Por que o 'casamento' entre bolsonarismo e a Lava Jato pode estar
chegando ao fim
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Presidência da República Nos últimos dias, Bolsonaro e Moro trocaram elogios em
público. Mas reaproximação é incerta
A relação entre o presidente Jair Bolsonaro (PSL) e
apoiadores e membros da Operação Lava Jato vive
seu momento mais conturbado desde as eleições de 2018. Mas, para além dos
atritos recentes, decisões presidenciais nos próximos dias serão fundamentais
para determinar se as partes estão só "dando um tempo" ou rompendo
definitivamente.
Há
dois temas controversos no horizonte, segundo procuradores, ativistas,
policiais e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
O
presidente deve indicar até esta quinta-feira (5) o próximo titular da
Procuradoria-Geral da República (PGR), cargo-máximo do Ministério Público, e
decidir sobre vetos ao projeto de lei que pune com mais rigor o crime de abuso
de autoridade - muitos pontos do texto são percebidos como prejudiciais por
magistrados, procuradores e policiais.
Nos
últimos dias, Bolsonaro indicou que deve agradar a Lava Jato em um ponto, e
desagradar em outro: disse que fará cerca de 20 vetos ao projeto do abuso de
autoridade, bem mais que o pedido por Moro. Ao mesmo tempo, deve indicar para a
PGR o subprocurador-geral Augusto Aras, visto com desconfiança por grande parte
dos procuradores.
A
desavença se acirrou nas últimas semanas depois de intervenções de Bolsonaro na
Receita Federal, na Polícia Federal e no Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf). O presidente fala em renovar e melhorar a produtividade das
instituições, além de ressaltar que as mudanças são prerrogativas suas.
As medidas enfraqueceram a principal figura ligada
à Lava Jato, Sergio Moro, que deixou a
magistratura para assumir o Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Em
outubro passado, Bolsonaro havia prometido indicar Sergio Moro para uma vaga no
Supremo Tribunal Federal.
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BBC Polícia Federal está subordinada a Moro, mas Bolsonaro deixou claro que não
leva em conta opinião do ministro
A
rixa está dividindo as ruas, afirmam líderes de movimentos de direita ouvidos
pela BBC News Brasil. Embora os apoiadores do presidente ainda sejam maioria
nesse segmento da sociedade, a situação está mudando rapidamente, segundo os
ativistas.
Para
eles, as medidas do presidente seriam também o capítulo mais recente da busca
dos Bolsonaros pela hegemonia dentro do campo da direita: a família
presidencial estaria tentando sufocar aliados que possam disputar espaço com
ela.
Os
atritos coincidem com uma fragilidade inédita da Lava Jato. Além do vazamento
de mensagens privadas atribuídas a procuradores e a Moro, que sugerem
irregularidades na condução de casos investigados, houve um revés jurídico para
a operação que pode levar à anulação de diversas condenações.
Mas
por que chegou a esse ponto a relação entre Bolsonaro e integrantes e
apoiadores da Lava Jato?
Crise remonta a decisão de Toffoli
Embora
o nível de fervura tenha subido nos últimos dias, ela não é nova. Segundo
pessoas ligadas à Lava Jato, a fase mais aguda começou em meados de julho,
depois que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, decidiu de
forma liminar (provisória) restringir o uso de informações fiscais detalhadas -
como as produzidas pelo Coaf - sem autorização prévia da Justiça.
A
decisão atendeu a um pedido da defesa de um dos filhos do presidente, Flávio
Bolsonaro, que é investigado na Operação Furna da Onça. Ele é suspeito de se
apropriar de parte dos salários de seus assessores quando era deputado estadual
no Rio - o parlamentar nega ter utilizado essa prática.
"Infelizmente,
uma questão menor, um crime dos mais banais envolvendo políticos - a
'rachadinha' dos salários no gabinete - está inviabilizando o combate à
corrupção no Brasil", disse.
Moro
não falou sobre o assunto em público, mas pessoas próximas a ele, sim. O
ex-diretor do Coaf, o auditor da Receita Roberto Leonel, afirmou em julho ao
jornal O Estado de S. Paulo que a decisão colocava em risco o trabalho feito no
Brasil para combater a lavagem de dinheiro.
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Presidência da República Enquanto a influência de Moro no governo declina,
cresce a proximidade de Bolsonaro com o presidente do STF, Dias Toffoli
Leonel
trabalhou com o ex-juiz federal nas investigações da Lava Jato, e ambos seriam
amigos pessoais, segundo relatos de quem conviveu com eles. Logo, a declaração
foi percebida como um recado de Moro - e desagradou muito a família Bolsonaro.
A
relação com os Bolsonaros piorou ainda mais no fim de julho, quando o ministro
da Justiça foi em pessoa ao gabinete de Toffoli pedir a ele para reconsiderar
sua decisão sobre o Coaf.
Sob
Bolsonaro, o órgão foi transformado em uma Unidade de Inteligência Financeira
dentro da estrutura do Banco Central, sem Leonel no comando - a saída dele foi
considerada um dos mais duros golpes contra Moro até agora.
Na
manhã desta segunda-feira (2), Bolsonaro disse a jornalistas do jornal Folha de
S.Paulo que irá trocar o atual diretor da Polícia Federal, Maurício Valeixo,
também ligado a Moro.
O
presidente classificou de "babaquice" as reações na PF a sua
intervenção. "Essa turma [que dirige a PF] está lá há muito tempo, tem que
dar uma arejada", disse à Folha.
Agenda anticorrupção é central para o Ministério
Público, diz pesquisador
Depois
da deflagração da Operação Lava Jato, em 2014, a imagem do Ministério Público
Federal ficou ainda mais ligada ao combate à corrupção. Mas a preocupação com
este tema tem raízes muito mais antigas na corporação, segundo o cientista
político e professor Fábio Kerche, que pesquisa o tema.
"Se você olhar os primeiros surveys
(pesquisas de opinião) com procuradores e promotores, lá nos anos 1990, o tema
da corrupção já aparece como a principal preocupação. Algo como 60% apontavam o
combate à corrupção como principal tema, e essa proporção se mantém nos anos
seguintes, ao longo dos anos 2000", diz Kerche, que é doutor em ciência
política pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de um livro sobre a Lava
Jato.
O
Ministério Público com autonomia, tal como o conhecemos hoje, surgiu com a
Constituição de 1988, lembra o pesquisador. "Mas foi a partir de 2003 que
eles tiveram um aumento substancial da independência, e dos seus instrumentos
de poder. A agenda anticorrupção é semelhante, só que hoje eles têm muito mais
independência, recursos e instrumentos para perseguir esse objetivo", diz.
Kerche
cita como exemplos o fato de o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
e seus sucessores terem seguido a lista tríplice formulada pela Associação
Nacional dos Procuradores da República (ANPR) na escolha do procurador-geral da
República; a Lei das Organizações Criminosas, de 2013, que ampliou o uso de
delações premiadas; além do aumento do orçamento da Polícia Federal e de outros
órgãos de controle.
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SCO / STF A reunião da Segunda Turma do STF, no fim de agosto, que impôs um
revés inédito a Moro e à Lava Jato
Para
o cientista político Adriano Oliveira, professor da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), a entrada de Moro no governo marca uma virada surpreendente,
porque ele trocou o campo jurídico - onde não precisava fazer concessões - pela
política, onde precisa negociar.
"Ele
teve de negociar, cooperar, e ceder. O que observamos hoje é isto: o presidente
Bolsonaro, por várias vezes, já o desautorizou", diz Oliveira, que é
doutor em ciência política e publicou em abril deste ano um livro sobre a
influência da Lava Jato no comportamento dos eleitores.
Se
o poder de Moro está declinando no mundo jurídico de Brasília, há outras
pessoas aptas a ocupar esse espaço.
"O
Toffoli já estava se aproximando do Bolsonaro há mais tempo. Em novembro
(passado), nomeou um militar como assessor no seu gabinete (o general da
reserva Fernando Azevedo e Silva) que é hoje o ministro da Defesa do Bolsonaro.
Bolsonaro não nomeia só ministros do Supremo. Nomeia desembargadores, diretores
jurídicos de empresas estatais, e vários outros. E o Toffoli hoje tem muito
mais peso e influência nessa esfera do governo que Moro", diz um assessor
próximo de autoridades jurídicas do país.
Equilíbrio na direita está mudando
O
movimento Vem Pra Rua foi um dos principais organizadores da manifestação
pró-Lava Jato no dia 25 de agosto, quando pessoas foram às ruas em 19 Estados e
no Distrito Federal para apoiar Moro e pedir nomeação do coordenador da Lava
Jato, Deltan Dallagnol, para o cargo de procurador-geral da República.
Segundo
o empresário Rogério Chequer, 51, ex-coordenador do Vem Pra Rua, havia uma
divisão clara no ato na avenida Paulista, em São Paulo.
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Agência Brasil Chamado de 'esquerdista', Deltan Dallagnol não quis comentar os
ataques de Eduardo Bolsonaro e Olavo de Carvalho
"Cada
movimento está tomando um caminho diferente. Tem os que priorizam Bolsonaro
acima de tudo, que defendem o presidente independentemente das atitudes que ele
toma. E os que mantêm a coerência e criticam as atitudes dele que estão minando
instituições de combate à corrupção", diz ele.
Segundo
Chequer, as últimas atitudes do presidente "acendem um sinal de alerta
muito grande" nos defensores da pauta anticorrupção.
Renan
Santos, 35, é cofundador e um dos principais líderes do Movimento Brasil Livre
(MBL). O grupo deu apoio tácito a Bolsonaro no 2º turno das eleições deste ano
- mas ao longo desse ano se distanciou cada vez mais do governo. Segundo
Santos, Bolsonaro está tentando minar outros grupos dentro do campo político de
direita que não estejam alinhados a ele.
"O
bolsonarismo é hegemonista. Usam fake news e ataques pessoais para tentar
demolir qualquer um do campo antipetista que ele imagine que possa ser uma
ameaça ao projeto de poder deles. Se você reparar bem, nos últimos tempos,
Bolsonaro e a família centraram mais ataques em pessoas do campo da direita do
que na própria esquerda. Atacaram o MBL, a Rachel Sheherazade, e até o Deltan
Dallagnol virou agora comunista", diz Renan.
Dias
atrás, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) postou um vídeo no qual um YouTuber
de direita retrata Deltan Dallagnol como militante esquerdista. "São
conexões com ONGs e grupos de esquerda, não se trata da opinião do Lilo (o
YouTuber), são fatos", diz o tuíte do deputado.
Intervenções na Polícia Federal e na Receita
Duas
medidas de Bolsonaro nas últimas semanas foram consideradas tentativas de
subordinar ao Palácio do Planalto a Receita e a Polícia Federal - ambos com
papel importante nas apurações contra corrupção.
O
presidente mandou embora o nº 2 na hierarquia do Fisco, José Paulo Ramos
Fachada. Acelerou a transferência para um posto fora do Brasil do chefe da
Polícia Federal no Rio, Ricardo Saadi. Ameaçou trocar o chefe da Receita no
Rio, Mário Dehon, e até o delegado da alfândega do porto de Itaguaí (RJ), José
Alex de Oliveira.
No
caso da Receita, as ameaças relativas a Dehon e Oliveira não saíram do papel:
nas últimas semanas, servidores do órgão fizeram protestos em várias cidades e
ameaçaram entregar os cargos.
Na
Polícia Federal, Saadi já tinha dito que gostaria de deixar a Superintendência
do Rio - porém, isso só aconteceria no fim do ano. A pressão do Palácio do
Planalto acabou acelerando as coisas, e ele foi convidado para ocupar um cargo
a ser criado na Holanda.
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Presidência da República Intervenções de Bolsonaro na Receita e na Polícia
Federal criaram clima de desconfiança nos órgãos
Em
seu lugar, o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, decidiu colocar o atual
superintendente da Polícia em Pernambuco, Carlos Henrique Oliveira Sousa. Mas
Bolsonaro interveio novamente e anunciou Alexandre Silva Saraiva, hoje chefe da
PF no Amazonas, para a vaga.
"Agora
há uma onda terrível sobre superintendência. Onze foram trocados e ninguém
falou nada. Sugiro o cara de um Estado para ir para lá, 'está interferindo'.
Espera aí. Se eu não posso trocar o superintendente, eu vou trocar o
diretor-geral", disse Bolsonaro no dia 22 de agosto.
"O
que causa muita estranheza é esse nível de interferência, e de insistência (da
parte do governo)", diz um delegado da PF, sob condição de anonimato.
"É normal e esperado que um novo ministro da Justiça troque o
diretor-geral da PF, que é o chefe administrativo do órgão. Mas não é normal
interferir num cargo de quarto escalão como o de superintendente."
Segundo
o mesmo delegado, ao se opor à proposta de garantir autonomia à PF, Bolsonaro
estaria permitindo "que se veja a PF como uma instituição de governo, e
não de Estado".
"Imagine
que amanhã aparece uma operação contra adversários políticos dele no Rio. Ou
que investigações sobre aliados dele fiquem paradas. Isso coloca em dúvida a
credibilidade da PF", diz esse delegado.