quinta-feira, 4 de março de 2021

AUXÍLIO EMERGENCIAL É APROVADO NO SENADO EM PRIMEIRO TURNO

 

Senado aprova, em primeiro turno, PEC que retoma auxílio com contrapartidas fiscais

Governo conseguiu aprovar gatilhos para contenção de despesas no futuro, mas precisou se conformar com a retirada do fim dos gastos mínimos com saúde e educação do texto; senadores ainda analisarão o texto no segundo turno

Idiana Tomazelli, Daniel Weterman e Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – A equipe econômica conseguiu driblar a ameaça de desfiguração do teto de gastos, a principal âncora fiscal do País, e obteve no Senado Federal a aprovação em primeiro turno do texto-base da PEC emergencial, que vai recriar o auxílio a trabalhadores vulneráveis na pandemia limitado ao custo total de R$ 44 bilhões. Se de um lado o ministro Paulo Guedes saiu vitorioso por manter no texto os gatilhos para contenção de despesas no futuro, de outro o governo precisou se conformar com a retirada de pontos como o fim da obrigação de gastos mínimos em saúde e educação.

A aprovação do texto-base teve apoio de 62 senadores, ante 16 contrários, no primeiro turno. Os chamados destaques (sugestões de alterações ao texto) foram rejeitados. Os senadores ainda vão analisar o texto no segundo turno, marcado para esta quinta-feira, 04. Em cada votação, é necessário o apoio de, no mínimo, três quintos do Senado, o correspondente a 49 de 81 senadores. Depois, a PEC segue para a Câmara dos Deputados, onde vai direto para votação em plenário.

O resultado veio no fim de um dia de grande tensão dentro do governo diante da ameaça de fatiar a PEC e votar apenas a autorização para o auxílio (o que foi rejeitado pelos senadores) e manobras para furar o teto (regra que limita o avanço das despesas à inflação) para além dos gastos com a pandemia. A equipe de Guedes precisou agir para evitar uma desfiguração do texto.

Lideranças do Senado queriam retirar R$ 34,9 bilhões em despesas com o programa Bolsa Família do alcance do teto, o que abriria espaço na regra para mais gastos com emendas indicadas por parlamentares e investimentos em obras às vésperas de ano eleitoral. A tentativa fez derreter os principais indicadores do mercado financeiro, o dólar chegou a bater R$ 5,76 e criou-se um clima de desconfiança em relação aos rumos da votação.

Senado
Time de Guedes conseguir evitar o rompimento do teto a tempo da votação da PEC Emergencial. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Nos bastidores, o time de Guedes precisou agir e travou uma verdadeira batalha com a ala política em torno da questão. A revolta foi tão grande que houve ameaça de novas baixas na equipe. Autoridades passaram a temer uma “destruição estrutural” das regras fiscais.

O ex-secretário do Tesouro Nacional Mansueto Almeida, hoje economista-chefe do BTG Pactual, alertou que o “truque contábil” poderia ampliar a desconfiança com a sustentabilidade do País, levando o Banco Central a acelerar o passo no aumento dos juros. “Uma PEC que deveria aumentar a confiança do arcabouço de ajuste fiscal do país corre o risco de ser percebida apenas como um instrumento para flexibilizar o teto dos gastos”, disse.

O economista-chefe da XP InvestimentosCaio Megale, que também já integrou a equipe de Guedes, avaliou que o cenário para a votação se deteriorava rapidamente e alertou que, com o Bolsa Família fora do teto, o “céu é o limite”. “Esse valor pode ser qualquer coisa”, afirmou.

Segundo apurou o Estadão/Broadcast, Guedes esteve com o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas nesta quarta-feira, 3, para discutir o impasse. No encontro, foi discutida a possibilidade de edição de uma Medida Provisória para o pagamento do auxílio sem aprovação da PEC. O próprio ministro do TCU sinalizou essa possibilidade em postagem no Twitter, numa tentativa de alertar para os prejuízos de fragilizar o teto.

Uma das linhas de negociação agora é usar a economia de recursos do Orçamento do Bolsa Família nos quatro meses de concessão do auxílio para reforçar o programa no segundo semestre.

No fim do dia, o presidente da Câmara dos DeputadosArthur Lira (PP-AL), tratou que pôr fim aos rumores de manobra extrateto. “Não há a intenção nem a vontade, nem eu acredito que aconteça nenhuma votação de PEC no Senado e na Câmara que ameace o teto de gastos”, disse.

Crise de confiança

Apesar de a equipe econômica ter conseguido desmontar a articulação para tirar o Bolsa Família do teto de gastos, no mercado financeiro a sensação é de que o País está na porta de uma crise de confiança, mesmo que a âncora fiscal resulte intacta ao fim da votação. Os episódios envolvendo a desoneração do diesel, a demissão do presidente da PetrobrásRoberto Castello Branco, a lentidão na compra de vacinas reforçam essa percepção negativa. A necessidade de atuação mais frequente do Banco Central para conter a volatilidade do câmbio é apontada como uma evidência do momento crítico.

No Congresso, não se descarta a possibilidade de algum destaque alterar o texto de última hora para ampliar o rol de despesas livres do alcance do teto. Na última semana, foram quatro pareceres oficiais, sem contar as inúmeras minutas elaboradas para “testar” alterações mais polêmicas, o que dá uma dimensão do vaivém em torno da proposta.

O próprio relator, senador Marcio Bittar (MDB-AC), indicou que não teria problema em incluir novas permissões, embora tenha mantido até agora o desejo da equipe econômica de preservar a âncora fiscal. “Se o programa social Bolsa Família tivesse que ficar fora do teto, eu não teria dificuldade de relatar e defender”, disse no plenário. “Mas fazemos uma PEC que não extrapola os limites que a Economia neste momento acha que são fundamentais”, ponderou.

O parecer de Bittar autoriza o governo a conceder uma nova rodada do auxílio emergencial e cria dois novos marcos fiscais: a emergência fiscal, quando a despesa elevada pressiona as finanças de União, Estados e municípios, e a calamidade nacional, quando há situações como a pandemia de covid-19. Em ambas, são acionados automaticamente gatilhos para contenção de gastos com salários de servidores, criação de cargos e subsídios.

Pela emergência fiscal, porém, os gatilhos só devem ser acionados entre 2024 e 2025, segundo previsão do secretário do Tesouro NacionalBruno Funchal. Isso coloca o ajuste em um cenário ainda longínquo para o governo do presidente Jair Bolsonaro. Ele poderia, por exemplo, conceder reajustes salariais em 2022, ano de eleição.

Mansueto foi um dos que criticaram a ausência de medidas mais duras de ajuste no curto prazo, embora tenha ressaltado que a aprovação da PEC é uma “excelente sinalização” de compromisso com a sustentabilidade das contas. “As contrapartidas não implicam nenhum corte imediato e obrigatório do gasto neste ou no próximo ano. Mas a PEC é muito importante porque fortalece o arcabouço fiscal”, afirmou.

A PEC autoriza o governo federal a decretar um novo estado de calamidade a qualquer momento para combater efeitos sociais e econômicos de uma crise, como a da covid-19. Nesse caso, o mecanismo permite ao Executivo aumentar gastos por meio de um processo simplificado, sem respeitar a maioria das limitações fiscais, e conceder benefícios como repasse a Estados e municípios e socorro a empresas. Como compensação, terá de acionar automaticamente os gatilhos e congelar salários e novas despesas obrigatórias durante a calamidade. Versão anterior do parecer acionava a contenção por dois anos após esse período, mas a medida recebeu críticas e ganhou uma versão mais branda.

A votação só foi destravada após desidratação da PEC. Um dos pontos retirados foi o trecho que acabava com a obrigação de gastos mínimos em saúde e educação. O relator também suprimiu o dispositivo que autorizaria o governo a reduzir jornada e salário de servidores para poupar gastos. Outro ponto que acabou caindo foi o fim dos repasses de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para o BNDES.

LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA É REVISADA PARA BENEFICAR OS POLÍTICOS

 

Revisão da Lei de Improbidade pode beneficiar 1/3 dos deputados da comissão que analisa mudanças

Dos 24 deputados do colegiado criado para discutir mudanças na lei, 7 podem ser favorecidos por nova legislação; eles respondem a 66 ações, mostra levantamento

Breno Pires e André Shalders, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Sete dos atuais 24 integrantes da comissão especial criada na Câmara para discutir mudanças na Lei de Improbidade Administrativa podem ser diretamente beneficiados pela nova legislação. Os deputados respondem a processos com base nas regras atuais e as alterações propostas têm potencial para livrá-los de eventuais punições. Na prática, os parlamentares terão a oportunidade de legislar em causa própria. 

Levantamento feito pela ONG Transparência Brasil, a pedido do Estadão, mostra um total de 66 ações de improbidade contra os deputados do colegiado, criado em 2019. Os casos vão de irregularidades em licitações a nomeações em cargos públicos sem concurso. Todos os processos são relativos a funções anteriores ocupadas pelos deputados, como as de prefeito, governador ou ministro. 

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Nova Lei de improbidade em discussão na Câmara pode beneficiar políticos; saiba como

Ricardo Barros
O líder do governo na Câmara, deputado federal Ricardo Barros (Progressistas-PR) Foto: GABRIELA BILO / ESTADÃO

Este é justamente um dos fatores que pode levá-los a ser beneficiados pela mudança na lei. Pela regra atual, uma das punições possíveis para quem for condenado por improbidade é a perda do cargo. Mas, de acordo com a última versão do projeto, apresentada no fim do ano passado pelo relator, deputado Carlos Zarattini (PT-SP), isso só poderá ocorrer se o gestor ocupar a mesma função de quando o ilícito foi cometido. Ou seja, um deputado condenado em um processo relacionado a um mandato anterior de prefeito não correria o risco de perder o cargo atual. 

Outro ponto previsto no texto que, caso aprovado, poderia beneficiar os deputados é o que prevê a prescrição dos processos em cinco anos. Assim, uma ação por improbidade não poderá durar mais do que esse período. No caso dos deputados da comissão, 60% dos processos foram apresentados antes de 2016, o que abre margem para que sejam arquivados sem sequer irem a julgamento.

Segundo Zarattini, porém, a prescrição em cinco anos só valerá para os novos processos, não atingindo os casos anteriores. “Não estamos promovendo nenhuma anistia”, disse. 

O entendimento de tribunais superiores, no entanto, é o de que alterações em leis podem ser aplicadas quando beneficiam o réu. “É uma norma de direito material e uma norma de direito administrativo”, afirmou o advogado Fábio Medina Osório, ex-ministro da Advocacia-Geral da União no governo Michel Temer, em debate promovido nesta quarta-feira, 3, pelo Estadão

Uma terceira mudança na lei que poderá ser usada pela defesa de parlamentares com pendências na Justiça é a que exclui a possibilidade de o gestor ser punido por violar os princípios da administração pública. Pelo texto em discussão, apenas caberá condenação por improbidade quando for comprovado algum prejuízo aos cofres públicos ou enriquecimento ilícito. 

No entendimento dos defensores da medida, a alteração é necessária para evitar excessos de promotores e procuradores,  como pedir a cassação ou a perda de direito político de um prefeito até mesmo pelo fato de prestar contas fora do prazo.  “Estamos vivendo um momento em que muitas pessoas deixam de participar da política com receio de sofrerem processos de improbidade, que muitas vezes os promotores iniciam com base em recortes de jornal, sem nenhuma comprovação”, disse Zarattini. 

O levantamento mostra ainda que dos 24 líderes da Câmara, cinco são alvo de ações de improbidade. Na Mesa Diretora, órgão de comando da Casa, dois deputados também respondem com base na lei atual, entre eles o presidente, Arthur Lira (Progressistas-AL). 

‘Cuidado ético’

Para Roberto de Lucena (Podemos-SP), autor do projeto, deputados que respondem a processos por improbidade não devem participar da comissão especial formada para discutir seu projeto. “Por se tratar de um tema como esse, o próprio parlamentar, por uma questão de cuidado ético, poderia declarar-se impedido”, afirmou. 

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Relator. Para Carlos Zarattini, gestores temem ser enquadrados de forma indevida na lei Foto: Najara Araújo / Câmara dos Deputados

Alvo de sete ações por improbidade, o deputado Geninho Zuliani (DEM-SP) discorda do colega. Para ele, não há contradição em ser investigado e participar da comissão. “Todos os deputados federais, independentemente de sua origem profissional, ideologia partidária ou vida política pretérita, não estão impedidos de participar de comissões da Câmara”, disse. 

Também integrante do colegiado, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), afirmou que as alterações na lei  “são no sentido de exigir dolo e dano ao erário para caracterizar improbidade”. “Assim, acusações de improbidade sem fundamento diminuirão.” Ao Estadão, no mês passado, Barros defendeu o nepotismo, hoje punido com base na Lei de Improbidade. 

Parlamentares alegam combater injustiças ilegais

Estadão procurou todos os integrantes da comissão que respondem a acusações por improbidade administrativa. Só três se manifestaram: o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, e os deputados Geninho Zuliani (DEM-SP) e Vitor Lippi (PSDB-SP). O deputado Herculano Passos (MDB-SP) afirmou ontem, às 20h, que não teve tempo para responder. 

Barros disse que já respondeu a vários processos de improbidade e ganhou todos – e que será inocentado nos três atuais também. “Na Justiça atual está muito distante ser acusado e condenado, por causa do ativismo político do Ministério Público e do Judiciário”, disse o parlamentar. 

Lippi, que responde a seis ações relacionadas ao seu segundo mandato como prefeito de Sorocaba (SP), disse que nenhuma das acusações são sobre “desonestidade” e desvio de recursos. “Defendo pena maior para corruptos e desonestos e tratamento justo aos honestos, aos gestores de boa fé.” O deputado criticou a lei atual, que, segundo ele, deixa margem para injustiças. “Punir os honestos não diminui a desonestidade, ao contrário, afasta os honestos da vida pública.” O deputado citou uma pesquisa feita na região de Sorocaba (27 cidades) que mostra que 80% dos prefeitos foram acusados de improbidade nos últimos anos. 

 Geninho Zuliani, que também responde a ações pelo período em que foi prefeito, afirmou que o novo texto vai corrigir “os pontos mais sensíveis” da Lei de Improbidade. “Obviamente que o referido texto, quando submetido a plenário, poderá ser objeto de múltiplas emendas, fato que poderá sempre melhorar a atividade legislativa”, disse.

CRISE DA ECONOMIA BRASILEIRA VEM ANTES DA PANDEMIA

 

No Brasil, a crise precedeu a covid

O País já estava em crise antes dos primeiros sinais da pandemia do novo coronavírus. A situação era especialmente grave na indústria

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo

O socorro aos pobres funcionou, a ajuda às empresas diminuiu o choque e a economia brasileira, no resumo final, encolheu 4,1% em 2020. Foi o pior desempenho anual na série histórica iniciada em 1996. Mas a perda teria sido bem maior sem os gastos federais para o enfrentamento da crise. Bem mais feio, pelo menos à primeira vista, é o balanço de boa parte do mundo rico. Na zona do euro, onde se encontram potências como Alemanha, França e Itália, o Produto Interno Bruto (PIB) diminuiu 6,7%. No Reino Unido o tombo foi de 9,9%. No Japão, a terceira maior economia do mundo, a perda foi de 4,8%. Mas é preciso ser cauteloso e evitar a imodéstia nas comparações. 

O Brasil fica em posição nada invejável quando se consideram o desemprego, o potencial de crescimento a partir de 2021, o miserável desempenho da economia nos últimos dez anos, o ritmo da vacinação e a ameaça ainda presente da pandemia. A covid-19 é uma variável muito importante em toda projeção econômica, mas o governo federal, rejeitando o exemplo da maior parte do mundo, ainda menospreza o risco do contágio e das mortes.

Mas a experiência brasileira tem outras singularidades. O inventário de 2020 revela bem mais, no caso do Brasil, que os danos ocasionados pela covid-19 e os benefícios das ações anticrise, iniciadas pelo Banco Central com medidas de estímulo ao crédito. Uma primeira diferença logo se destaca: o PIB no primeiro trimestre foi 2,1% menor que nos três meses finais de 2019. O País já estava em crise, portanto, antes dos primeiros sinais da pandemia. A situação era especialmente grave na indústria. O mau desempenho do setor, perceptível há vários anos, agravou-se a partir de 2019, quando o novo governo deu mais importância ao armamento de civis do que aos dados econômicos imediatos.

O balanço do ano passado confirma também a condição singular da agropecuária e, mais amplamente, do agronegócio. Este segmento, o mais competitivo da economia brasileira, é o principal suporte das contas externas. A agropecuária atravessou a crise com mais firmeza que outros setores e fechou o ano com expansão de 2%. Em contraste, a produção da indústria foi 3,5% menor que em 2019 e a dos serviços encolheu 4,5%.

Com a pandemia, o trabalho em casa tornou-se rotineiro para milhões de pessoas. O recolhimento das famílias afetou os padrões e o volume dos gastos do dia a dia. O desemprego e a redução da renda também produziram efeitos. Por todos esses fatores, a despesa de consumo familiar foi 5,5% menor que em 2019. O grande baque ocorreu em março e abril. A recuperação, iniciada em maio, foi insuficiente para o retorno ao nível do ano anterior. O Brasil, é preciso lembrar, já estava em crise antes da pandemia.

A redução do consumo privado afetou principalmente a indústria de transformação e devastou o setor de serviços. A queda do investimento produtivo também produziu impacto imediato. Combinados todos esses fatores, os efeitos mais negativos ocorreram na construção (-7%), na produção de veículos e de outros equipamentos de transportes, na fabricação de roupas e acessórios e no segmento de máquinas e equipamentos. Pelo menos prosperaram as indústrias de alimentos, produtos farmacêuticos e material de limpeza.

O investimento produtivo, medido como formação bruta de capital fixo, diminuiu 0,8%, mas a relação entre o valor investido e o PIB aumentou de 15,3% para 16,4%, porque a queda do divisor, isto é, do PIB, foi maior. Mas a taxa de 16,4% é muito inferior àquela encontrada em outros países emergentes, igual ou superior a 24%.

Investindo pouco, o Brasil limita seu potencial de crescimento. O setor privado pode investir em máquinas, equipamentos e instalações, mas o resultado desse esforço é diminuído pela pobreza das estradas e de outros componentes da infraestrutura. Privatizações e concessões poderiam ajudar, mas também nisso o governo tem falhado. Empenhado na reeleição, o presidente valoriza inaugurações, mas para inaugurar também convém construir – um detalhe trabalhoso e um tanto complicado.

BOLSONARO APOSTA NO SPRAY ANTICOVID DE ISRAEL

 

Bolsonaro mobiliza governo para conhecer spray anticovid em Israel

Remédio está em fase inicial de testes; produto é tratado como ‘milagroso’ pelo presidente

Felipe Frazão e Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA  – Pressionado pela explosão de casos para covid-19 e falta de vacinas, o presidente Jair Bolsonaro decidiu mobilizar o governo para conhecer o EXO-CD24, um spray nasal que está em fase inicial de testes como medicamento para covid-19. O governo mandará uma comitiva a Israel, no próximo sábado, 6, para conhecer o produto e demonstrar interesse em participar de seu desenvolvimento, o que pode, inclusive, exigir aporte de recursos na pesquisa. A área técnica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação já alertou que não possui verba para a pesquisa e pediu prioridade a projetos nacionais.

Bolsonaro disse que a comitiva a Israel deverá ter dez pessoas, mas o governo só confirma que a equipe será liderada pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Segundo apurou o Estadão, devem compor o grupo nomes próximos ao presidente, como Fabio Wajngarten (secretário de Comunicação) e Filipe Martins (assessor para Assuntos Internacionais), além de um representante do Ministério da Saúde e do secretário de Negociações Bilaterais no Oriente Médio, Europa e África do Itamaraty, Kenneth da Nóbrega. O secretário de Pesquisa e Formação Científica, Marcelo Morales, representará o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).

Bolsonaro
Bolsonaro reconheceu que a queda do PIB do Brasil em 2020 teria sido pior sem o pagamento do auxílio emergencial.  Foto: Dida Sampaio/Estadão

“A comitiva partirá na manhã de sábado, 06/03, e estará de volta a Brasília na quarta-feira, 10/03. A visita tem o objetivo de dar seguimento ao diálogo político e à cooperação científica e tecnológica entre os dois países”, disse, em nota, o Ministério das Relações Exteriores. Procurados, o Palácio do Planalto e os ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia não se manifestaram.

Mesmo em fase inicial de testes, o produto já foi tratado como “milagroso” por Bolsonaro. Na pandemia, o presidente tem boicotado medidas que mostram resultado contra o vírus, como distanciamento social e uso de máscaras, e feito apostas em tratamentos ineficazes, como a hidroxicloroquina. “O que é esse spray? Não sei. Mas o que acontece? Esse produto, há dez anos, estava sendo investigado, estava sendo estudado lá em Israel para outro tipo de vírus. E usou isso daí em 30. Em 29 deu certo. O último demorou um pouco mais, mas também segurou. Parece que é um produto milagroso, parece. Nós vamos atrás disso”, disse o presidente, na terça-feira, 2.

Antes, em 12 de fevereiro, Bolsonaro anunciou pelo Twitter que havia conversado com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyah, sobre a participação do Brasil nos estudos de fase 3 de desenvolvimento do spray.

Seis dias mais tarde, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marcos Pontes, se reuniu com o embaixador de Israel no Brasil, Yossi Shelley. O tema da conversa, entre outros assuntos, foi o  medicamento em estudo. “Shelley declarou que está em tratativas com o pesquisador israelense responsável para trazer parte desta pesquisa ao Brasil. O ministro demonstrou interesse, contextualizou ao embaixador os trabalhos desenvolvidos pela REDEVIRUS, do MCTI”, afirma um registro da reunião, obtido pelo Estadão.

Na mesma data, representantes da Embaixada do Brasil em Israel se encontraram com desenvolvedores do produto: o CEO do Sourasky Medical Center, Ronni Gamzu, e o professor Nadir Arber. Segundo registro da reunião, ao qual o Estadão também teve acesso, “é possível que o Brasil seja convidado a fazer contribuição financeira ao projeto, para o custeio das atividades de pesquisa e de produção da substância”.

Em despacho de 24 de fevereiro, a Secretaria de Pesquisa e Formação Científica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações viu com ressalvas o pedido de financiamento e pediu prioridade para projetos nacionais.

“Informo que a Rede Vírus MCTI possui vários projetos de desenvolvimento de medicamentos e vacinas que carecem de financiamento para a realização dos estudos clínicos e sendo assim, caso haja disponibilidade financeira deste MCTI, entendemos que os projetos nacionais devem ser priorizados”, afirma um documento da pasta obtido pelo Estadão. “Informo também que a Rede Vírus possui grande capacidade técnica para a realização de estudos clínicos para o desenvolvimento de tecnologias de combate à COVID-19 e poderia contribuir com a realização do estudo clínico do EXO-CD24 , contudo, com relação a possível contribuição financeira ao projeto do Spray nasal EXO-CD24, informo que, no momento, não há disponibilidade financeira para este fim. Desta maneira, o projeto poderia ser realizado apenas com financiamento do lado israelense”, diz outro trecho do texto.

Na reunião em Israel, o governo brasileiro foi informado de que testes preliminares foram feitos em 30 pacientes da covid-19 em estado grave ou moderado. “Do grupo de 30 pacientes, 29 se recuperaram de três a cinco dias depois do uso do fármaco em formato de spray nasal — o 30.º também se recuperou, depois de período mais longo”, afirma um relato da embaixada brasileira.

A pesquisa, de acordo com diplomatas brasileiros, “poderia gerar benefícios também em outras áreas do conhecimento, como a educacional, a científico-tecnológica, a de logística e a de gestão estratégica, além de reforçar os vínculos de confiança mútua.”

MUTAÇÕES DO VIRUS DIFICULTAM O COMBATE À PANDEMIA

 

‘Pessoas que têm imunidade comprometida e que estão infectadas por muito tempo acumulam mutações’

Declaração foi feita pela pesquisadora da Universidade Yale Akiko Iwasaki, referência global em imunologia, com base em dados que tentam explicar o surgimento das variantes do coronavírus

Fabiana Cambricoli e Giovana Girardi, O Estado de S.Paulo

O surgimento das variantes do coronavírus tem chamado a atenção de cientistas em todo o mundo, que têm começado a levantar algumas hipóteses para explicá-las. “Há alguns dados surgindo que apontam que pessoas que têm a imunidade comprometida e que estão infectadas por muito tempo acumulam mutações. As variantes que estão despontando podem estar vindo desses pacientes que estão infectados por um longo tempo com covid”, disse ao Estadão a pesquisadora da Universidade Yale Akiko Iwasaki, referência global em imunologia. Ela participa nesta quinta-feira, 4, de um webinar promovido pelo Instituto Serrapilheira, para lançar um programa gratuito de formação de jovens cientistas.

UTI COVID-19
Equipe médica atuando em hospital de São Paulo no combate à pandemia de covid-19 Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

“Como essas pessoas não conseguem eliminar o vírus sozinhas, elas costumam receber plasma de convalescentes. Isso pode acabar eliminando o vírus, mas dá tempo para que as mutações se acumulem antes da eliminação. O vírus que é selecionado para escapar do plasma convalescente pode circular na população dando origem às variantes”, disse. https://www.estadao.com.br/widget/coronavirus

“Ainda não está claro quais são exatamente as fontes dessas variantes no momento. Pacientes imunocomprometidos podem ser uma delas porque tendem a acumular múltiplas mutações dentro de si”, continua.

A suspeita surgiu com um paciente de 70 anos do Reino Unido. Ele foi infectado com covid-19 logo após ter passado por quimioterapia para tratar um linfoma, de modo que seu sistema imune estava comprometido e nenhum medicamento dado a ele no hospital melhorava sua condição. A saída foi aplicar o plasma de convalescente (com anticorpos de pessoas que já tinham se curado da doença).

O paciente acabou falecendo 102 dias após testar positivo e, em análises posteriores feitas em amostras dele, cientistas observaram que o vírus havia evoluído e desenvolvido mutações que mudaram sua capacidade de infectar células e escapar dos anticorpos.

Uma das mutações observadas no paciente foi encontrada depois na variante B.1.1.7, originada no Reino Unido, o que fez os cientistas também suspeitarem que ela possa ter surgido em um paciente imunocomprometido.

“A interpretação da B.1.1.7 sugere que o surgimento pode acontecer quando o vírus evolui mais rapidamente num só hospedeiro devido, por exemplo, a um sistema imune fragilizado que permite a reprodução continuada de vírus durante um período prolongado”, explicou ao Estadão o pesquisador Nuno Faria, do Imperial College de Londres, especialista em evolução de vírus. Ele também está participando dos estudos com a P.1.

“Acho que mais dessas variantes vão surgir. É uma questão de tempo e de sequenciamento genético até encontrarmos mais VOCs pelo mundo”, disse.

“Quando a transmissão é galopante, novos mutantes podem surgir e se espalhar. É como colocar lenha na fogueira. No outono e inverno de 2020, a transmissão nos EUA foi galopante, mas tínhamos apenas um vírus. Agora, os EUA também têm as variantes. Eu me preocupo com outra onda e mais variantes se não controlarmos a propagação entre a população”, complementou Akiko.

quarta-feira, 3 de março de 2021

OS ESTADOS UNIDOS VAI FABRICAR UM NOVO DÓLAR?

 

O novo dólar

Nota de US$ 20 deve ter a abolicionista Harriet Tubman em sua estampa

Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo

Alguns devem pensar que o dinheiro dos Estados Unidos emergiu pronto da explosão do Big Bang. Todavia, os próximos anos devem testemunhar uma mudança no rosto da moeda dos EUA.

O dólar deve seu nome a uma corruptela do thaler, uma das primeiras moedas de prata de grande tamanho cunhadas na Boêmia do século 16. O thaler passou a ser sinônimo de moeda valiosa e ultrapassou as fronteiras do vale em que foi criado originalmente. Era possível encontrá-las por todo o Velho Mundo e, em língua inglesa, ela virou o dollar, quase como uma gíria como “grana” ou “dindim” nos dias atuais. Era usada para expressar dinheiro.

Harriet Tubman
Modelo da nota de 20 dólares com Harriet Tubman Foto: US Treasury

A Inglaterra já usava libras quando isso ocorreu. Por lei, entretanto, a velha Albion não permitia que sua própria moeda saísse das ilhas britânicas, nem mesmo para suas colônias. Por isso, no século 18, era muito difícil encontrar libras e shillings circulando. A moeda que surgia de forma mais comum nas colônias britânicas do Novo Mundo era… mexicana! Ah, a ironia da História!

O México, também desde o século 16, tinha sua própria casa da moeda e cunhava os valiosos “reales de a ocho”, um peso de prata que equivalia a 8 unidades de menor valor, chamada real. Esse “spanish dollar”, como era chamado nas 13 colônias, a “Grana espanhola”, era uma das poucas moedas circulantes por ali. No início do século 18, a crise da falta de moeda estimulou o jovem Benjamin Franklin a escrever um manifesto que reclamava como a situação impedia a economia local de se desenvolver. Além disso, ele passou a imprimir dinheiro, na forma de vales em papel. A Coroa proibiu essa prática também. O ressentimento dessa medida estava entre os fatores listados para a guerra de independência pouco tempo depois.

Guerras custam dinheiro e isso a colônia não tinha, já vimos. Solução: imprimir dinheiro. O “continental” (nome dado em homenagem ao Congresso Continental que declarara a independência), em sua intenção inicial, se baseava no valor de um “dólar espanhol”. As cédulas vinham com o valor estabelecido em um pequeno texto que dizia algo como: este pedaço de papel vale 1, 10 ou 20 dólares. Os mais velhos entre nós, leitores, se lembrarão da URV, a unidade que estabelecia quanto valia o real nos tempos que antecederam a implementação de nossa moeda, nos longínquos anos 1990, quando achávamos que vivíamos uma crise.

Imprimiu-se tanto dólar de papel para sustentar o esforço de guerra que eles se desvalorizaram muito rápido. No fim do conflito, já corria o ditado: “Isso vale tão pouco quanto um continental”. As cédulas foram abandonadas e, em 1792, estipulou-se a criação efetiva do dólar americano. Nome alemão e referências espanholas, a moeda estadunidense deveria ser feita apenas e tão somente em metal, não mais em papel. Foi uma das primeiras do mundo a se basear em um sistema centesimal, facilitando a compreensão de suas frações (lembram-se do real de oito?). As efígies das primeiras moedas recém-nascidas eram alegorias da liberdade, da vitória e outros valores. Jamais pessoas.

Por quase um século, os americanos tiveram apenas moedas e não mais cédulas circulando. Precisaram de outro conflito para voltar a imprimir dinheiro: a Guerra da Secessão (1861 a 1865), que rachou o país em dois, Sul e Norte, em torno de várias questões. Tanto um lado quanto o outro, precisando desesperadamente de recursos, voltaram a imprimir dinheiro. O do Norte, criado pelo secretário de Finanças de Lincoln, Salmon P. Chase, era verde e, na sua nota de um dólar, trazia a efígie nada modesta de… Chase! Como na guerra anterior, rapidamente a cédula se desvalorizou e, ao fim do conflito, valia um terço do seu valor de face. Isso porque a cédula verde era uma promessa, um bônus de guerra, que poderia ser resgatado quando os canhões silenciassem.

Pior ocorreu com a moeda sulista, os “dixies”, que se desvalorizaram muito mais e, ao fim das batalhas, se tornaram pedaços de papel colorido com o fim do país e a reintegração ao norte.

A decisão de quem deve ou não estampar a cédula de dólar é atribuição do secretário de Tesouro. Critério é que a pessoa deve ser alguém cujo valor de face (literalmente) seja conhecido da história americana como personagem confiável. Por isso, há ex-presidentes e personalidades como Benjamin Franklin. Mas muita gente já entrou e saiu dessa galeria. Ela não é nem nunca foi fixa: só não podem mostrar pessoas vivas.

Daí o anúncio em 2016 de que, em 2020, as notas de 20 dólares deixariam de estampar o presidente Andrew Jackson, um controverso governante que era escravista, por uma notória abolicionista, Harriet Tubman. A primeira mulher negra (moedas de um dólar mostram, desde 2000, Sacagewa; ainda no século 19, por curto período, a primeira-dama Martha Washington estampou a nota de um “dólar de prata”) em uma moeda norte-americana. Jackson não reclamaria: ele era um feroz opositor das cédulas e de bancos poderosos!

A administração Trump anunciou que o custo seria alto e que postergaria a decisão por, no mínimo, dez anos. Biden, decidido a desfazer a herança do antecessor, anunciou que iniciaria a substituição.

Viram? Não dói mudar uma efígie em uma nota. Especialmente, porque elas estampam valores de época. E nossos tempos podem e devem ser mais plurais. A esperança é associada ao verde, cor tradicional dos dólares. É preciso ter ambos, dólares e esperança. 

É HISTORIADOR E ESCRITOR, AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’, ENTRE OUTROS

A PANDEMIA NOS ESTIMULA A ADIAR PROBLEMAS

 

Notas de um contaminado

É minha impressão, ou estamos vivendo um texto de George Orwell? Mentir é verdade, vigarice é legalidade, confusão é lucidez, morte é vida, derrota é vitória, doença é cura

Roberto DaMatta, O Estado de S.Paulo

1. A pandemia expôs o que não queríamos ver. O nosso lado ambíguo que tende a adiar problemas. A despeito, entretanto, de nossa autocondescendência – afinal de contas, Deus é brasileiro! – a “gripezinha” do presidente Bolsonaro (e dos que são contra o seu estilo e governo, mas continuam se aglomerando) já matou 250 mil! A pandemia obriga a pensar anormalmente com o outro. 

Estamos contaminados e a reflexão inevitável nos leva a uma história repleta de contrastes em termos de costumes e instituições. Somos um país “descoberto” de propósito ou por acaso? (como reza a fábula); somos uma sociedade constituída por três raças? (como diz um mito); ou uma nação solidificada e modernizada, um tanto à força, por um rei e uma corte fugida, em 1808, de Lisboa? (como diz a história). 

Ou somos tudo isso e mais alguma coisa que a contaminação obriga a descobrir? 

Será que jamais vamos aprender a votar e, por isso, o absolutismo bolsonarista tem força inclusive no Congresso Nacional que, na semana passada, chegou perto de reinstituir imunidades aristocráticas? 

2. Com a vinda da corte, o Rio de Janeiro deixou de ser um povoado para virar a capital de um gigantesco reino ultramarino. Nele, instalou-se uma realeza que oprimiu com um inapelável “você sabe com quem está falando” a população nativa, desapropriando suas melhores moradas. 

Nessa época, o mundo iniciava uma caminhada contra o atraso, mas, aqui no Brasil, combinávamos neomercantilismo com escravidão, que alicerçou um estilo de vida hierarquizado e aristocrático. Um sistema escravocrata fundado no “um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar”, que tirou do trabalho a sua grandeza e criou uma brutal indiferença para com o mundo público e impessoal da rua. “Da porta de nossa casa para fora, o problema é do governo!” 

Mas isso não funciona quando um vírus sem intencionalidade prova a nossa incapacidade para juntar forças e agir solidariamente porque as hierarquias que sustentam uma imensa desigualdade mostram como o familismo é recorrente e dominante. 

Julgamos duramente de um lado, mas com condescendência do outro. Sofremos de uma ambiguidade de raiz porque podemos resolver o mundo como fidalgos ou como cidadãos. Eleitos e de “posse” de um cargo, em vez de democratizar, aristocratizamos. Voltamos sempre ao familismo, rasgando promessas democráticas. No mesmo passo, vemos o retorno de uma política de controle de preços que implode investimentos. Tudo isso mostra como mudamos sem mudar.

3. A crise, porém, instiga a imaginação. 

A mais surreal seria imaginar o Brasil invadido por um país estrangeiro e sendo obrigado a defender-se e a declarar guerra ao inimigo. 

A julgar pela caótica reação à covid e aos seus exércitos invasores, ao tempo que o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e a opinião pública (obviamente dividida entre declarar ou não guerra ao invasor) se entendessem, o país já estaria falando o idioma do solerte inimigo. Pior que isso, mas igualmente plausível, seria testemunhar o governo comprando armas ultramodernas, mas esquecendo da munição porque o comandante negava a guerra. O mais claro surrealismo, porém, seria ver o líder supremo das forças nacionais zombar do poder do ofensor (que teria tomado a Amazônia), comentando que se trata de uma “invasãozinha”. 

É minha impressão, ou estamos vivendo um texto de George Orwell? Mentir é verdade, vigarice é legalidade, confusão é lucidez, morte é vida, derrota é vitória, doença é cura. 

4. Desde que me entendo por gente ouço que somos os piores. Que somos um povo sem homogeneidade racial; que somos preguiçosos, safados e desonestos por natureza e não por situação; que não temos bons governos e, eis a negação da negação, que não sabemos votar. Deus fez o Brasil bonito, mas nele colocou um “povinho” …

No entanto, alguém comentou que esse “povinho” era pentacampeão mundial de futebol. Ele sequestrou – disse – um jogo sofisticado dos avançados ingleses, contrariando todas as teorias das colonizações perpétuas. Como foi possível? 

– Um milagre? 

– De modo algum. É que não criamos uma Futebolbrás. Se tivéssemos uma estatal do futebol, o seu presidente seria o cunhado do mandão; seus funcionários seriam do centrão; o técnico seria sobrinho do presidente da Câmara; e o selecionado brasileiro teria como titulares o 01, o 02, o 03 e o 04… Você tem alguma dúvida? 

5. O futebol vingou fora do governo porque governos têm que obter resultados. Não podem se preocupar somente em perpetuar-se e roubar. O domínio do esporte é conquistado por mérito e não por privilégios e laços de família. Ele existe com regras e, eis algo que os nossos políticos ainda não atinaram: ninguém é campeão para sempre. 

Seria o poder maior do que a lei? Sem dúvida, mas nas ditaduras. Nelas, porém – lembra? – não há disputa, há obediência.

É ANTROPÓLOGO SOCIAL E ESCRITOR, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’

LEI DAS ESTATAIS IMPEDE A NOMEAÇÃO DE GENERAL PARA A PRESIDÊNCIA DA PETROBRAS

 

A Lei das Estatais está em vigor

Governo pretende burlar os requisitos legais para a presidência da Petrobrás

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo

Por mais estranhos que sejam os tempos atuais, uma lei federal ainda não pode ser revogada por conversa de corredor nos palácios do poder. Trata-se de uma obviedade, mas com o governo de Jair Bolsonaro faz-se necessário recordar até o mais básico. A Lei das Estatais (Lei 13.303/16) está em vigor e suas disposições devem ser cumpridas.

Segundo noticiou o Estado, o governo federal pretende burlar os requisitos legais exigidos para que se ocupe a presidência de uma estatal – a Petrobrás – dizendo que os anos de generalato de Joaquim Silva e Luna preencheriam as condições estabelecidas pela Lei das Estatais.

O art. 17 da Lei 13.303/16 é muito claro. O presidente de sociedade de economia mista deve ter experiência profissional na área, comprovada a partir de alguns dos seguintes requisitos mínimos: (i) dez anos de atuação na área da empresa, (ii) quatro anos de experiência em cargos específicos vinculados à área para a qual for indicado ou (iii) quatro anos como profissional liberal em atividade direta ou indiretamente vinculada à área da empresa.

Além disso, o indicado deve cumprir outras duas condições: ter formação acadêmica compatível com o cargo para o qual foi indicado e não se enquadrar nas hipóteses de inelegibilidade previstas na legislação.

A despeito da clareza das exigências legais, o presidente Jair Bolsonaro ignorou o seu conteúdo e indicou para a presidência da Petrobrás o general Joaquim Silva e Luna, que nunca atuou no mercado de petróleo. O general passou à reserva em 2014 e, em fevereiro deste ano, completou dois anos na presidência da Itaipu Binacional.

Antes de mais nada, é preciso reconhecer que o fato de a indicação de Jair Bolsonaro para a presidência da Petrobrás não cumprir os requisitos legais em nada desmerece o currículo e o bom nome do general Joaquim Silva e Luna. O erro está na atitude do presidente Bolsonaro de ignorar a lei e ainda envolver um general nesse imbróglio. 

Não é o general Joaquim Silva e Luna que está descumprindo a lei. Quem a descumpre é o presidente Jair Bolsonaro, ao forçar uma indicação que – apesar do currículo e do bom nome do general, repita-se – não cumpre os requisitos legais de experiência e de formação acadêmica.

Estivesse disposto a superar de fato os males trazidos pelas administrações petistas, Jair Bolsonaro seria o primeiro a cumprir minuciosamente a Lei 13.303/16. Aprovada em junho de 2016 pelo Congresso, a Lei das Estatais veio justamente assegurar padrões mínimos de gestão profissional para as empresas públicas e sociedades de economia mista. Seu objetivo era impedir, ou ao menos dificultar, o aparelhamento ideológico e a interferência político-partidária nas estatais, fenômenos muito presentes nos anos do PT no governo federal e que causaram tantos prejuízos ao País e às empresas públicas.

Agora, com sua tentativa de interferir na política de preços da Petrobrás, o presidente Jair Bolsonaro revela, em todas as suas cores, a proximidade do bolsonarismo com o lulopetismo. Nenhum dos dois quer gestão profissional nas estatais ou nas sociedades de economia mista. A rigor, aqueles que se apresentam como politicamente antagônicos almejam o mesmo objetivo, em sua dupla dimensão: a insubmissão do poder político a critérios profissionais objetivos e a prevalência do fator eleitoral nas decisões de governo.

Não é coincidência que o presidente Jair Bolsonaro entre em conflito com a Lei das Estatais, como também não é coincidência que, uma vez revelado o descumprimento da lei, ele manifeste tamanho desdém por suas exigências. Com a Lei 13.303/16, o Congresso tentou impedir a interferência política a que o presidente da República pretende submeter a Petrobrás.

O general Joaquim Silva e Luna não merecia estar envolvido nesse embate. A Petrobrás não merecia estar envolvida em interesses eleitorais do presidente Jair Bolsonaro. O País não merecia estar submetido a governantes que, quando lhes parece conveniente, fecham os olhos à lei. Não é demais lembrar que, ainda vigente no País, o regime republicano é o regime das leis, com seus claros limites.

AS ARMADILHAS DA INTERNET E OS FOTÓGRAFOS NÃO NOS DEIXAM TRABALHAR

  Brasil e Mundo ...