Carnaval Espiritual
Frei Betto
Neste Carnaval, quero me fantasiar de anjo debochado, deixar que Deus
faça do meu coração salão de festa e me inebriar de quietute espiritual. Não
recitarei nenhuma das preces canônicas e abrirei caminho na insensatez do mundo
com a minha espada de fogo.
Meu Carnaval terá como enredo a beleza da Criação, da explosão primeva,
que deu origem às partículas subatômicas, à exuberância dos corpos que se
multiplicam na criatividade infinita da dança. Ao iniciar o desfile, não darei
o grito de guerra, e sim de paz.
Farei do Jardim do Éden imenso sambódromo e levarei a inocência adâmica
a seu extremo: nu, exibirei os contornos da alma e integrarei a comissão de
frente, toda ela morada divina na pista ladrilhada de virtudes.
Serei passista na escola de samba da Via Láctea e aplaudirei o
mestre-sala, o Sol, rodeado de cabrochas dançantes chamadas planetas. Ao
repicar dos trovões e ao brilho incandescente dos relâmpagos, rodopiarei pela
trilha dos meteoros rumo ao útero reversível dos buracos negros.
Verei estrelas desabarem qual confetes e asteroides se espalharem pelo
céu como serpentinas. Todo o Universo transformado em incomensurável baile de
Carnaval. E em nosso planeta, os seres humanos transmutados em seus
semelhantes, despidos da própria fantasia para se encararem na face do próximo.
Na ala dos místicos, desfilarão Pitágoras, Jesus, Plotino, Rumî, Mestre
Eckhart, Teresa de Ávila, João da Cruz, Gandhi, Edith Stein e Yogananda. Na dos
santos, Agostinho, Tomás de Aquino, Celestino V, Oscar Romero, Helder Camara,
Luther King, Pedro Casaldáliga e Paulo Evaristo Arns. Na dos sábios, Confúcio,
Sócrates, Platão, Aristóteles, Eratóstenes, Hipácia, Simone Weil, Celso
Furtado, Darcy Ribeiro, Milton Santos, Hélio Pellegrino, Alceu Amoroso Lima e
Antonio Candido. Como destaque, o Barão de Itararé.
Ao recuo da bateria, serei todo ouvido ao silêncio, para que me envolva
por fora e por dentro, até que eu seja revirado ao avesso para que a voz do
mistério irrompa no mais íntimo de mim. Quero uma batucada inflamada capaz de
ressuscitar os mortos e induzir os vivos ao êxtase inexprimível. Ao som do
surdo, entoarão o Magnificat.
Em reverência ao Inominável, arrancarei os adereços que me recobriram ao
longo da vida. Reduzido à minha própria identidade, sem paetês e lantejoulas,
irei em busca do meu par, o Outro que habita o âmago do meu ser. Então, já
nenhum espelho refletirá a minha face. Ali verei aquele que realmente sou e, no
entanto, não ouso assumir.
Ao reiniciar a evolução da bateria, celebrarei a harmonia do
congraçamento de paz enraizada na justiça. Quero o tamborim ecoando alegrias e
a cuíca rememorando o lamento dos excluídos. Cornetas soarão, não para derrubar
os muros de Jericó, e sim preconceitos e discriminações que impedem a
embriaguez da solidariedade.
Desfilarei na ala da compaixão até o momento de subir no carro alegórico
das bem-aventuranças. Então, toda a avenida contemplará a suntuosa coreografia
de esperançosas utopias. Momo será destronado para dar lugar Àquele que fez
jorrar vinho nas bodas de Caná.
Ao se aproximar do fim do desfile, todos os sambistas e passistas,
baianas e cabrochas, pierrôs e arlequins, ao som de pandeiros e reco-recos,
exibirão, na palma das mãos, seus corações de pedra transformados em corações
de carne. Então, um silêncio apoteótico reinará sobre a avenida. E todos
haverão de reverenciar o que há em cada um de mais profundo de si mesmo.
Rompidas as barreiras do ego e da mente, caídas as máscaras, arrancadas
as escamas dos olhos e dilatados os ouvidos, o Amor irromperá como solene
sagração do humano.

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