Coronavírus pode causar o
adiamento das eleições nos Estados Unidos e no Brasil?
A pandemia de coronavírus pode levar os Estados Unidos a tomar uma
medida que nem o surto de gripe espanhola de 1918, nem a guerra civil, nos anos
1860, produziram antes na história: o adiamento das eleições presidenciais,
marcadas para o dia 3 de novembro.
Embora até agora nenhuma autoridade tenha publicamente defendido isso no
país, o assunto começou a ser cogitado por acadêmicos e políticos em
Washington, especialmente depois que, diante da pandemia, nove Estados e um
território - Connecticut, Georgia, Indiana, Kentucky, Louisiana, Maryland,
Ohio, Porto Rico e Rhode Island - decidiram postergar seu processo de primárias
para escolher o candidato democrata que deve enfrentar o republicano Donald
Trump, postulante à reeleição.
A discussão ocorre também no Brasil quanto às eleições municipais de
outubro. No domingo passado, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta,
propôs o adiamento do pleito, mas a presidente do Tribunal Superior Eleitoral,
ministra Rosa Weber, disse na segunda-feira (23) ser um debate ainda
"precoce", e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia,
afirmou se tratar de uma "discussão equivocada". Por sua vez, o
partido Podemos apresentou projeto para adiar o pleito para dezembro.
De volta aos EUA, em Nova York, a votação para dirigente do condado do
Queens, com mais de 2 milhões de habitantes, prevista para esta terça, 24, foi
também adiada. "Em uma sociedade democrática, o cancelamento de uma
eleição é uma raridade e deve ser evitado a todo custo. Mas, neste caso, com a
natureza desta crise, cheguei à decisão de que era necessário", afirmou o
prefeito de Nova York Bill de Blasio, onde o número de infectados já passa de
21 mil.
© Getty Images
Pacientes com coronavírus deverão ficar em quarentena
Os Estados Unidos foram considerados nesta terça, 24, pela Organização
Mundial da Saúde como o potencial novo epicentro global de casos de
coronavírus. Em 24 horas, o país foi responsável por 85% dos novos diagnósticos
da doença. Mais de 63 mil pessoas já contraíram o vírus e mais de 800 morreram
em decorrência do Covid-19 no país, segundo dados da OMS até quinta-feira (27).
Quase 160 milhões de americanos enfrentam hoje quarentena forçada.
Ameaça global às eleições
A emergência epidemiológica colocou a possibilidade de adiamento de
eleições na mesa globalmente, já que 2020 é ano eleitoral em uma série de
países ocidentais.
França e Alemanha já rechaçaram a possibilidade, embora os franceses
tenham aceitado fazer o segundo turno mais tarde do que a previsão original. Já
a Inglaterra decidiu adiar por um ano suas eleições para sete prefeituras, que
aconteceriam dentro de 45 dias. Apesar de o prazo tenha sido considerado longo,
a decisão foi apoiada tanto pelo governo quanto pela oposição britânica diante
da dificuldade de garantir a saúde pública durante os eventos eleitorais.
No Brasil, o ministro Mandetta se manifestou publicamente em favor do
reagendamento das eleições municipais. "Faço aqui até uma sugestão. Está
na hora de o Congresso falar: 'Adia'. Faz um mandato (extra) desses vereadores
e prefeitos. (Campanha de) Eleição no meio do ano... (vai ser) uma tragédia, porque
vai todo mundo querer fazer ação política", disse ele, no último dia 22.
Acabou rapidamente desautorizado por Maia, que disse que Mandetta faz um
"ótimo trabalho na saúde". "É hora de focar no enfrentamento da
crise. Vamos cuidar do combate ao vírus", reforçou Maia. Cabe ao Congresso
Nacional qualquer decisão que afete o calendário eleitoral brasileiro.
© EPA EUA estuda possibilidade de
americanos votarem em mais de um dia para evitar aglomerações
Nunca antes na história americana
"Pra mim, hoje há 50% de chance de adiamento das eleições
presidenciais americanas e o postergamento das primárias estão sendo usados
como um balão de ensaio, para ver como isso cai junto à opinião pública",
disse à BBC News Brasil o cientista político Thomas Whalen, especialista em
eleições americanas da Boston University.
Whalen reconhece o ineditismo da situação atual, mas afirma que nem
mesmo a carnificina perpetrada pela guerra da secessão foi capaz de impedir
americanos de irem às urnas. Entre 1861 e 1865, o conflito ceifou a vida de
mais de 1 milhão de americanos. O presidente à época, Abraham Lincoln, recusou
as repetidas propostas para postergar as eleições legislativas de 1962 e a
presidencial de 1964, mesmo que privadamente admitisse a aliados que esperava
pela própria derrota.
"Não se pode ter um governo livre sem eleições. Se a rebelião nos
forçar a desistir ou adiar a eleição nacional, então pode se dizer que nos
conquistou e arruinou", disse Lincoln, que acabou reeleito e cujo lado
sagrou-se vencedor na guerra.
Essa foi só a primeira vez que os eleitores americanos manifestaram suas
opiniões sob condições extremas.
"Os EUA jamais suspenderam uma eleição, nem mesmo em tempos de
guerra (as eleições de 1864, 1918 e 1944 ocorreram durante a guerra civil, a
primeira e a segunda guerra mundiais, respectivamente) ou durante a pandemia de
gripe espanhola. Portanto, não há precedentes para adiar uma eleição. Se isso
acontecesse, marcaria um grande colapso das instituições democráticas
americanas, razão pela qual é tão impensável", afirma à BBC o historiador
Bruce Schulman, diretor do Instituto de Política Americana ligado à
Universidade de Boston.
© EPA No mundo, já são mais de 400 mil
infectados e 20,8 mil mortes por coronavírus
Para Schulman, embora considere as chances de adiamento eleitoral
"extremamente baixas", a possibilidade é em si alarmante. A mesma
opinião tem Whalen:
"Parece-me que nada menos que um holocausto nuclear deve impedir
que os EUA tenham eleições nacionais em novembro. Fazer o contrário seria
acabar com a nossa democracia. E eu não estou sendo hiperbólico. Isso
estabeleceria um precedente terrível e permitiria que tipos autoritários
subvertessem os princípios fundadores de nossa República".
Voto por correio e voto antecipado
Whalen e Schulman não estão sozinhos na preocupação. A BBC News Brasil
teve acesso a uma carta assinada por mais de mil cientistas e historiadores
políticos que exorta o Congresso americano a tomar medidas para garantir a
segurança dos cidadãos que forem às urnas em novembro e assegurar o cumprimento
do calendário eleitoral.
"A pandemia de covid-19 tem causado não só uma crise de saúde
pública, com milhões de pessoas em risco de morte, e um enorme sofrimento
econômico. O vírus também está causando uma crise política, porque impõe
desafios de políticas públicas e coloca em risco as eleições democráticas, que
são o coração do governo representativo", afirma o texto, de autoria dos
cientistas políticos Jeffrey Isaac e William Winecoff, ambos da Universidade de
Indiana.
As mudanças para preservar a eleição sem colocar em risco a saúde da
população podem ser profundas.
Uma das propostas é universalizar a votação gratuita por correio. Hoje,
isso já acontece no Estado de Oregon. Desde 1998, eleitores de lá recebem uma
cédula e devem preenchê-la e depositá-la em uma das urnas espalhadas pelas ruas
da cidade, que mais tarde serão recolhidas pelos correios. O sistema é
altamente popular: mais de 80% dos eleitores o aprovam, em diferentes pesquisas
de opinião, e desde que foi implantado, o voto por carta reduziu o absenteísmo.
Por outro lado, críticos argumentam que o modelo é um convite para a fraude, já
que ninguém verifica a identidade de quem está depositando as cédulas nas
urnas.
Outra ideia seria garantir que os eleitores possam votar não apenas no
dia da eleição, mas se apresentar às suas sessões dias ou mesmo semanas antes
da data determinada, de modo a evitar filas de pessoas interessadas em votar.
Todos os votos seriam contabilizados após o fim do horário estabelecido no dia
3 de novembro.
Há ainda sugestões logísticas importantes: cada eleitor deveria receber
uma caneta descartável para marcar sua opção na cédula de papel, e assim evitar
que o local de votação se torne um vetor da doença. A mudança parece simples,
mas demandaria aprovação de um orçamento extra para custear milhões de canetas.
"Temos ainda um problema adicional. Todos os nossos mesários são
voluntários, e a eleição acontece em dia útil, então, historicamente, as
pessoas que trabalham na eleição e ficariam mais expostas à ação dos vírus são
justamente os aposentados, idosos, o grupo de risco para o covid-19. Teríamos
que aprovar um feriado nacional para a eleição e assim teríamos condição de
recrutar os jovens para organizar a votação e preservar nossa população mais
velha", argumenta Amy Erica Smith, cientista política da Universidade
Estadual de Iowa e uma das signatárias da carta.
Corrida contra o tempo
Todas essas medidas precisam ser discutidas e aprovadas pelo Congresso
americano em um período de menos de 8 meses. "Ainda há tempo suficiente
para isso agora. Mas devemos começar imediatamente. Se esperarmos, corremos o
risco de não conseguir", afirmou Winecoff, à BBC.
Winecoff e Isaac afirmam que não seria estranha à estratégia politica de
Trump tentar adiar as eleições - especialmente se o coronavírus e a recessão
macularem sua popularidade, o que até agora não aconteceu.
"Trump já 'brincou' várias vezes sobre a possibilidade de
permanecer na Casa Branca além de seu mandato e também promove um discurso
antissistema político, que muita gente séria considera autoritário. Além disso,
embora nunca tenha havido adiamento de eleições na história dos EUA, não é
incomum que líderes usem emergências reais para declarar "estados de
emergência" e suspender a lei normal. Lincoln fez isso durante a Guerra
Civil, por boas razões. Trump não é Lincoln. Portanto, a situação está propícia
a esse perigo", afirmou Isaac à BBC News Brasil.
Há duas semanas o presidente americano decretou estado de emergência
nacional em razão do Covid-19. A medida aumenta sua possibilidade de ação sem
que tenha que submeter suas decisões ao Congresso. Isaac ainda lembrou que,
desde a eleição de Trump, a democracia americana tem tido dificuldades para
resolver questões que a enfraquecem, como a interferência de hackers russos em
seu processo eleitoral ou o problema de representação do desenho dos distritos
eleitorais, que têm provocado sobrerrepresentação de legisladores republicanos.
Um adiamento eleitoral, no entanto, dependeria também de aprovação do
Congresso. E senadores e deputados democratas deixaram claro que caminham na
contramão de qualquer articulação nesse sentido. Durante as semanas de debates
sobre o pacote de US$2 trilhões em socorro para a economia americana - aprovado
na última semana - eles propuseram incluir no orçamento de estímulo o que
chamaram de pacote "pró-democracia".
Entre as sugestões estavam permitir que qualquer cidadão americano vote
por correio sem que tenha que apresentar justificativa - e que os custos de
postagem corressem por conta do erário público e que cada Estado fizesse sua
coleta de votos por ao menos 15 dias, não só no dia da eleição. Para tanto,
propuseram reservar R$4 bilhões do orçamento emergencial.
Mas, com um clima de pouco entendimento entre os dois partidos no
Congresso, a aprovação da liberação dos US$ 2 tri chegou a emperrar porque os
republicanos não aprovavam a inclusão dessas questões enquanto que os
democratas não abriam mão delas.
Por fim, a lei aprovada na semana passada faz previsões para assegurar
as eleições, mas de maneira bem menos ambiciosa do que a proposta original dos
democratas: ficarão reservados US $ 400 milhões para os estados se prepararem
para votação antecipada e por correio o pleito de novembro, mas não exige que
todos os estados ofereçam essas opções a seus eleitores. Os democratas, no
entanto, passaram uma mensagem de que não devem facilitar qualquer manobra de
Trump e dos republicanos para postergar a eleição, afirma o analista político
da George Washington University Matthew Dallek. Para Dallek, as instituições do
país tratarão de refrear qualquer ação nesse sentido:
"Tirar Trump da cadeira é o que os democratas mais querem, e é
difícil imaginar um cenário em que eles concordariam atrasar sua possibilidade
de fazê-lo."
Nenhum comentário:
Postar um comentário