terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

OS HEROIS DEVERIAM SER ENTERRADOS DE PÉ




Manoel Hygino



Dercy Gonçalves teria pedido para ser enterrada de pé. O assunto foi focalizado pela imprensa, embora sem maior ênfase, e recente programa de televisão incluiu o tema na pauta. A artista apreciava a linguagem das ruas, era boquirrota em suas conversas e até, em tiradas no palco. Há gente que gosta. Eu a ouvi, detrás das cortinas do Francisco Nunes, usando um indesejado palavrão com seu então marido (?), o advogado Danilo Bastos.
Tudo virou passado. O que desejo, enfim, é lembrar um episódio quase esquecido da história, no tumultuoso 1930, que poria término à República Velha. Só se falava em revolução, remover Washington Luís da chefia do governo, os ânimos exaltados. Em oposição ao presidente da República, formou-se a Aliança Liberal, unindo Minas (sob Antônio Carlos), Rio Grande do Sul e a Paraíba, cujo presidente João Pessoa seria vice de Getúlio Vargas, este candidato ao Catete. Assassinado, em Recife, João Pessoa, em 26/07/1930, atingiu-se a ebulição, que resultou no movimento armado.
Cuidou-se de transportar o corpo da vítima para o Rio de Janeiro, capital nacional. No cais do porto, reuniram-se as mais prestigiadas figuras da política. O espetáculo emocionava aquela manhã. O primeiro orador, o grande tributo Maurício de Lacerda, no alto de uma mureta, de improviso, foi tomado pela emoção. Tentou várias vezes iniciar o discurso, mas os soluços o sufocavam. Confessou: “A tribuna tem dessas traições com seus soldados”.
Ariosto Pinto fez sua oração pelo Rio Grande, Sebastião Montandon pela mocidade e Carlos Pinheiro Chagas, por Minas Gerais. Uma belíssima peça, gravada em disco, mesmo com as dificuldades notórias da época e das circunstâncias. Foi dramático: “Deus do Céu, Tu que existes nas irradiações de luz e nas vibrações do som; Tu, que estás nos matizes da cor e na fragrância do perfume; Tu, que és tão grande que só o infinito te pode conter; Tu que vives em cada molécula da constituição do Universo e em cada átomo da constituição molecular, que estás em tudo e em toda parte; ajuda-nos, Senhor, na tua onipotência, a exalçar a tua Glória a memória de quem para nós é um herói e é um justo para Ti. Recebe o seu espírito e o transforma em nume tutelar da nossa Pátria, para que ele, que viu a perfídia humana desencadeada na inconsciência do despotismo, saiba livrar-nos do aniquilamento a que nos condenarão a teimosa persistência no erro e o embotamento de sensibilidade com que estamos aturando os reincidentes no erro”.
Enfatizando que a alma generosa de Pessoa estava gravada no coração de cada brasileiro, Carlos Pinheiro Chagas, Carleto, terminou:
“O povo brasileiro chora ainda hoje as mesmas lágrimas ardentes, soluça o mesmo soluço pungente e brada, o mesmo brado de indignação, que chorou, que soluçou e que bradou no dia da surpresa inominável, e ainda por ti sobem aos céus as preces dos homens, das mulheres e das crianças. Agora, senhores, podeis levar o seu corpo para a morada derradeira, mas atendei: um homem como ele deveria ser enterrado de pé. De pé como sempre viveu. De pé como não vivem muitos dos seus algozes. De pé como quis ser enterrado Clemenceau: com o coração acima do estômago e com a cabeça acima do coração”.
Em tempo: Clemenceau foi o estadista francês que contribuiu para vitória dos aliados da I Grande Guerra.

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