Cientistas questionam 'guru ambiental de Bolsonaro'
que coloca Brasil como líder em preservação
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Alan Santos/PR Evaristo Miranda (esq), que está na Embrapa há quase 40 anos, já
foi chamado de 'guru ambiental de Bolsonaro' pelo diretor de redação do
programa Globo Rural, Bruno Blecher
"Somos o país que mais preserva o meio
ambiente". A frase, dita por Jair Bolsonaro durante o Fórum Econômico
Mundial, em janeiro, na Suíça, é repetida com frequência pelo presidente
brasileiro quando fala sobre questões ambientais e constantemente ecoa nas
vozes de seus ministros e filhos.
Embora dados oficiais mostrem que o desmatamento na
Amazônia tem crescido desde 2012 e se intensificou neste ano, o Palácio do
Planalto questiona a veracidade dos números e insiste que o Brasil é
"exemplo de preservação" e "tem muito a ensinar" a outros
países.
A ideia de que o Brasil lidera na preservação
ambiental já foi defendida pelos ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente), Onyx
Lorenzoni (Casa Civil), Tereza Cristina (Agricultura) e Augusto Heleno
(Gabinete de Segurança Institucional). O senador Flávio Bolsonaro, por sua vez,
usou o argumento ao apresentar em abril um projeto de lei para acabar com a
"reserva legal", área que os produtores rurais são obrigados a
preservar dentro de suas propriedades, segundo o Código Florestal.
"Não é demais reafirmar que o Brasil é o país
que mais preserva sua vegetação nativa e o produtor rural é personagem central
desta preservação, ao bancar do próprio bolso a conservação de um quarto do
território nacional", escreveu, na justifica da proposta.
Essa linha de que o Brasil é o país que mais
preserva o meio ambiente se baseia em números do agrônomo Evaristo Eduardo de
Miranda, chefe da Embrapa Territorial, uma das unidades da Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), estatal vinculada ao Ministério da
Agricultura.
Miranda, que está na empresa há quase
quarenta anos, foi chamado, após ter coordenado - durante a transição de
governo - um grupo de trabalho sobre política ambiental, de "guru
ambiental de Bolsonaro" pelo diretor de redação do programa
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Marcos Oliveira/Agência Senado Em livro, Evaristo Miranda argumenta que áreas
de mata nativa dentro de propriedades privadas representam custo de mais de R$
20 bilhões para sua preservação
Sua tese do "Brasil líder em
preservação" foi sintetizada no ano passado no livro Tons de Verde,
editado com apoio de 15 instituições do agronegócio, segundo informações da
Frente Parlamentar da Agropecuária, que realizou pré-lançamento da publicação.
Seus argumentos, porém, são contestados por
cientistas, ambientalistas e enfrentam críticas também dentro da Embrapa. Um
artigo publicado por autores brasileiros ano passado na revista Environmental
Conservation, da universidade de Cambridge (Reino Unido), com o título "Os
dados confirmam que Brasil lidera o mundo em preservação ambiental?",
chama os números de Miranda de "estatísticas criativas",
"influenciadas por uma narrativa ideológica que distorce a realidade
ambiental brasileira".
'Dá 48 países da
Europa'
Em seu livro, Miranda sustenta que áreas de mata
nativa dentro de propriedades privadas somam 218 milhões de hectares e
representam 25% do território do Brasil, fazendo do produtor rural a categoria
que mais preserva no país. Sua equipe da Embrapa estimou em R$ 3,1 trilhões o
capital imobilizado nessas áreas por não serem usadas para plantação ou criação
de gado - e em R$ 20 bilhões o custo de sua preservação.
O cálculo da área preservada foi feito a partir do
que os próprios proprietários declararam ao realizar o Cadastro Ambiental Rural
(CAR), exigência do Código Florestal aprovada em 2012, que atualizou a
legislação ambiental de 1965. A nova lei prevê que o dono de terras é obrigado
a preservar parte da área de vegetação nativa em sua propriedade, o que se
chama de "reserva legal". Na Amazônia, o percentual
"reservado" é de 80% da propriedade, no cerrado é de 35% e nos demais
biomas 20%.
O prazo para realizar o cadastro vencia em maio de
2015, mas vem sendo sucessivamente adiado, o que impede o avanço da etapa
seguinte, de fiscalização e regularização dos que desmataram mais do que
podiam. Depois de os ex-presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer terem
prorrogado o período de cadastro, Bolsonaro editou uma medida provisória em
junho extinguindo o prazo, deixando produtores livres para cumprir essa
exigência quando quiserem.
© Getty Images Chefe da Embrapa diz que Brasil é
líder em preservação ambiental
É justamente essa obrigação, o cadastro de reserva
legal, que Flávio Bolsonaro quer acabar, citando em sua proposta os números de
Miranda.
"O maior trabalho escravo da história do
Brasil. Cinco milhões de pessoas obrigadas, sem ganhar nada, a fazer esse
trabalho, sob coação, sob ameaça de perda de crédito", criticou Miranda,
colocando a obrigação dos produtores de registrar suas propriedades como um
encargo pior que mais de três séculos de trabalho forçado impostos aos negros
no Brasil.
A fala pode ser vista em vídeo que já alcançou
quase 300 mil visualizações do YouTube, registro de sua palestra no VI Fórum de
Agricultura da América do Sul, há um ano, em Curitiba.
Ao somar os hectares que estariam preservados por
produtores às áreas protegidas nas unidades de conservação, terras indígenas e
porções de terras públicas devolutas ou de controle militar, sua equipe aponta
que 66% do país é ocupado por florestas ou outros tipos de vegetação original,
o que corresponde a 48 países da Europa.
"É um país que já resolveu todos os seus
problemas de saneamento, de saúde, de infraestrutura... Como temos um fundo
soberano que as nações invejam, a maior renda per capita do planeta, ah, vamos
deixar três quartos (do país preservados) para ajudar o planeta. Dá 48 países da
Europa", ironizou.
Ao dizer que o Brasil é líder em preservação,
Miranda usa ainda um banco de dados gerenciado pela ONU, o World Database on
Protected Areas, que compila áreas legalmente protegidas, para comparar o
desempenho dos dez maiores países em extensão territorial.
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AFP/Getty Críticos de Miranda dizem que chefe da Embrapa usa estatísticas de
forma controversa
Nessa comparação, o Brasil aparece no topo do
ranking, com 29% de território protegido, considerando unidades de conservação
e terras indígenas. A média dos outros nove (Austrália, China, Estados Unidos,
Rússia, Canadá, Argentina, Argélia, Índia e Cazaquistão) fica em 10%.
Quando considerados todos os países do mundo, no
entanto, o Brasil aparece acima da média mundial, mas atrás de mais de vinte
nações, como Alemanha (38%), Grécia (35%), Nova Zelândia (32%), Venezuela
(54%), Bolívia (30%) e Congo (41%).
Desmatamento
acelerado nas propriedades rurais
Um dos críticos do chefe da Embrapa Territorial é o
pesquisador da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) Raoni Rajão, que tem artigos sobre preservação ambiental publicados com
colegas nas principais revistas científicas mundiais, como a americana Science
e a britânica Nature.
Ele também calcula que a cobertura de vegetação
nativa no Brasil supere 60%, como aponta Miranda. Porém, na sua visão, esse
índice isoladamente não atesta que o Brasil seja líder em preservação.
"Esse número não é alvo de controvérsia. O uso
que é feito dele é que é controverso. A foto pode ser boa, mas o filme é muito
ruim. O país está perdendo rapidamente sua riqueza (florestal)", critica
Rajão.
"O que faz o Brasil ter 60% de floresta, e não
30% ou 40%, é que a entrada (mais intensificada) na Amazônia foi a partir da
década de 70. Se for ver o percentual de floresta que tem em São Paulo, Santa
Catarina, Paraná, vai ver que índice é menor que na França, na Alemanha",
ressalta.
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Greenpeace 'O país está perdendo rapidamente sua riqueza (florestal)', diz o
pesquisador da UFMG Raoni Rajão
Dados do MapBiomas - projeto de mapeamento do uso
do solo brasileiro desenvolvido por universidades, ONGS e empresas de
tecnologia - apontam que as propriedades privadas possuem, em média, metade de
sua extensão preservada, resultado também similar ao de Miranda. Isso
corresponde a um terço das florestas brasileiras, enquanto outro terço estão em
terras indígenas e unidades de conservação, e o terço restante principalmente
em áreas públicas não demarcadas para preservação.
No entanto, um levantamento da variação ao longo do
tempo pelo MapBiomas revela que 20% da floresta que existia em propriedades
privadas foi desmatada ou degradada entre 1985 e 2017. No mesmo período, a
perda de mata nativa em unidades de conservação e terras indígenas foi inferior
a 1%, enquanto nas demais áreas públicas ficou abaixo de 5%.
Já uma pesquisa desenvolvida pelo promotor de
justiça Marcelo Vacchiano, na Universidade Federal do Mato Grosso, constatou
que, de 75 grandes propriedades na região de Rondonópolis (MT), 49 declararam
ter área preservada maior do que o observado nas imagens de satélites.
Ele é um dos autores do artigo na Environmental
Conservation que contesta diretamente o uso de informações autodeclaratórias do
CAR por Miranda para sustentar que os produtores rurais são os que mais
preservam no Brasil, classificando seus números de "estatísticas
criativas".
Outra crítica à argumentação de Miranda é que ele
contrapõe as áreas preservadas à riqueza econômica gerada pelo agronegócio,
como se não houvesse atividades econômicas em florestas. Entre os tipos de
unidades de conservação, por exemplo, existem as Reservas Extrativistas e as
Florestas Nacionais (Flonas), onde é permitido concessão para mineração e
extração de madeira, de forma sustentável. A maior mina de ferro do mundo,
operada pela Vale, fica na Flona de Carajás, no Pará.
"O Evaristo faz mágica com os números, de
má-fé", critica a especialista em biodiversidade Nurit Bensusan, do
Instituto Socioambiental (ISA).
"Não é verdade que preservamos demais, mas se
fosse, seria bom. A biodiversidade é fronteira (econômica) a ser explorada, mas
não estamos investindo nisso", acrescenta.
'Embrapa é séria'
A BBC News Brasil procurou Evaristo de Miranda no
início de julho para que pudesse responder as críticas, mas ele não quis falar.
Desde a semana passada, um entusiasta de suas
teses, o engenheiro agrônomo Celso Moretti, assumiu o comando interino da
Embrapa. Antes, Moretti estava como diretor-executivo de Pesquisa e
Desenvolvimento da estatal. O futuro presidente do órgão ainda será escolhido
pela ministra Tereza Cristina.
Para o presidente da Comissão de Meio Ambiente da
Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Muni Lourenço, não há
porque desconfiar dos números da Embrapa Territorial. A instituição premiou
Miranda por seu livro no ano passado.
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Getty Images O desmatamento na Amazônia Legal, que engloba a região Norte mais
parte do Maranhão e Mato Grosso, caiu de 27,8 mil km² em 2004 para 4,6 mil km²
em 2012, menor resultado histórico
"A Embrapa tem sido notabilizada por ser uma
instituição muito séria, com trabalho técnico de excelência", defendeu.
"O setor está permanentemente buscando
mecanismos, tecnologias, que possam cada vez mais dar uma condição de aumento
de produção e sustentabilidade ambiental. Somos líderes em várias tecnologias
de baixa emissão de carbono, como plantio direto, fixação de nitrogênio no
solo, e a integração lavoura, pecuária e floresta", disse também.
Questionado pela BBC News Brasil, Lourenço não quis
externar a posição da CNA sobre os constantes adiamentos da completa
implementação do CAR no país.
Dentro da Embrapa, porém, há pesquisadores que
preferem se distanciar de Miranda.
"Existe uma Embrapa muito séria e existe um
grupo dentro da Embrapa que não é respeitado nem dentro da Embrapa",
criticou o engenheiro agrônomo Eduardo Assad, pesquisador da estatal desde 1987
e professor da FGV, durante um seminário do MapBiomas, no ano passado.
"(A Embrapa Territorial) Está a serviço do que
tem de pior na política ambiental e rural brasileira", disse também,
atribuindo o espaço de Miranda no órgão desde os anos 80 a "apoio
político".
Assad e mais de cem outros pesquisadores da Embrapa
assinaram em maio uma nota técnica contra o projeto de lei de Flávio Bolsonaro
que tenta acabar com a reserva legal nas propriedades rurais.
Desmatamento no
Brasil x reflorestamento em países desenvolvidos
O desmatamento na Amazônia Legal, que engloba a
região Norte mais parte do Maranhão e Mato Grosso, caiu de 27,8 mil km² em 2004
para o menor resultado histórico em 2012 (4,6 mil km²), queda que é atribuída
ao aumento da fiscalização e repressão, possibilitado pela melhora do
monitoramento por satélites. A redução não freou a agropecuária - o PIB
(geração de riqueza) do setor cresceu 80% no período, segundo o IBGE.
Desde então, porém, os dados medidos pelo Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram crescimento quase contínuo do
corte de floresta. Os dados para o último ano (período que engloba de agosto de
2017 a julho de 2018) são de 7,9 mil quilômetros quadrados de perda de mata
nativa na região, aumento de 15% ante os doze meses anteriores.
Já os números preliminares de 2019 têm indicado
piora da situação: o sistema do Inpe aponta que o desmatamento na Amazônia
Legal brasileira atingiu 920,4 km² no mês passado, um aumento de 88% na
comparação com junho de 2018. Para ambientalistas, a forte alta reflete o
enfraquecimento das políticas de preservação.
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Getty Images Dados oficiais mostram que o desmatamento na Amazônia é crescente
desde 2012
Na última sexta-feira, Bolsonaro disse que há uma
"psicose ambiental" em relação ao Brasil, tachou os números do Inpe
de "mentirosos" e insinuou que o órgão estaria "a serviço de
alguma ONG". Depois, mudou um pouco o tom sobre a veracidade dos números,
mas criticou a forma como são divulgados. "Um dado desse aí, da maneira de
divulgar, prejudica a gente", criticou no sábado.
"O Brasil não é exemplo (de preservação) para
ninguém e não deve ser comparado com países de desenvolvimento antigo. É óbvio
que (países ricos) desmataram mais, porque a biodiversidade não tinha a
importância que tem hoje, mas o esforço que fazem de recuperação é
enorme", afirma a ambientalista Maria Tereza Pádua, conhecida como a
"mãe dos parques nacionais do Brasil" por seu esforço em implementar
reservas ambientais quando dirigiu o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal, nos anos 70 e 80.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO), a área da União Europeia coberta por
florestas subiu de 35% para 38% de 1990 a 2016. No mesmo período, o índice
passou de 33% para 34% nos Estados Unidos, enquanto na China aumentou de 16,7%
para 22,3%. Já no Brasil, houve queda de 65,4% para 59% no mesmo intervalo.
'Precisamos da nossa
floresta para produzir'
Na palestra cujo vídeo viralizou, Evaristo Miranda
cita um documento financiado por produtores rurais americanos - "Farms
Here, Forests There" (Fazendas Aqui, Florestas lá) - para demonstrar que a
conservação no Brasil favorece os Estados Unidos. A publicação defende o combate
ao desmatamento em países como o Brasil, para limitar a expansão da nossa
agropecuária e reduzir a competição enfrentada pelo agronegócio americano no
mercado global.
Para o engenheiro agrônomo André Guimarães, um dos
representantes da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, parte dos
produtores rurais já entendeu que, na verdade, é o desmatamento que ameaça sua
atividade. A coalizão reúne dezenas de associações do agronegócio e
organizações ambientais.
"Nossa agricultura é fortemente dependente de
chuvas, mais de 90% não é irrigável. A floresta é o que mais se assemelha a uma
fábrica de água. Se subtrair vegetação nativa, tem menos evapotranspiração, ou
seja, as plantas jogam menos umidade para a atmosfera e há menos chuva. Isso já
está acontecendo em algumas regiões do cerrado e da Amazônia", alerta.
"Comparação com outros países é inócua. Nós
precisamos da nossa floresta para produzir", resume.