A ameaça da falta de oxigênio é contínua e nos mantém nesse estado de angústia constante
Daniel Martins de Barros, O Estado de S.Paulo
Depois de pegar um pouco de barro e modelar o protótipo do que viria a sermos nós, diz o livro de Gênesis que Deus tomou em suas mãos aquilo que até então era apenas um boneco e soprou-lhe nas narinas. E foi apenas quando o ar entrou que surgiu nele a vida. Como, aliás, acontece em todo ser vivente: eles trazem em si o fôlego de vida, segundo o mesmo texto.
A relação entre a respiração e a vida transcende a biologia e já estava presente em religiões mais antigas, como no Atarvaveda, texto sagrado hindu: “A respiração tece o homem”, afirma.
Coerentemente, os hindus colocam grande ênfase nas práticas respiratórias, incluindo-as conscientemente como práticas religiosas.
Embora distantes de textos antigos, nós sabemos intuitivamente que respirar é mais do que apenas levar oxigênio para o corpo e eliminar o gás carbônico. Quando dizemos que precisamos respirar um ar puro, estamos nos remetendo à busca de tranquilidade.
Ficar ao ar livre é associado à liberdade, mais do que à ventilação. Chamamos sufocantes ambientes emocionalmente desgastantes. Das pessoas que não nos dão paz dizemos que não nos deixam respirar.
Essa ligação entre ar e vida ampla tem raízes profundas em nossa fisiologia. Nosso organismo traz embutidos mecanismos para detectar a queda de oxigênio e aumento de gás carbônico a partir da concentração desses gases no sangue. Ao verificar falta do primeiro e – sobretudo – excesso do segundo, receptores disparam sinais para o tronco cerebral, que controla nossa respiração de forma automática, acelerando a frequência respiratória.
Tal resposta seria insuficiente em situações nas quais falta ar no ambiente, contudo – não bastaria respirar mais ou mais rapidamente –, é preciso sair dali. Por isso, o alarme não fica restrito ao tronco cerebral e atinge áreas mais elaboradas do cérebro, trazendo para a consciência a sensação de morte iminente, o desespero que nos impele a fazer algo.
A brincadeira de ver quem fica mais tempo sem respirar é suficiente para dar ideia da aflição que traz o aumento da concentração de gás carbônico no sangue. O sinal de alerta disparado dá sensação de desespero, urgência para agir e resolver a causa da situação. Não surpreenderá o leitor que o aumento artificial da concentração de gás carbônico no sangue é um modo experimental de estudar a síndrome do pânico. Em pessoas mais sensíveis, a simples apneia voluntária basta para disparar uma crise de pânico completa.
Com nossa riqueza de simbolismos e capacidade de extrapolar conceitos, é fácil compreender que tal desespero diante da iminência da morte transcenda, de fato, a mera representação biológica do morrer para representar ameaça à vida em seu sentido mais amplo.
E assim, a sensação de sufocamento é logo compreendida como uma sensação de angústia, aflição existencial. Freud mesmo chamou as crises de pânico, com sua taquicardia, sudorese, vertigem, de equivalentes de angústia – eles seriam sinais físicos desse desespero mais primordial.
Acredito que é por isso que venho me sentindo sufocado diante do noticiário nas últimas semanas. Não que o crescente placar de mortos no Brasil e no mundo fosse insuficiente para me colocar aflito. Mas quando começaram relatos de falta de oxigênio para pacientes, percebi que o sofrimento havia mudado de nível.
Tudo começou na crise de Manaus. O tom das reportagens era claramente outro, bem como seu impacto. Já não era apenas a tragédia das mortes. Tampouco o absurdo de serem mortes potencialmente evitáveis. Eram pessoas morrendo por falta de ar, sufocadas. Empaticamente passei a sentir o desespero da morte iminente. De Manaus para o Brasil, esse sufoco se espalhou e hoje ninguém está tranquilo.
Se tais óbitos não têm ocorrido diariamente pelo País, sua ameaça é contínua como uma possibilidade posta no horizonte, nos mantendo nesse estado de angústia constante.
Tomara que todo brasileiro sinta-se assim, angustiado. Desesperado. Para que esse alarme, tão profundamente arraigado em nossos cérebros para nos fazer fugir da situação que nos rouba o ar, finalmente nos ponha em marcha na direção certa.
É PROFESSOR COLABORADOR DO DEPARTAMENTO E INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (FMUSP)
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