Pesquisa refuta boato de que o novo coronavírus foi criado em
laboratório
Bruce Y. Lee
©
GettyImages/ Massimo Cavallari O coronavírus é assunto em discussões
internacionais, mas estudos confirmam que seu atual estado é resultado de
transformações naturais, não feitas em laboratórios
Você ama teorias da conspiração? Especialmente
quando dois grupos de pessoas têm praticamente a mesma teoria um sobre o outro?
Algumas pessoas, incluindo políticos nos Estados
Unidos e na China, sugeriram que o novo coronavírus, SARS-CoV2, que está
causando a pandemia atual, pode ser uma arma biológica fabricada em
laboratório. A única diferença entre as teorias da conspiração é quem está
sendo acusado de fabricá-la.
Em um dos lados, norte-americanos sugerem ou, em
alguns casos, afirmam abertamente, que a China é responsável pelo
desenvolvimento do vírus. Veja, a seguir, o que o senador Tom Cotton tuitou em
30 de janeiro:
We still don’t know where coronavirus originated.
Could have been a market, a farm, a food processing company.
I would note that Wuhan has China’s only biosafety
level-four super laboratory that works with the world’s most deadly pathogens
to include, yes, coronavirus. pic.twitter.com/CtuU2czBLp
— Tom Cotton (@SenTomCotton) January 30, 2020
Tom Cotton diz o seguinte: “Ainda não sabemos de
onde o coronavírus originou. Pode ter sido de um mercado, uma fazenda, uma
fábrica de processamento de comida. Gostaria de lembrar que Wuhan (China)
possui o único super-laboratório de nível 4 chinês, que trabalha com os
patógenos mais mortais do mundo, incluindo o coronavírus.”
Em seguida, no dia 22 de fevereiro, o cientista
social Steve Mosher publicou um artigo no “New York Post” intitulado “Não
compre a história da China: o coronavírus pode ter vazado de um laboratório”.
Adivinhe o que Mosher escreveu?
Aliás, Mosher não é um cientista biomédico, mas é o
presidente do Instituto de Pesquisa Populacional e autor de um livro chamado
“Bully of Asia: Why China’s ‘Dream’ Is the New Threat to World Order” (“O bully
Asiático: Por Que o “sonho” da China é a nova ameaça à ordem mundial”, em
tradução livre). Então, é provável que ele já não gostasse muito da China.
Mas que evidências Cotton, Mosher e outros
forneceram para apoiar essas teorias? Imagens incriminatórias? E-mails
suspeitos? Algumas selfies estranhas? Algum tipo de comprovação científica?
Bom, como Cotton disse, existe um laboratório de
nível de biossegurança quatro (BSL-4) situado em Wuhan, China, a cidade onde
todo o surto começou. Esse laboratório abrigou alguns tipos de coronavírus
entre outros patógenos. Sim, essa é a evidência.
Como você provavelmente sabe, a proximidade por si
só não deve implicar em culpa. Seria o mesmo que culpar alguém que está próximo
de você por um cheiro ruim. Claro, todo mundo tem um intestino, mas isso não
significa que o mau cheiro foi causado por aquela pessoa.
Além disso, não é assim tão fácil vazar um vírus em
uma instalação BSL-4. As instalações mantêm o mais alto nível de segurança
entre os laboratórios, uma vez que trabalham com agentes potencialmente
perigosos, como Ebola, febre de Lassa e os vírus de Marburg. Portanto, não é
como se as pessoas dentro desses laboratórios estivessem brincando com os vírus
e colocando-os nos bolsos. Para ser classificado como BSL-4, o laboratório
precisa ter sistemas de ventilação, paredes reforçadas, sistemas de segurança e
construção apropriados para manter as coisas ruins dentro e as coisas boas
fora.
Mas é incomum ter uma instalação BSL-4 em uma
cidade como Wuhan, China? Na verdade não. Já existem pelo menos seis
instalações do tipo nos EUA – em Atlanta, Frederick, Galveston, Hamilton e San
Antonio. Segundo o site da Federação Americana de Cientistas, outros sete podem
estar nos planos, em construção ou possivelmente finalizados em várias cidades,
como Boston e Richmond. Esses laboratórios nos EUA também estudam e abrigam uma
variedade de patógenos perigosos. Então, novamente, ter um laboratório que
estuda patógenos ruins não significa que o laboratório tenha liberado nada.
Para não ficar atrás, alguns chineses fizeram
acusações semelhantes, exceto pelo fato de os EUA terem criado o vírus e
lançado na China. Veja, a seguir, três tuítes de Zhao Lijian, porta-voz e
vice-diretor geral do Departamento de Informações do Ministério das Relações
Exteriores da China:
1/2 CDC Director Robert Redfield admitted some
Americans who seemingly died from influenza were tested positive for novel #coronavirus in the posthumous diagnosis, during the House
Oversight Committee Wednesday. #COVID19 pic.twitter.com/vYNZRFPWo3
2/2 CDC was caught on the spot. When did patient
zero begin in US? How many people are infected? What are the names of the
hospitals? It might be US army who brought the epidemic to Wuhan. Be
transparent! Make public your data! US owe us an explanation! pic.twitter.com/vYNZRFPWo3
This article is very much important to each and
every one of us. Please read and retweet it. COVID-19: Further Evidence that
the Virus Originated in the US. https://t.co/LPanIo40MR
Na sequência de publicações, Lijian Zhao diz o
seguinte: “O diretor Robert Redfield admitiu que alguns americanos que
aparentemente morreram de gripe foram testados positivos para o novo
#coronavírus no diagnóstico póstumo, durante o Comitê de Supervisão da Câmara
na quarta-feira. Quando o paciente zero começou nos EUA? Quantas pessoas estão
infectadas? Quais são os nomes dos hospitais? Pode ser o exército dos EUA que
trouxe a epidemia para Wuhan. Sejam transparentem! Tornem públicos seus dados!
Os Estados Unidos nos devem uma explicação!”
Em seguida, Zhao mostra o link de um estudo e
afirma: “Este artigo é muito importante para todos e cada um de nós. Por favor,
leia e repasse. COVID-19: Mais evidências de que o vírus se originou nos EUA.”
Sim, a alegação é de que os EUA lançaram um vírus
na China para que o país sofresse as consequências com a disseminação apenas
alguns meses depois. Mas onde está a evidência real de que os militares dos EUA
criaram o SARS-CoV2?
O diálogo continuou com o presidente Donald Trump,
que se referiu ao SARS-CoV2 como o “vírus chinês”, como pode ser visto a
seguir:
Cuomo wants “all states to be treated the same.”
But all states aren’t the same. Some are being hit hard by the Chinese Virus,
some are being hit practically not at all. New York is a very big “hotspot”,
West Virginia has, thus far, zero cases. Andrew, keep politics out of it….
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) March 17, 2020
Donald Trump afirma: “Cuomo quer que “todos os
estados sejam tratados da mesma forma”. Mas todos os estados não são os mesmos.
Alguns estão sendo atingidos com força pelo vírus chinês, outros praticamente
não são atingidos. Nova York é um grande ponto de acesso, até o momento, a
Virgínia Ocidental tem zero casos. Andrew, mantenha a política fora disso …”
Quando questionado por que ele estava usando esse
rótulo em vez do nome científico real do vírus, Trump afirmou que foi em
resposta à alegação de que os militares dos EUA haviam criado a ameaça. O vídeo
que acompanha o seguinte tuíte mostra isso:
President Trump asked about his use of the phrase
“Chinese Virus”:
REPORTER: “Critics say that using that phrase
creates a stigma.”
TRUMP: “No, I don’t think so. I think saying that
our military gave it to them creates a stigma.”
— Benny (@bennyjohnson) March 17, 2020
O presidente Trump, quando perguntado sobre o uso
da expressão “Vírus chinês”:
REPÓRTER: “Os críticos dizem que usar essa frase
cria um estigma”.
TRUMP: “Não, acho que não. Eu acho que dizer que
nossos militares deram a eles cria um estigma.”
Vai e volta. Vai e volta. Vai e volta.
Portanto, parece que os teóricos da conspiração de
ambos os lados não forneceram nenhuma evidência convincente de que o SARS-CoV2
foi produzido em um laboratório, esteja ele nos EUA, na China ou na Escola de
Magia e Bruxaria de Hogwarts.
De fato, não há apenas uma falta de evidências que
apóiam essas teorias da conspiração, como também crescem fortes evidências
científicas contra as duas. Os cientistas (aqueles que estão realmente tentando
descobrir a verdade e resolver um problema, em vez de culpar as pessoas) vêm
realizando análises genéticas para determinar de onde o vírus veio e como ele
acabou infectando os seres humanos. Os vírus não são exatamente como as pessoas
(pois não parecem ter sentimentos ou espalhar boatos), mas possuem material
genético como humanos, exceto pelo fato de ser menos complexo. No entanto, como
os humanos, os vírus ainda transmitem esses materiais quando se replicam e
evoluem. Não é tão simples quanto um programa de TV que usa testes genéticos
para descobrir se um homem é o verdadeiro pai de alguém, mas os cientistas
podem usar análises genéticas mais avançadas para descobrir as origens, a
“árvore genealógica” do SARS-CoV2.
De fato, fortes pistas já haviam surgido em 26 de
fevereiro de 2020, quando um estudo foi publicada no “New England Journal of
Medicine”. Na peça, David M. Morens, M.D., e Peter Daszak, Ph.D. do Instituto
Nacional de Saúde (NIH), e Jeffery K. Taubenberger, M.D. e Ph.D., escreveram:
“Certamente os cientistas nos dizem que o SARS-CoV-2 não escapou de um frasco:
as sequências de RNA se assemelham às dos vírus que circulam silenciosamente
nos morcegos, e as informações epidemiológicas implicam que um vírus de origem
do morcego infecte espécies animais não identificadas vendidas em mercados de
animais vivos da China. ”
Este não era exatamente um caso de mesma
bat-transmissão, mesmo bat-horário. Mas o primeiro e mais mortal vírus da SARS
pareceu causar o surto de 2002-2003, depois que ele conseguiu pular de morcegos
para humanos por meio de hospedeiros intermediários, como civetas de palma
mascaradas (mamífero comum na Ásia e África). Sim, alguns seres mascarados
podem, inadvertidamente, ter ajudado a levar o vírus da SARS original aos seres
humanos. Portanto, não seria muito surpreendente se algo assim acontecesse
novamente com o SARS-CoV2.
Ainda mais evidências de uma origem natural e não
feita pelo homem para a SARS-CoV2 emergiram de um estudo descrito em uma carta
de pesquisa publicada recentemente na revista médica “Nature Medicine”. Na
carta, uma equipe de pesquisa (Kristian G. Andersen, do Instituto de Pesquisa
Scripps; Andrew Rambaut, da Universidade de Edimburgo; W. Ian Lipkin, da Escola
de Saúde Pública Mailman da Universidade de Columbia; Edward C. Holmes, da
Universidade de Sydney; e Robert F. Garry, da Universidade de Tulane)
descreveram como haviam analisado as sequências genéticas que codificam os
picos de proteína na superfície do SARS-CoV2. O vírus parece uma maçã medieval
com vários espinhos saindo de sua forma esférica. Esses espinhos não são
enfeite, já que vírus os utiliza para se prender a uma célula que deseja
invadir e depois entrar nela.
Aparentemente, partes desses “espinhos de proteína”
são tão eficazes no direcionamento de receptores específicos nas células
humanas que é difícil imaginar humanos fabricando-os – pelo menos não com a
tecnologia existente atualmente. Os pesquisadores concluíram que esse recurso
e, portanto, o novo coronavírus, só poderia ter evoluído naturalmente ao longo
do tempo. Os seres humanos podem fazer coisas úteis, como aplicativos de
compartilhamento de viagens, mas ainda somos bastante insignificantes em
comparação com a natureza quando se trata de criar coisas como vírus.
De fato, a equipe de pesquisa descobriu que a
estrutura do SARS-CoV-2 em geral é bem diferente de algo que os humanos
provavelmente inventariam. Se um humano quisesse criar uma arma viral, ele
teria começado com a estrutura de um vírus que já é conhecido por causar
doenças nas pessoas. Naturalmente, se você deseja fabricar uma arma, pode
começar com algo como um lançador de granadas, em vez de uma máquina de
smoothies. A estrutura do SARS-CoV2 é bastante semelhante à dos vírus
conhecidos por infectar morcegos e pangolins (mamíferos que vivem em zonas
tropicais da Ásia e da África).
Então, tudo isso apoia a teoria de que o vírus
pulou de morcegos para humanos por meio de algum animal intermediário. Isso não
significa necessariamente que o vírus começou a causar problemas assim que
começou a infectar seres humanos. Uma possibilidade alternativa é que ele tenha
infectado humanos há mais tempo e permaneceu entre nós por um período antes de
evoluir para seu estado problemático atual. Essa última possibilidade seria um
pouco análoga a convidar alguém para morar com você porque, inicialmente, ela
parecia relativamente inofensiva, mas, com o tempo, você descobriu que esse
colega de apartamento se tornou um terror.
Os resultados das análises genéticas são
consistentes com o comportamento do SARS-CoV2 atualmente. O vírus não está
agindo como uma arma biológica no momento. As melhores armas biológicas matam a
uma taxa muito mais alta e podem ser prontamente transportadas e liberadas.
Imagine ser informado de que uma arma biológica pode levar a vida de 1% a 3,4%
das pessoas infectadas, mas você não sabe exatamente quais. A diferença entre o
SARS-CoV2 e patógenos como o Ebola ou Antraz é como a diferença entre um monte
de sofás e uma coleção de mísseis. Certamente, o primeiro pode causar danos,
mas não de maneira previsível e consistente. Se alguém realmente decidiu
desenvolver o SARS-CoV2 como uma arma biológica, essa pessoa precisa encontrar
um novo emprego.
Então a evidência científica superou as teorias da
conspiração. Mas todas essas descobertas científicas finalmente podem anular a
retórica do “vírus foi feito em laboratório e a culpa é sua” entre os políticos
e as mídias sociais? Provavelmente não. Mas talvez faça com que mais pessoas se
concentrem no assunto muito mais importante, como a tentativa de controlar
juntos.
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