Manoel Hygino
Dercy Gonçalves teria pedido para ser
enterrada de pé. O assunto foi focalizado pela imprensa, embora sem maior
ênfase, e recente programa de televisão incluiu o tema na pauta. A artista
apreciava a linguagem das ruas, era boquirrota em suas conversas e até, em
tiradas no palco. Há gente que gosta. Eu a ouvi, detrás das cortinas do
Francisco Nunes, usando um indesejado palavrão com seu então marido (?), o
advogado Danilo Bastos.
Tudo virou passado. O que desejo, enfim,
é lembrar um episódio quase esquecido da história, no tumultuoso 1930, que
poria término à República Velha. Só se falava em revolução, remover Washington
Luís da chefia do governo, os ânimos exaltados. Em oposição ao presidente da
República, formou-se a Aliança Liberal, unindo Minas (sob Antônio Carlos), Rio
Grande do Sul e a Paraíba, cujo presidente João Pessoa seria vice de Getúlio
Vargas, este candidato ao Catete. Assassinado, em Recife, João Pessoa, em
26/07/1930, atingiu-se a ebulição, que resultou no movimento armado.
Cuidou-se de transportar o corpo da
vítima para o Rio de Janeiro, capital nacional. No cais do porto, reuniram-se
as mais prestigiadas figuras da política. O espetáculo emocionava aquela manhã.
O primeiro orador, o grande tributo Maurício de Lacerda, no alto de uma mureta,
de improviso, foi tomado pela emoção. Tentou várias vezes iniciar o discurso,
mas os soluços o sufocavam. Confessou: “A tribuna tem dessas traições com seus
soldados”.
Ariosto Pinto fez sua oração pelo Rio
Grande, Sebastião Montandon pela mocidade e Carlos Pinheiro Chagas, por Minas
Gerais. Uma belíssima peça, gravada em disco, mesmo com as dificuldades
notórias da época e das circunstâncias. Foi dramático: “Deus do Céu, Tu que
existes nas irradiações de luz e nas vibrações do som; Tu, que estás nos
matizes da cor e na fragrância do perfume; Tu, que és tão grande que só o
infinito te pode conter; Tu que vives em cada molécula da constituição do
Universo e em cada átomo da constituição molecular, que estás em tudo e em toda
parte; ajuda-nos, Senhor, na tua onipotência, a exalçar a tua Glória a memória
de quem para nós é um herói e é um justo para Ti. Recebe o seu espírito e o
transforma em nume tutelar da nossa Pátria, para que ele, que viu a perfídia
humana desencadeada na inconsciência do despotismo, saiba livrar-nos do
aniquilamento a que nos condenarão a teimosa persistência no erro e o
embotamento de sensibilidade com que estamos aturando os reincidentes no erro”.
Enfatizando que a alma generosa de
Pessoa estava gravada no coração de cada brasileiro, Carlos Pinheiro Chagas,
Carleto, terminou:
“O povo brasileiro chora ainda hoje as
mesmas lágrimas ardentes, soluça o mesmo soluço pungente e brada, o mesmo brado
de indignação, que chorou, que soluçou e que bradou no dia da surpresa
inominável, e ainda por ti sobem aos céus as preces dos homens, das mulheres e
das crianças. Agora, senhores, podeis levar o seu corpo para a morada
derradeira, mas atendei: um homem como ele deveria ser enterrado de pé. De pé
como sempre viveu. De pé como não vivem muitos dos seus algozes. De pé como
quis ser enterrado Clemenceau: com o coração acima do estômago e com a cabeça
acima do coração”.
Em tempo: Clemenceau foi o estadista
francês que contribuiu para vitória dos aliados da I Grande Guerra.



