com seu poder de veto. A resolução tinha sido apoiada por 113 países e rejeitada por 80.
A Rússia tem uma área de 815 milhões de hectares cobertos por florestas, equivalente a 20% das florestas mundiais, segundo relatório de 2020 da FAO, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. O Brasil vem em segundo lugar, com 497 milhões de hectares (12%).
Mas o debate político sobre o tema não acabou. A votação mostra uma comunidade internacional dividida sobre o tema.
Preocupações com a Amazônia
Não é de hoje que as Forças Armadas brasileiras voltaram suas atenções para a região. Desde a aproximação diplomática entre Brasil e Argentina no início dos anos de 1980, boa parte das preocupações militares se direcionaram para a Amazônia. Brigadas inteiras, antes sediadas nas regiões central e sul do país, começaram a ser transferidas para a selva.
Há vários cenários de ameaça que preocupam as Forças Armadas, mas o mais grave seria um movimento político para transformar a região em uma “Nova Antártida”. Ou seja, “o estabelecimento de uma governança global sobre a região, limitando (ou até impedindo) a gestão soberana sobre aquele território”, segundo escreveu o coronel Oscar Medeiros Filho em artigo publicado neste ano no e-Blog do Exército.
“Utilizando-se de uma narrativa ‘lícita’ de proteção dos bens comuns globais, a sociedade internacional ‘negaria’ propostas de desenvolvimento da região, a fim de ‘preservá-la para futuras gerações’”, escreveu Medeiros Filho.
Outra possibilidade, menos provável, seria a de nações estrangeiras promoverem conflitos na região para se apossar de recursos naturais.
Segundo o artigo, há ainda uma preocupação sobre a ação de criminosos ou guerrilheiros em áreas onde a presença do Estado brasileiro é muito pequena.
Neste ano, o Quadrado Maldito foi palco também da maior manobra militar que o Exército já realizou na região: a Operação Amazônia, que ocorreu entre abril e setembro. Embora toda manobra militar tenha um teor político internacional, isso não quer dizer que o país tenha em vista um cenário de conflito.
A ideia é mostrar capacidade de defender a soberania e dar subsídio em forma de “hardpower” a um combate que hoje não ocorre na selva, mas sim nos campos diplomático, acadêmico e da comunicação.
Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/jogos-de-guerra/conheca-o-quadrado-maldito-onde-o-exercito-dispara-foguetes-na-selva-amazonica/
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