Geração atual tem pouco contato com a natureza,
alertam especialistas
Agência Brasil
"Uma nuvem de
calças". Foi assim que o jornalista e tradutor Eduardo Bueno definiu o
poeta, historiador e filósofo norte-americano Henry David Thoreau, conhecido
por escrever o livro Walden (ou A Vida nos Bosques). Na obra, Thoreau
compartilha a experiência de levar uma vida simples, longe dos centros urbanos.
Encantado com o
esplendor da natureza, o filósofo buscou descobrir, aos 28 anos, o que seria o
avesso da industrialização. Já no século 19, esperava se libertar do que
classificava "uma falsa pele", empreitada que seria possível somente
ao se distanciar do consumismo, segundo ele. Ao partir, não quis se explicar a
ninguém, pois acreditava que as pessoas ao seu redor não entenderiam suas
razões, julgando sua jornada "impertinente".
Em um trecho do livro,
Thoreau afirma que a humanidade trabalha "sob engano" e se dedica a
"acumular tesouros que serão roídos pelas traças". Para ele, a
maioria das pessoas "não tem tempo de ser nada além de uma máquina".
Viver sem tantas
frivolidades e usufruir mais intensamente de cenários naturais é também uma das
propostas da Sociedade Brasileira de Pediatria e do Instituto Alana, de defesa
dos direitos de crianças e adolescentes. Em maio, as duas instituições
divulgaram o manual Benefícios da Natureza no Desenvolvimento de
Crianças e Adolescentes.
No documento,
destacam que fatores como o planejamento urbano deficiente, o adensamento
populacional, a especulação imobiliária e a "supremacia dos carros em
detrimento de pedestres ou ciclistas" têm levado ao desaparecimento de
espaços verdes nas cidades. Conforme explica Laís Fleury, coordenadora do
projeto Criança e Natureza, do Instituto Alana, o manual tem como principal
público crianças e adolescentes da zona urbana, por sofrerem mais fortemente os
prejuízos resultantes desse cenário.
Déficit de natureza
Ela diz que a
infância nesses locais tem como característica um progressivo
"confinamento" e que esse estilo de vida provoca impactos grandes na
saúde. O conjunto de efeitos citado pela coordenadora é relacionado ao chamado
Transtorno de Déficit de Natureza. O termo foi cunhado por um dos co-fundadores
do Children & Nature Network, Richard Louv, que escreveu o livro A Ultima
Criança na Natureza (Last child in the woods).
Laís defende que o
contato com a natureza promove o desenvolvimento integral das
crianças porque "sua linguagem é o brincar".
"Principalmente o brincar espontâneo. É através dele que a criança se
conhece, compreende o mundo. O brincar passa muito pelo corpo, que é uma
linguagem de conhecimento que ela vai desenvolvendo quando está
crescendo", acrescenta.
"Quando está em
um ambiente aberto, ao ar livre, a forma como [a criança] se comunica é através
do corpo. Quando está presente em um ambiente com bastante espaço, numa praia,
por exemplo, ela sente, naturalmente, vontade de correr, de pular, e esses são
os verbos da infância. Ela se sente convidada, dialoga, é uma criança que,
fisicamente, tende a ser mais saudável, tende a não ter problema com
sobrepeso, porque está em constante movimento, desenvolvendo a força motora, a
coordenação, o equilíbrio", pontua.
Segundo Laís, ao
incorporar atividades ao ar livre ao cotidiano dos filhos, os pais geram
benefícios adicionais, no âmbito da saúde mental. "A gente sabe,
intuitivamente, do poder restaurativo que a natureza tem. Adultos, quando estão
cansados, passam tempo na natureza, na floresta, isso nos regenera. E é a mesma
coisa para as crianças. Esse bem-estar, esse poder regenerativo que a natureza
tem é algo que impacta, de maneira muito positiva, a saúde da criança",
frisa Laís.
Transformações: do
individual ao coletivo
A especislita cita
outros benefícios do contato das crianças com a natureza. "Há várias
pesquisas que mostram que tendem a ser crianças mais equilibradas
emocionalmente. É um ambiente que favorece muito a integração entre pares,
membros da família, favorece vínculos, porque um ajuda o outro e tem
brincadeiras acolhedoras. Quando está em meio à natureza, a criança brinca com
possibilidades. Ela está, o tempo todo, criando os próprios brinquedos. Na brincadeira
com o outro, não há um limitador", afirma a coordenadora.
"Ela [a
criança] estabelece uma brincadeira muito criativa com a natureza, onde a gente
percebe que ela ressignifica [coisas]. A gente vê um pauzinho, que, uma hora,
pode ser uma espada de um príncipe e, outra hora, pode ser um rabinho de um
bicho, algo para puxar um barco, uma caneta pra escrever na areia. [Nota-se]
Como um mesmo elemento nutre criativamente a criança, a imaginação",
complementa.
De quebra, o lúdico
na natureza, diz Laís, é capaz de ampliar a resistência diante de dificuldades.
"Por exemplo, ao subir em uma árvore, a criança está lidando com o risco,
por estar trabalhando com a altura. E o fato de ela estar lidando com essas
adversidades faz com que esteja desenvolvendo uma resiliência maior. Está
trabalhando a coragem dela, com o imprevisível".
O incentivo a
passeios em áreas verde é tema do guia Acampando com Crianças, elaborado pelo
Instituto Alana, com o apoio da Coalizão Pró-Unidades de Conservação da
Natureza e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Também participam da iniciativa o portal de campismo MaCamp e a organização
Outward Bound Brasil. O material tem distribuição gratuita e pode ser baixado
por download.
O guia lista oito
parques nacionais com áreas reservadas para acampamento. Um deles é o Parque
Nacional do Caparaó, que fica na Serra do Caparaó, divisa entre os estados de
Minas Gerais e Espírito Santo. A unidade tem fama de ser um dos destinos mais
procurados pelos adeptos do montanhismo no Brasil e abrigar o terceiro ponto
mais alto do país, o Pico da Bandeira.
Laís finaliza
ressaltando que especialistas observam que as contribuições não se restringem
às esferas espiritual e de saúde, manifestando-se, similarmente, no campo
da consciência ambiental. Ela argumenta que uma pessoa, ao crescer com
vivências que valorizam a biodiversidade, ano após ano, passa a prezar por uma
rotina de hábitos mais sustentáveis. "Além de proporcionar para as
crianças uma alegria de poder brincar, é uma experiência relacionada a valores
humanos, de desenvolvimento de ética, de respeito ao outro, ao meio ambiente,
de contemplação do belo", afirma.
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