Sob liderança de Bolsonaro,
Brasil recebe cúpula do Brics reduzida e ofuscada por instabilidade no
continente
© Isac Nóbrega/PR Bolsonaro pretendia
convidar Guaidó, mas outros membros do Brics rejeitaram proposta
Sob o comando do presidente Jair Bolsonaro, um crítico do
multilateralismo e fiel aliado do governo americano de Donald Trump, o Brasil
sedia em Brasília a partir de quarta-feira (13) uma versão menor da cúpula do
Brics — grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Rompendo
com uma tradição iniciada em 2013, em que o país anfitrião da cúpula passou a
convidar outras nações para um encontro extra ampliado, o governo brasileiro
decidiu manter a reunião deste ano restrita aos cinco integrantes.
No ano passado, por exemplo, a África do Sul promoveu, após a reunião
exclusiva do Brics, encontros expandidos envolvendo 19 nações africanas, além
de Argentina, Turquia e Jamaica. Já na última cúpula realizada no Brasil, em
Fortaleza, em 2014, todos os líderes sul-americanos estiveram presentes.
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Mirando o encolhimento da cúpula do Brics em sua 11ª edição, analistas
de relações internacionais ouvidos pela BBC News Brasil destacam a forte
guinada promovida por Bolsonaro na política externa brasileira, com alinhamento
aos Estados Unidos e críticas frequentes a instituições multilaterais como a
ONU (Organização das Nações Unidas) — retratada inclusive como
"hiena" em um vídeo recentemente compartilhado pelo presidente.
Além disso, notam, o encontro ocorre em meio a uma forte onda de
protestos e instabilidade política no continente sul-americano, cujo o episódio
mais recente foi a derrubada do presidente da Bolívia, Evo Morales, após um
ultimato das Forças Armadas do país, na sequência de denúncias de fraudes nas
eleições.
Nesse contexto, a mera realização do encontro e continuidade do bloco
pode ser vista como um "sucesso", acredita Paulo Esteves, supervisor
geral do Brics Policy Center, instituição da PUC-Rio.
"Considerando toda a instabilidade da região (sul-americana) e as
próprias transformações da política externa brasileira, essa é uma cúpula que,
no final das contas, faz uma ponte entre a África do Sul (sede da cúpula
anterior) e a Rússia (sede do encontro de 2020). O mais importante
provavelmente para os integrantes do Brics, para além do Brasil, é a manutenção
do próprio grupo", afirma.
© REUTERS/Florence Lo Segundo
especialista, Xi Jinping pretendia encontrar outros líderes sul-americanos, mas
Bolsonaro esvaziou reunião
Encontros bilaterais e anúncios de investimentos
A previsão é que Vladimir Putin (presidente da Rússia), Narendra Modi
(primeiro-ministro da Índia), Xi Jinping (presidente da China) e Cyril
Ramaphosa (presidente da África do Sul) cheguem nesta terça-feira em Brasília.
Na quarta, ao longo do dia, os quatro participam de encontros bilaterais
com Bolsonaro e provavelmente terão também encontros privados entre si. Depois,
comparecerão à cerimônia de encerramento do Fórum Empresarial do Brics, que
reunirá 500 empresários das cinco nações, segundo o Itamaraty.
No dia seguinte, os cinco líderes discutirão temas definidos como
prioritários pelo Brasil (atual presidente do grupo), entre eles ciência,
tecnologia e inovação; combate a ilícitos internacionais e o terrorismo; e
cooperação em saúde. Nessa última área, haverá anúncio de novo comprometimento
com pesquisas para tratamento da tuberculose, doença que atinge de forma
relevante os cinco países, além da criação da Rede Brics de Leite Humano, com
objetivo de replicar nos outros países do grupo o modelo de coleta e
distribuição de leite materno do Brasil.
Durante a cúpula, também está previsto o anúncio de novos investimentos
do New Development Bank (NDB, o banco do Brics) no Brasil, em projetos de
desenvolvimento sustentável.
© Getty Images Líder russo Vladimir
Putin deve chegar a Brasília nesta terça-feira (12)
O embaixador aposentado Roberto Abdenur, que já chefiou as embaixadas
brasileiras na China e nos Estados Unidos, além de ter sido secretário-geral do
Ministério das Relações Exteriores, acredita que o Brasil "não será um
ator glorioso" nesta cúpula, mas também "não vai dar um vexame".
Abdenur tem acompanhado parte dos documentos produzidos pelo bloco nos
encontros prévios à cúpula (mais de 100, segundo o Itamaraty, envolvendo
ministros de Estado, diplomatas e outras autoridades) e avalia que, de modo
geral, tem prevalecido um certo pragmatismo por parte do Brasil na relação com
o Brics, em vez de uma postura mais ideológica que se nota, por exemplo, na
relação com a Argentina hoje.
O comunicado produzido após encontro dos ministros de Relações
Exteriores do Brics em setembro, durante a assembleia da ONU em Nova York, por
exemplo, valoriza o papel das Nações Unidas e reforça o compromisso do bloco
com "a plena implementação do Acordo de Paris" para redução das
mudanças climáticas.
"Os Brics estão aí para ficar e o Brasil estaria cometendo um
gravíssimo erro implodindo os Brics, inclusive porque isso ofenderia
profundamente nossa principal parceira na área econômica-comercial, a China,
uma grande potência internacional, e incomodaria os outros parceiros também. O
Brasil tem, por exemplo, interesse grande em um acordo de livre-comércio com a
Índia", destaca Abdenur.
Divergências sobre Venezuela afetaram cúpula,
afirma professor
De acordo com o Itamaraty, a decisão de não convidar outros países para
participar da cúpula do Brics decorreu de uma escolha por priorizar o fortalecimento
da cooperação dentro do bloco. Já nos bastidores da diplomacia, há uma
compreensão de que as diferenças entre os integrantes do Brics na questão
venezuelana acabou impedindo a inclusão dos vizinhos sul-americanos no
encontro.
Enquanto o governo Bolsonaro reconhece Juan Guaidó, presidente da
Assembleia Nacional venezuelana, como mandatário do país, todos os demais
países do Brics continuam dando suporte ao governo de Nicolás Maduro.
Segundo Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais na
Fundação Getúlio Vargas (FGV) que acompanha de perto os Brics e mantém contato
com diplomatas de Brasil e China, o governo brasileiro queria convidar Guaidó
como representante venezuelano para a cúpula em Brasília, em mais um aceno para
o governo americano de Donald Trump. No entanto, a proposta não foi aceita
pelos demais, o que acabou frustrando uma ampliação da reunião.
"A visita do Xi Jiping (presidente chinês) à América Latina é a
viagem mais longa que ele pode fazer no mundo. Ele viaja 20 horas de avião.
Havia a expectativa de que ele pudesse nessa cúpula encontrar também
mandatários da região, os presidentes colombiano, peruano, argentino etc., mas
o Brasil insistiu no Guaidó", afirma Stuenkel.
"Eu estive com assessores do (presidente argentino Maurício) Macri
dois meses atrás e eles estavam falando da viagem do Macri para a cúpula Brics,
com a possibilidade de levar junto o (presidente eleito da Argentina) Alberto
Fernández, caso ele vencesse a eleição, mas o convite acabou não
ocorrendo", conta ainda.
Antagonismo
No caso da Argentina, o governo Bolsonaro adotou uma postura de forte
antagonismo com Fernández, eleito no final de outubro tendo como vice em sua
chapa a ex-presidente Cristina Kirchner. Embora a Argentina seja
tradicionalmente o parceiro mais importante do Brasil no continente, o
presidente decidiu não ir à posse dos dois.
Questionado pela BBC News Brasil sobre a ausência de mais países no
encontro, o Ministério das Relações Exteriores disse que "a notícia de que
a cúpula do Brics estaria esvaziada carece de fundamento", destacando a
participação dos líderes "de todos os países-membros".
© Getty Images África do Sul, hoje
presidida por Cyril Ramaphosa, foi o último país a ingressar no grupo
"A Presidência brasileira do Brics considerou importante fomentar
as relações entre os países do grupo, razão pela qual se optou pelo convite a
países-membros apenas", disse ainda o Itamaraty, sem responder sobre o
desentendimento na questão venezuelana.
Para Stuenkel, Bolsonaro perdeu a oportunidade de se colocar como
"líder internacional, com poder convocatório".
"Nesse sentido, a cúpula vai ser menor, mas o chinês pensa a longo
prazo e (seu líder) não deixaria de vir", ressalta Stuenkel, lembrando que
desde a primeira cúpula, em 2009, jamais algum mandatário dos países membros
deixou de comparecer.
Já Paulo Esteves, do Brics Policy Center, considera estranho que o
Brasil insista em pautar o tema da Venezuela, já que claramente não é um
assunto que gera convergência no bloco.
Em um dos encontros prévios da cúpula de líderes, realizado em julho no
Rio de Janeiro entre os ministros das Relações Exteriores dos cinco países, o
chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, fez um apelo para que seus pares ouvissem
o "grito por liberdade" do povo venezuelano. Recebeu uma resposta
direta do chanceler russo, Sergei Lavrov, sobre a necessidade de se "utilizar
a lei internacional como base e dar apoio aos venezuelanos sem interferência
externa, e sempre dentro da Constituição".
Apesar do momento delicado, Brics continua
importante
O bloco Brics nasceu inicialmente como Bric, reunindo apenas Brasil,
Rússia, Índia e China. Quem pela primeira vez enxergou os quatro como um grupo
foi o economista britânico Jim O'Neill, ao criar o termo Bric para se referir
aos quatro países, que ele considerava com grande potencial de crescimento
econômico, em um relatório do banco Goldman Sachs de 2001.
© EPA Líder indiano, Modi é o político
mais popular de seu país desde Indira Gandhi
A partir de 2006, os quatro países começaram a se articular, até que,
depois de crise global de 2008, o grupo ganhou fôlego e passou a realizar
cúpulas anuais com os chefes de Estado e de governo no ano seguinte. Depois, em
2011, a África do Sul entrou para o bloco, que passou a se chamar Brics.
Inicialmente, havia um foco em aumentar a importância dos países
emergentes em organismos internacionais, como ONU e FMI. Depois, o bloco passou
a criar suas próprias instituições, como o banco do Brics, e estreitar a
cooperação em outras áreas.
Em entrevista à BBC News Brasil sobre a cúpula que acontecerá em
Brasília, Jim O'Neill questionou o resultado
dessas reuniões. "Eles geralmente parecem desfrutar apenas do simbolismo
da reunião, em vez de realmente adotar políticas. Eu disse a um amigo na semana
passada: 'alguém notaria se não houvesse reunião do Brics?'", afirmou.
Para os analistas brasileiros ouvidos nesta reportagem, porém, o grupo
tem grande importância, ao reunir grandes nações fora da esfera de influência
dos Estados Unidos e União Europeia.
© Fornecido por BBC World Service
Trading Limited Previsão de crescimento nos BRICS em 2019 . . Gráfico mostra
expectativa de crescimento nos BRICS .
Segundo Oliver Stuenkel, da FGV, muitas das críticas ao grupo partem de
uma visão ocidentalizada, inclusive dentro do Brasil.
"O G7 (que reúne Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália,
Japão e Reino Unido) tem muita discordância interna e não conseguiu sequer
produzir uma declaração final no encontro do ano passado", lembra ele.
"Há uma naturalidade com a qual a gente vê países ocidentais
liderando o mundo. Achamos normal sete países se encontrarem, incluindo países
que mandam em nada, como Itália e Canadá, para discutir grandes questões. E no
Brics, em que se encontram países com peso econômico e demográfico muito
superior, vem um monte de gente dizer que não importa. É muito estranho",
crítica.
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