Morte de médico que fez primeiros alertas sobre coronavírus causa
revolta online na China
Li Yuan
Primeiro, eles postaram vídeos da canção do musical
Les Misérables, Do You Hear the People Sing (Você ouve o povo cantar).
Depois, invocaram o artigo nº 35 da Constituição da China, que estipula a
liberdade de expressão. Então, tuitaram uma frase do poema Por quem os sinos
dobram.
O público chinês encenou o que equivale a uma
revolta online após a morte de um médico, Li Wenliang, que, no final de dezembro,
tentou alertar as autoridades sobre um vírus misterioso. O novo coronavírus já matou mais de 630 pessoas na China e
infectou milhares de pessoas.
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Reprodução/Redes Sociais Médico Li Wenliang, que teve problemas com autoridades
de saúde por alertar sobre o coronavírus, foi infectado pela doença e morreu
Desde a última quinta-feira, 6, pessoas de
diferentes origens, incluindo autoridades do governo, figuras proeminentes do
mundo dos negócios e usuários comuns da internet, postaram inúmeras mensagens
expressando sua tristeza pela morte do médico e sua raiva pelo silenciamento da
polícia depois dele compartilhar seu conhecimento sobre o novo coronavírus.
"Nunca tinha visto minha linha do tempo do
WeChat cheia de tanta tristeza e indignação. Esta noite é um momento grandioso
para a nossa consciência coletiva", escreveu Xu Danei, fundador de uma
empresa de análise de rede social.
Embora haja alguns dissidentes declarados na China,
esse número diminuiu quando o Partido Comunista, sob o comando de Xi Jinping,
reprimiu repetidamente advogados, jornalistas e empresários.
Nesta sociedade chinesa, altamente censurada, é
raro pessoas comuns fazerem exigências e expressarem abertamente a raiva contra
o governo. É ainda mais raro ver oficiais e chefes de grandes empresas demonstrarem
emoções que podem ser interpretadas como descontentamento com o Estado.
Depois que as especulações sobre a morte de Li
começaram a rodar online na noite de quinta-feira, a máquina de propaganda do
Partido Comunista entrou em ação, tentando controlar a mensagem. Mas não
parecia tão eficaz quanto no passado.
A enxurrada de mensagens online de pessoas tristes,
enfurecidas e de luto foi demais para os censores. O governo até pareceu
reconhecer o tamanho da comoção do país enviando uma equipe para investigar o
que chamou de "questões relacionadas ao Dr. Li Wenliang que foram
relatadas pelo público", embora sem dar mais detalhes.
Para muitas pessoas na China, a morte do médico
trouxe à tona a raiva e a frustração reprimidas pela maneira como o governo
lidou com a situação ao não compartilhar informações sobre o novo vírus. Também
pareceu, para os internautas, que o governo não havia aprendido lições de
crises anteriores, continuando a anular as críticas e relatórios investigativos
online que fornecem informações vitais.
Alguns usuários do Weibo, a plataforma de rede
social da China que é semelhante ao Twitter, dizem que a morte do médico
ressoou porque ele era uma pessoa comum que foi forçada a admitir que fez algo
errado enquanto, na verdade, fazia a coisa certa.
Li foi repreendido pela polícia depois que
compartilhou preocupações sobre o vírus em um aplicativo de mensagens com
colegas da escola de medicina em 30 de dezembro. Três dias depois, a polícia o
obrigou a assinar uma declaração de que seu aviso constituía
"comportamento ilegal".
O médico acabou divulgando suas experiências e deu
entrevistas para ajudar o público a entender melhor a epidemia. O The New York
Times entrevistou Li dias antes de sua morte.
"Ele não queria se tornar um herói, mas para
nós, em 2020, alcançou um patamar superior ao que podemos imaginar que um herói
teria", dizia um post do Weibo. O post é um dos muitos que os usuários
dizem que escreveram com vergonha e culpa por não resistirem a um governo
autoritário, como Li fez.
Muitas pessoas publicaram uma variação de uma
citação: “Quem defende a lenha para as massas é quem congela até a morte no
vento e na neve.” A versão original do ditado é do escritor chinês Murong
Xuecu, que a escreveu cerca de sete anos atrás, quando ele e alguns amigos
estavam arrecadando dinheiro para as famílias de presos políticos.
Foi escrito como um lembrete para as pessoas de que
era do seu interesse apoiar aqueles que ousavam desafiar as autoridades. Muitas
dessas pessoas morreram congeladas, figurativamente falando, pois menos pessoas
estavam dispostas a apoiar publicamente essas figuras dissidentes.
A atmosfera era muito diferente na noite de
quinta-feira. Enquanto a confusão aumentava sobre o destino de Li, as pessoas
acusavam as autoridades de tentar adiar o anúncio de sua morte. O próprio
hospital onde ele estava internado chegou a negar a morte, mas depois confirmou
a notícia, A tristeza foi tão generalizada que apareceu em cantos improváveis.
"Recusando-se a ouvir sua 'denúncia', seu país
parou de pulsar, assim como seu coração", escreveu Hong Bing, chefe da agência
de Xangai do jornal oficial do Partido Comunista, Diário do Povo, em sua linha
do tempo no WeChat, uma plataforma de mensagens instantâneas. "Qual é o
preço que temos que pagar para que você e sua denúncia soem mais altos e possam
alcançar todos os cantos do Oriente?"
As contas no Twitter em chinês e inglês do Diário
do Povo - jornal oficial do Partido Comunista na China - tuitaram que a morte
de Li provocou "tristeza nacional". Ambas as contas excluíram essas
mensagens antes de substituí-las por postagens mais neutras e com aparência
oficial.
Nas redes sociais, muitas pessoas pediram ao
governo que fizesse de Li um mártir e realizasse um funeral com regalias de
chefe de Estado com a presença dos líderes da nação.
"É a primeira vez que minha tela está repleta
com o nome de uma pessoa", escreveu Zheng Wenxin, advogado. "É a
primeira vez que esta nação realiza um funeral tão grandioso para um
médico."
"Descanse em paz, nosso herói", publicou
Fan Bao, um importante investidor em tecnologia, em sua linha do tempo do
WeChat.
Ainda é muito cedo para saber se a raiva e a
frustração online serão demais para a China. Houve indignação pública palpável
em algumas tragédias passadas, incluindo um terremoto de 2008 na província de
Sichuan e um acidente de trem em 2011. Mas ela desapareceu depois de algum
tempo nesses casos.
Algumas pessoas na China estão mais esperançosas
dessa vez. Nessas tragédias passadas, muitas podiam se abster, disse Hou
Zhihui, um comentarista que foi detido duas vezes por seus discursos online.
“Mas desta vez, ninguém pode ficar de fora. É impossível."/ TRADUÇÃO DE
ROMINA CÁCIA
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