Editorial
Por
Gazeta do Povo
Símbolo da Justiça, em frente ao Supremo Tribunal Federal, em Brasília| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Que os tribunais superiores têm imposto inúmeros retrocessos no bom combate à corrupção já é algo amplamente conhecido, especialmente neste 2021 repleto de decisões que vêm desconstruindo praticamente tudo que um diligente trabalho dos órgãos de investigação e as instâncias inferiores do Judiciário construíram. Mas agora é possível ter uma noção do tamanho do estrago: levantamento do jornal O Estado de S.Paulo concluiu que tribunais superiores anularam incríveis 277 anos e 9 meses em penas de prisão apenas neste ano – do total, 78 anos e 8 meses se referem a condenações de políticos. A maior parte das anulações (221 anos e 11 meses) é de processos da Lava Jato e seus desdobramentos, mas outros 13 casos tiveram investigações e processos anulados, como a Operação Greenfield.
Como o jornal paulista não publicou a lista completa de anulações, seus beneficiados, os tribunais responsáveis pelas decisões e quais eram as operações ou investigações que levaram às condenações anuladas, seria precipitado afirmar categoricamente que todas as anulações estão equivocadas. Há de se reconhecer que pode, sim, ocorrer irregularidades durante a investigação ou o julgamento, e que levam a anulações; a história brasileira recente tem exemplos de operações de combate à corrupção que acabaram naufragando porque, em algum momento, aqueles que a conduziam desrespeitaram as regras processuais (o que, é preciso lembrar, jamais foi o caso da Lava Jato). No entanto, ainda assim é possível dizer com toda a certeza que grande parte desses 277 anos de penas anuladas se deve não a irregularidades, mas a erros graves de tribunais superiores, especialmente o Supremo Tribunal Federal.
Se 2019 foi o ano de criar precedentes equivocados, 2021 foi o ano em que o Supremo desconstruiu competências e inventou suspeições, levando a mais anulações de processos e sentenças
Podemos lembrar, por exemplo, o estabelecimento de dois precedentes que ajudaram a desmontar várias condenações, não apenas em 2021. Em março de 2019, o Supremo decidiu que crimes comuns conexos a crimes eleitorais precisam ser julgados pela Justiça Eleitoral, e não pela Justiça comum. Esta interpretação, embora possível pela letra da lei, tinha sérios problemas conceituais que a Gazeta do Povo expôs tanto antes quando após a conclusão do julgamento. Àquela época, já prevíamos uma enxurrada de confissões de caixa-dois e consequentes anulações, exatamente como está ocorrendo agora; entre os mais recentes beneficiados por esse entendimento estão os ex-parlamentares Eduardo Cunha e Henrique Eduardo Alves, e o ex-governador mineiro Eduardo Azeredo – todos eles tiveram condenações anuladas em 2021.
O segundo precedente equivocado foi estabelecido em agosto de 2019, quando a condenação do ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine foi anulada sob o argumento de que deixar corréus que fizeram delação premiada entregarem suas alegações finais ao mesmo tempo que os corréus delatados seria uma espécie de cerceamento de defesa – na sequência, outras condenações foram anuladas pelos mesmos motivos. A Segunda Turma apegou-se a um formalismo – pois em nenhum caso ficou provado que o delatado havia sido prejudicado pela igualdade de prazos, aliás prevista no Código de Processo Penal – e criou um problema que o Supremo até hoje se recusa a resolver, pois o plenário jamais votou a modulação prometida e que estabeleceria as regras para a análise futura de casos semelhantes que chegassem à corte.
E, se 2019 foi o ano de criar precedentes equivocados, 2021 foi o ano em que o Supremo desconstruiu competências e inventou suspeições, levando a mais anulações de processos e sentenças. Tivemos o mensis horribilis em que Edson Fachin contrariou até mesmo decisões anteriores do próprio Supremo para resolver que a 13.ª Vara Federal de Curitiba não tinha competência para julgar os processos do ex-presidente Lula, e que terminou com a declaração de suspeição de Sergio Moro, levando à anulação de todos os atos do ex-juiz federal. Este episódio entra para a história do Supremo como um dos mais vergonhosos da história da corte, tanto pelo absurdo em si da tese de parcialidade de Moro quanto pelas circunstâncias do julgamento – com direito a destempero de Gilmar Mendes e uma inexplicável mudança de voto de Cármen Lúcia – e pela criação do “habeas corpus zumbi”, aquele que segue existindo apesar de o processo principal ter perdido seu objeto. Mais recentemente, nova decisão da Segunda Turma sobre competências tirou do juiz Marcelo Bretas os processos de uma operação no Rio de Janeiro, anulando uma condenação do ex-governador Sérgio Cabral.
O caso de Cabral é emblemático. As duas interpretações (pela manutenção ou pela rejeição da competência do juiz Bretas) eram possíveis, mas os ministros optaram pela que ajudava o ex-governador, na demonstração completa do “garantismo” penal à brasileira: não o mero respeito ao devido processo legal ou aos direitos do réu, mas, como já explicamos neste espaço, “a prática de, havendo uma interpretação possível da lei em benefício do réu, contra outra interpretação igualmente possível e que penda para o lado do bem público, escolher sempre aquela em detrimento desta”. E ainda acrescentamos: esta postura “tem uma série de implicações no combate à corrupção e na segurança pública”, como o Brasil inteiro está descobrindo na forma de centenas de anos de condenações desfeitas, mostrando que o crime de corrupção ainda compensa, e muito.
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