História de Leandro Prazeres – Da BBC News Brasil em Brasília

Apesar de trocarem elogios, Emmanuel Macron e Lula estão em lados
opostos quando o assunto é o acordo comercial entre o Mercosul e a União
Europeia. O francês é contra e o brasileiro é a favor© Ricardo Stuckert
/ Presidência da República
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) desembarca nesta quinta-feira (5/11) em Montevidéu, capital do Uruguai, para participar da Cúpula de Líderes do Mercosul. Será a última reunião antes da presidência do bloco passar às mãos da Argentina do presidente Javier Milei. Mas as atenções de parte importante da delegação brasileira que chegará ao Uruguai estarão voltadas para outro continente: a Europa.
Assim como há um ano, existe a expectativa de que o acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia possa
ser fechado ainda neste ano, encerrando uma espera de 25 anos. Há
expectativa de que a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der
Leyen, viaje ao Uruguai para anunciar o acordo.
Em 2023, no entanto, a expectativa girava em torno de um possível
anúncio sobre o tema durante a Cúpula do Mercosul no Rio de Janeiro. Mas
o anúncio não veio e o clima que se instalou no governo foi de
decepção.
Neste ano, Lula e representantes da diplomacia brasileira deram novas demonstrações de otimismo.
“Eu pretendo assinar esse acordo este ano ainda”, disse Lula durante
um evento na semana passada. O principal negociador do acordo pelo
Ministério das Relações Exteriores (MRE), Maurício Lyrio, disse que o
governo está “esperançoso”.
“O que eu posso dizer é que estamos esperançosos […] Estamos vendo de maneira positiva o desenrolar das negociações”, afirmou.
Segundo o governo brasileiro, os negociadores dos dois blocos já
finalizaram as tratativas em torno do texto e as últimas questões
pendentes foram submetidas aos chefes de Estado do Mercosul e da União
Europeia. Na prática, isso significa dizer que a finalização do acordo
ou não depende, agora, da vontade política dos dois blocos.
Mas o otimismo brasileiro contrasta, novamente, com a resistência de um importante membro da União Europeia: a França. Há anos, o país vem tentando barrar o avanço do acordo e, neste ano, o presidente do país, Emmanuel Macron, deu diversas declarações se colocando contra a finalização do tratado.
“A França se opõe a este acordo”, disse Macron em novembro, durante viagem oficial a Buenos Aires.
Na raiz da oposição francesa está a pressão de agricultores do país
que temem a concorrência dos produtos do Mercosul, especialmente a carne
produzida por Brasil, Argentina e Uruguai.
Mas apesar de ser a segunda maior economia do bloco europeu (atrás
apenas da Alemanha), a França sabe que, sozinha, não teria condições
técnicas de barrar o avanço do acordo que é negociado pela Comissão
Europeia.
“Se os franceses não quiserem o acordo, eles não apitam mais nada,
quem apita é a Comissão Europeia”, disse Lula na semana passada.
Por isso, a França vem tentando nos últimos meses pôr em prática uma estratégia capaz de barrar o avanço das negociações.
A BBC News Brasil conversou com diplomatas e funcionários do governo
brasileiro e europeus, além de especialistas em relações internacionais
para entender como funciona a estratégia francesa e como ela pode (ou
não) “melar” o acordo entre a União Europeia e o Mercosul mais uma vez.
Minoria qualificada: a estratégia de Macron
A estratégia da França para barrar o acordo entre a União Europeia e o
Mercosul é formar o que ficou conhecido como uma “minoria qualificada”
no Conselho da União Europeia.
Esse mecanismo exige que pelo menos quatro países, representando
juntos mais de 35% da população do bloco, se oponham ao acordo para que
ele seja rejeitado. Para alcançar esse objetivo, a França precisa
conquistar o apoio de mais três países que, somados à sua população,
representem aproximadamente 156 milhões de pessoas.
Para entender como essa estratégia funciona, é essencial compreender
os mecanismos da União Europeia para a negociação de acordos comerciais.
Quem negocia o texto do acordo é a Comissão Europeia, um órgão formado por comissários de todos os 27 países-membros da UE.
A presidente da comissão, Ursula von der Leyen, já se manifestou
favorável ao acordo. O órgão tem autonomia para negociar com outros
países ou blocos econômicos, como o Mercosul.
Depois de encerrada a fase de negociações, o texto do acordo é submetido à aprovação pelo Conselho da União Europeia.
Para ser aprovado, ele precisa do apoio de 55% dos países do bloco
(15 dos 27), que juntos representem ao menos 65% da população total da
UE. Esse sistema de maioria qualificada foi criado para equilibrar o
poder entre países mais e menos populosos, evitando que os maiores
imponham unilateralmente suas vontades.
No caso francês, além de sua própria oposição, o país já conta com o
apoio oficial da Polônia, totalizando 104 milhões de habitantes. Para
alcançar o número necessário para bloquear o acordo, a França aposta que
Itália, Países Baixos e Áustria se juntem a eles, formando assim a
minoria qualificada necessária para barrar a proposta no Conselho
Europeu.
Apesar de o acordo ainda não ter sido submetido à votação da Comissão
Europeia, um diplomata brasileiro ouvido pela BBC News Brasil sob
condição de anonimato afirmou que se a França obtiver o apoio público
dos países necessários à composição dessa minoria qualificada, o órgão
liderado por Ursula Von der Leyen ficaria em uma situação delicada para
avançar com o acordo.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a presidente da
Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, durante reunião na Cúpula do
G20. Há expectativa de que Mercosul e União Europeia anunciem a
finalização do acordo de livre comércio entre os dois blocos© Ricardo
Stuckert/Presidência da República
Protecionismo à francesa
Especialistas e diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que a
principal razão pela qual a França se opõe ao acordo é a resistência
organizada de agricultores do país. Apesar de ser uma das principais
potências industriais do bloco europeu, o lobby da agricultura é visto
como poderoso e influente.
“Macron está lidando com pressões, principalmente de setores
agrícolas na França. Os fazendeiros de lá terão que lidar com a
concorrência de um país como o Brasil que tem um setor agropecuário
muito forte. Essa é a grande questão por trás da resistência ao acordo”,
disse à BBC News Brasil o professor Cairo Junqueira, professor do
Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de
Sergipe (UFS).
Nos últimos meses, as principais associações que representam o
agronegócio francês deram início da manifestações contrárias à
assinatura do acordo sob a alegação de que a entrada em vigor do tratado
colocaria em risco milhares de empregos e abrirá as portas do mercado
francês a produtos agrícolas produzidos sem os mesmos padrões de
qualidade ambiental e sanitários exigidos dos fazendeiros franceses.
Paralelamente, a rede de supermercados francesa Carrefour anunciou,
há duas semanas, que deixaria de comprar carne produzida pelo bloco.
Após a repercussão negativa do anúncio, a companhia recuou.
“O protecionismo agrícola é muito forte e acho que é a principal
barreira ao avanço do acordo. Os setores agrícolas da França e da
Irlanda temem a competição com produtos do Mercosul”, disse a professora
de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) Regiane Bressan.
A professora está em Berlim nesta semana e passou os últimos dias conversando com parlamentares alemães sobre o assunto.
Segundo ela, os políticos alemães deixaram claro que o acordo só não foi anunciado até agora por conta da oposição de Macron.
“Foi muito reforçado aqui na Alemanha que quem está colocando uma
barreira para o acordo é a própria França e que o acordo não teria sido
assinado no G20 por conta do Macron”, disse a professora em referência à
cúpula de líderes do G20 realizada no Rio de Janeiro em novembro.
Um funcionário do governo brasileiro a par das negociações entre os
dois blocos disse à BBC News Brasil em caráter reservado que, apesar do
otimismo expressado pelo governo brasileiro oficialmente, o cenário para
a assinatura do acordo ainda é incerto.
Segundo ele, além da pressão contrária feita pelo governo francês, o
país ainda enfrenta uma crise política grave depois que o Parlamento
aprovou um voto de desconfiança em relação ao governo na quarta-feira
(4/11). É a primeira vez que o governo é derrubado por um voto de
desconfiança desde 1962.
Agora, Macron precisa apontar um novo primeiro-ministro cujo nome precisa ser aprovado pelo Parlamento.
Na avaliação da fonte ouvida pela BBC News Brasil, o temor entre
brasileiros e europeus é de que em meio ao cenário conturbado, aprovar o
acordo entre União Europeia e Mercosul poderia gerar ainda mais
descontentamento contra Macron e alimentar a oposição de extrema-direita
liderada pela parlamentar Marine Le Pen, que vem, inclusive, defendendo
a sua renúncia.
Na avaliação da professora Regiane Bressan, no entanto, as chances de a França “melar” o acordo parecem remotas no momento.
“O que pude coletar de informações aqui em Berlim é de que o caminho
será o da assinatura. A França vai continuar se opondo e talvez promova
uma mobilização grande no Parlamento Europeu ou nas ruas, mas não vejo
que haja mais tempo para isso. Faltam dois dias para a Cúpula do
Mercosul, apenas”, disse.
Cairo Junqueira, da UFS, também avalia que a França, sozinha, não
conseguiria conter o acordo se não conseguir formar a coalizão.
“Isoladamente, é muito difícil a França conseguir barrar. Por isso
ela vem procurando formar essa coalizão com outros países”, afirmou o
professor.

Especialistas apontam que acordo entre UE e Mercosul pode ser uma
proteção contra imposição unilateral de tarifas prometida por Donald
Trump© Reuters
Efeito Trump
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil pontuam que, apesar da
resistência francesa, um outro elemento pode ajudar a destravar as
negociações do acordo entre o Mercosul e a União Europeia: a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos.
Segundo eles, a promessa de impor tarifas sobre produtos estrangeiros
feita por Trump pode fazer com que sul-americanos e europeus se unam
para enfrentar um eventual recrudescimento do protecionismo
norte-americano.
“É importante lembrar que a primeira assinatura do acordo, em 2019,
teve a eleição de Trump como impulso. Agora, é possível que esse novo
mandato possa abrir um canal para avançar com esse acordo de livre
comércio”, afirmou Cairo Junqueira.
Para a Regiane Bressan, os países favoráveis ao acordo na Europa,
encabeçados pela Alemanha e pela Espanha, consideram o tratado com o
Mercosul como estratégico em meio às incertezas geopolíticas atuais.
“Esses países estão com medo do fator Trump e, também, com relação ao poder de países como China e Rússia na
América do Sul. Para a Alemanha, por exemplo, o acordo é uma forma de
ampliar ou manter a influência da Europa na América do Sul em um
contexto de crescente influência da China e da Rússia”, disse.
Mais de duas décadas de negociação
O acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia
começou a ser negociado em 1999 e prevê a isenção ou redução na cobrança
de impostos de importação de alguns bens e serviços produzidos nos dois
blocos.
Em 2019, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), os dois blocos
assinaram o acordo. Para começar a valer, porém, o texto precisava
passar por uma revisão técnica e pela ratificação dos parlamentos de
todos os países envolvidos.
Após quatro anos paralisado, o acordo voltou a ser negociado após a
mudança de governo no Brasil, com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) ao Palácio do Planalto. Desde então, o acordo foi travado por
exigências ambientais e questionamentos de setores como o agronegócio
francês.
Em dezembro do ano passado, durante a Cúpula do Mercosul no Rio de
Janeiro, negociadores dos dois blocos chegaram a ficar próximos de uma
versão final do acordo, mas ele não foi assinado.
Um estudo divulgado no início deste ano pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) apontou que o acordo poderia ter impactos
positivos sobre o produto interno bruto do Brasil (PIB). Segundo o
estudo, entre 2024 e 2040 o PIB do país teria um aumento acumulado de
0,46%, o equivalente a US$ 9,3 bilhões por ano.
Para elaborar o estudo, os pesquisadores do Ipea utilizaram projeções
de crescimento econômico do Fundo Monetário Internacional (FMI) entre
2014 e 2026 e replicaram as taxas de crescimento para os anos seguintes
até 2040.
O estudo também aponta que o Brasil teria um aumento de 1,49% nos investimentos.
A dinâmica das importações e exportações também seria transformada.
As importações brasileiras cresceriam rapidamente nos primeiros anos do
acordo, atingindo um pico de US$ 12,8 bilhões em 2034, antes de recuar
para US$ 11,3 bilhões em 2040. Já as exportações teriam um aumento
contínuo no mesmo período, alcançando um ganho acumulado de US$ 11,6
bilhões.
Esse movimento seria impulsionado por fatores como a redução de
tarifas na União Europeia, concessões de cotas de exportação e queda nos
custos domésticos de insumos e bens de capital, o que tornaria os
produtos brasileiros mais competitivos no mercado global.