O desafio da vida à
distância
© Marcos Oliveira POLÍTICA O senador
Antonio Anastasia comanda votação no Senado feita por teleconferência
O coronavírus é um micróbio disruptivo. Sua capacidade de romper
rotinas, alterar a realidade, impor novos comportamentos e hábitos é notável. O
medo de contágio, o aumento exponencial no número de doentes, o distanciamento
social e o crescente isolamento das pessoas em todo o mundo estão
estabelecendo, por exemplo, novas práticas de trabalho e exigindo soluções
tecnológicas que antes eram opcionais e, do dia para a noite, se tornam
obrigatórias para milhões de pessoas. O que era típico, até agora, de empresas
de internet, virou padrão.
E pode ser que isso se perpetue, dependendo do desenvolvimento da
pandemia, para muitos profissionais. Quem se adaptar bem ao trabalho remoto vai
ter um trunfo em inúmeras funções da sociedade. Teleconferências de baixo custo
e com dezenas de participantes são a bola da vez no mercado, na política e nas
famílias. Pela primeira vez na história do Senado, uma decisão foi tomada em
uma votação à distância, feita por teleconferência. Votou-se o decreto de
calamidade pública para combater a disseminação do coronavírus que foi aprovado
por unanimidade e entrou imediatamente em vigor.
Na terça-feira 24, cinco dias depois, o Senado usou o mesmo Sistema de
Deliberação Remota (SDR), para votar a Medida Provisória 899/2019, que inclui
empresas optantes do Simples em um programa de acertos de pendências com a
União. A decisão de votar remotamente foi tomada depois que três parlamentares
da casa contraíram o coronavírus: o presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP), Nelsinho
Trad (PSD-MS), que esteve na comitiva para Miami com o presidente Jair
Bolsonaro, e Prisco Bezerra (PDT-CE). O sistema de debate e votação foi
desenvolvido pela Secretaria de TI do Senado, a Prodasen.
© Divulgação
“A tecnologia ajudou o Senado a cumprir seu papel neste momento difícil
da Nação”, disse o senador Antonio Anastasia (PSD-MG), que preside as sessões
interinamente e classificou as primeiras experiências de votação “estáveis e
seguras”. “É claro que um processo legislativo tem seus nuances,
características e diferenças do ambiente corporativo, mas a conferência à
distância é possível e viável, tanto que nós já votamos na semana passada,
votamos ontem, ontem, aliás, numa sessão longa com duas mudanças de orientação,
com votações nominais, deu tudo certo”, completou o senador.
O mais impressionante, segundo ele, foi o quórum altíssimo. Havia 79
presentes, só não estavam os dois que estão afastados em razão da doença,
Alcolumbre e Nelsinho. Bezerra, que é assintomático e cumpre quarentena,
participou da sessão. “Se você fizer um levantamento, numa medida provisória,
matéria de lei ordinária, quórum de 79 é raro”, completou. Alguns senadores
votaram em seus gabinetes, outros estão em suas residências em Brasília, outros
nos seus estados, em casas ou no escritório.
Como os senadores, governadores de todo o Brasil passaram a semana
participando de teleconferências entre eles ou com o presidente Bolsonaro para
discutir a crise sanitária. Os debates políticos estão se desenvolvendo à
distância e os contatos de alto nível, sem necessidade de locomoção para
participar de reuniões, se tornaram mais baratos, simples e práticos. “Claro
que o processo fica um pouco mais lento, talvez as discussões fiquem um pouco
mais demoradas, as convergências demorem um pouco mais, mas a teleconferência
me parece uma forma democrática e eficiente de funcionar”, afirma Anastasia.
“Isso jamais vai substituir o contato físico nas votações, aquela
conversa de pé de ouvido típica da política, das negociações, mas num caso como
esse em que se têm problemas de saúde, é uma forma de manter o trabalho em
andamento”. Para o senador, a solução não há outra opção e o Congresso não pode
parar. “E o fato do quórum estar alto é muito positivo”, completa.
Grandes empresas estão seguindo a mesma linha e tentam, cada vez mais,
resolver seus problemas remotamente. No meio da espinhosa reestruturação do
Instituto de Resseguros do Brasil (IRB Brasil RE), Antonio Cassio, que acaba de
assumir a presidência da empresa, vê o trabalho remoto como uma âncora de
salvação. Cassio está habituado à rotina de trabalho em casa, que ele chama de
“smart working” (trabalho inteligente) e consegue produzir tão bem
presencialmente como à distância. O IRB tem 400 empregados e, neste momento,
estão quase todos na rotina do home office. A exceção é um núcleo da
contabilidade que trabalha presencialmente por conta de serviços de fechamento
de balanços.
O que Cassio sente no seu novo modelo de trabalho é que o dia fica mais
longo. Ele acorda às 6 horas, veste uma roupa e vai para seu QG, que é a mesa
de jantar. Participa de videoconferências o dia todo. Na segunda-feira 16,
participou de dez e fez 13 vídeos. Faz paradas para tomar café, almoçar e à
tarde para brincar com o cachorro e se diz preparado, se for necessário, para
ficar os próximos 60 dias em home office. “A ida ao escritório não faz falta e
a maior dificuldade que estou tendo é não saber a hora de parar. Ontem, fui até
as 11 horas da noite”, conta. “A companhia está funcionando normalmente e de
maneira eficiente”.
Para quem mergulha no home office, o local de trabalho se torna
relativo. Nos últimos cinco anos, Cassio trabalhou na seguradora Generali e
atendia oito países com quatros fusos horários diferentes. A maior parte de
suas reuniões era feita por videoconferência e o escritório era só um ponto de
apoio e não o lugar do executivo. Mesmo à distância, ele se sentia sempre
próximo de sua equipe, como acontece agora. O Conselho de Administração do IRB
está funcionando perfeitamente e, segundo Cassio, os conselhos nunca funcionaram
tão bem. “Acho que devemos aproveitar o momento para fazer uma revolução boa”,
afirma. “Quando você descobre que um ser microscópico é capaz de ameaçar sua
vida, se pergunta quem é e como encontrar luz no meio da vulnerabilidade”. Até
quinta-feira 26, havia no mundo cerca de 500 mil infectados pelo coronavírus e
22,2 mil mortos pelo Covid-19, segundo levantamento da Johns Hopkins
University. No Brasil, o número de contaminados passava de 2,6 mil e o de
mortos chegava a 61.
Carteira Virtual
Empresas de tecnologia têm sua situação facilitada nesse processo de
mudança por estarem mais habituadas ao trabalho à distância. É o caso da
PicPay, que controla um aplicativo para a realização de compras online e
transferência de valores por meio de uma carteira virtual. A empresa eliminou
qualquer atividade nos seus escritórios e, neste momento, só foi mantida a
rotina de limpeza duas vezes por semana e a presença dos recepcionistas. Todas
as outras atividades da empresa estão sendo feito por teleconferência. “Sempre
fizemos isso de forma alternada e agora está todo mundo remoto”, afirma o
co-fundador e diretor de Recursos Humanos, Dárcio Stehling.
Os funcionário da PicPay nunca tiveram, por exemplo, telefone na mesa,
todo trabalho sempre foi feito na frente de computadores. Desde quarta-feira
11, a empresa colocou seus 1,3 mil funcionários em regime de home office. No
dia seguinte, apenas 40 funcionários foram a escritório para buscar alguma
coisa ou resolver pequenas pendênciaa. Na sexta-feira, já estavam todos em
casa.
“A grande reclamação é a saudade dos colegas, mas tem gente que se
queixa da rotina, de por a roupa de trabalho para ficar dentro de casa”, diz
Stehling. Ele relata que as reuniões se tornaram mais breves e não houve
nenhuma queixa de funcionário dizendo que não está conseguindo trabalhar.
Participam até 40 pessoas das reuniões. A empresa resolveu todos os problemas
de software e de conexão nas máquinas que estão sendo usadas com serviços de
suporte.
Stehling usa muito o aplicativo de teleconferência Zoom, grande vedete
nestes tempos de pandemia. Outras ferramentas que estão sendo usadas nas
reuniões à distância são o Skype, Microsoft Teams, Google Hangouts e o
WhatsApp. “É preciso um fone de ouvido com um microfone bom e existe uma etiqueta
do trabalho remoto a ser seguida”, diz “Quem não está falando fica no mudo para
que todos possam ouvir o que está sendo dito”.
Telemedicina e ensino à distância ganham mais importância num momento em
que encontros presenciais devem ser evitados
Já para quem não é da indústria de tecnologia, as coisas são mais
incomodas. O presidente da Associação Brasileira de Alumínio (Abal), Milton
Rego, diz que a situação atual traz estorvos para o setor. De um modo geral, as
empresas colocaram todos seus funcionários administrativos no home office,
enquanto o pessoal das fábricas está recebendo cuidados de saúde diários. A
temperatura dos operários está sendo medida periodicamente e departamentos são
colocados em quarentena quando há algum trabalhador com suspeita de contágio.
Trinta empresas são associadas à Abal e algumas delas, principalmente
pequenas e médias, não tinham notebooks para todo mundo e precisaram alugar os
equipamentos. O mercado de aluguel de máquinas está em plena expansão neste
momento. “Isso é muito novo. Não se faz uma mudança tão drástica sem perder
produtividade, mas o impacto disso depende do perfil do empregado”, diz Rego.
Na Abal começamos isso na quarta-feira passada, mas ninguém pensava no assunto
dez dias antes. Pensava-se na diminuição das pessoas nos escritórios, mas não
em interrupção total. Foi tudo muito rápido e algumas pessoas estão com
dificuldades com alguns sistemas.
Como acontece no Senado, Rego percebe que no home office é tudo mais
lento. Na reunião presencial, as pessoas estão a dois metros de distância e
você fala e resolve, mas no remoto é preciso mandar mensagem. “A gente está
aprendendo de maneira dramática. Se a economia mundial passar por uma mudança
total, isso vai causar uma enorme perda de produtividade. É uma disrupção muito
grande. Empresas e os países terão que mudar seus protocolos”.
Serviços médicos
Até os hospitais, em tempos de pandemia, tem que intensificar o trabalho
à distância e ampliar e aprimorar seus serviços remotos. No Albert Einstein, em
São Paulo, que tem 13 mil funcionários, todos os trabalhadores administrativos
estão trabalhando em casa, seguindo as orientações das autoridades
sanitárias.Também estão sendo impulsionados os serviços de telemedicina e tele
UTI, segundo Felipe Spinelli de Carvalho, diretor de ensino do Einstein. As
duas modalidades são oferecidas há vários anos pelo hospital.
A telemedicina tem uma importante uma importante função social e sua
utilização foi aprovada, há duas semanas, pelo Conselho Federal de Medicina
(CFM) para conter o coronavírus. Com a tele UTI é possível dar apoio técnico a
outros hospitais que não contam com médicos intensivistas e precisam de apoio.
Um programa de telemedicina do Proadi-SUS, na região Norte, permitirá que os
profissionais do Einstein atendam pacientes de 120 cidades. “A telemedicina vai
ser um grande recurso, principalmente para diagnóstico”, afirma Carvalho.
Desde 2012, o Einstein oferece telemedicina, mas o número de
atendimentos disparou e atingiu 200 por dia na semana passada. Além do atendimento
médico, ferramentas de teleconferência também servem bem para a educação. Mais
de 7 mil alunos dos cursos do Einstein, que tem faculdades de enfermagem e
medicina, escola técnica e pós-graduação, usam o Zoom ou a plataforma de
aprendizagem Canvas para falar com professores e colegas.
Apesar do entusiasmo com as reuniões remotas, a expectativa no mercado,
na política e nas famílias é de que a situação volte ao normal. Mas é certo que
um novo ciclo de aprendizado de reuniões à distância e home office está sendo
impulsionado pela pandemia. E as pessoas estão descobrindo como fazer as coisas
de outra forma. Muitas não mais voltarão ao esquema anterior. “Na
teleconferência há uma demora um pouco maior, mas a decisão acaba ocorrendo
como ocorreu ontem. Foi perfeito. Houve discussão, divergência e a divergência
foi decidida no voto, como convêm ao Parlamento”. Mesmo com algumas
dificuldades, o trabalho à distância, como prova o Senado, pode ser uma saída
perfeita nesses tempos de peste, quando ficar em casa é a melhor decisão.