Professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do
Direito pela PUC-SP; é Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Em
matéria de diversidade de opiniões, os chamados rolês estão batendo recordes.
Há posição para todo gosto e não só de leigos, mas também de cientistas. Até no
Judiciário, as decisões, por enquanto, são divergentes. E como envolve
claramente a sociedade de consumo em que vivemos, aqui vai a minha, técnica na
medida do possível no espaço de tempo, com as informações de que dispomos. Eis,
pois, minha lenha para a fogueira.
O chamado
rolê ou rolezinho, em primeiro lugar, não tem nada de político ou movimento
social. Trata-se apenas de acontecimento possível em função do modelo de
tecnologia existente (no caso, as redes sociais) e que reproduz em larga escala
encontros de jovens ávidos por atividade sexual e/ou demonstração de poder e/ou
por mostrar publicamente sua adoração aos ídolos. Algo tão antigo como a
humanidade.
Querer
encontrar uma base ideológica ou um fundamento político no ”movimento” é
enxergar poeira em alto mar. O “movimento” é de corpos de jovens fincados
alienadamente no modelo de consumo da sociedade capitalista repleta de símbolos
que apenas alimentam o próprio vazio da existência humana. O uso de roupas de
grifes, tênis, bonés, colares etc. demostra socialmente e de forma objetiva o
controle ao qual estão submetidos os usuários-consumidores “rolezeiros”.
E deu o
que falar e continua assim porque ocorreram duas coincidências: a primeira, a
dos encontros terem sido marcados nos shopping centers – pura ironia com o mercado
de consumo que oprime a todos. A segunda, foi a adesão espetacular de milhares
de jovens. Se o local fosse outro – por exemplo, um grande parque – ou o número
de participantes fosse pequeno – apesar de fixado para um shopping center – não
teria gerado problemas nem, talvez, chamado atenção.
É
evidente que impedir a entrada de alguma pessoa – jovem ou não – num shopping
center é pura discriminação. Impedir um grupo de pessoas também. Mas, quando se
trata de um grupo de mil, duas mil pessoas não há qualquer relação com
discriminação e sim com segurança pública e paz social. Tanto faz a
qualificação do grupo: podem ser jovens da periferia ou dos jardins, manos ou
mauricinhos, minas ou patricinhas, empregados ou desempregados, evangélicos ou
católicos, brancos, negros, pardos, amarelos, brasileiros, americanos,
japoneses, franceses, chineses etc. O problema não é a pessoa, mas a multidão.
Isso é tão claro como que a chuva molha.
Mas, por
incrível que pareça, há opiniões e decisões judiciais que desprezam esse
simples fato: centenas de pessoas chegando juntas num lugar que não comporta de
forma segura e tranquila esse número é caso típico de segurança pública.
Li o
depoimento de uma antropóloga com o qual não concordo, mas que serve para
ilustrar parte das opiniões. Ela disse o seguinte: “O shopping sempre foi
uma redoma, um lugar das elites e das camadas médias. De repente, essa paz e
essa fronteira foram abaladas e no fundo se teme ver o que antes não se via: a
periferia negra, a pobreza e a desigualdade”[i].
Ao que
parece, essa cientista, que é de Oxford, esquece-se que há muito tempo no
Brasil – e em outros lugares do mundo — há vários estabelecimentos comerciais,
shopping centers e mesmo lojas on line voltadas para o público de mais
baixa renda. Na sociedade de consumo, os empresários se importam tanto com
ricos como com pobres, como demonstram as lojas e sites populares:
o que importa é faturar. É uma grande bobagem dizer que o shopping
faz apartheid, como afirmou a antropóloga, dentre outros que se
manifestaram na mesma linha. E, ademais, os centros comerciais acolhem consumidores
de baixa renda, assim como os emprega em suas atividades.
Naturalmente,
não serei eu a defender shopping centers, eis que, de fato, são centros
de controle e alienação – disfarçados com ofertas de oportunidades e fantasias,
e com alguma alternativa de lazer. O que o shopping quer é vender. Como eu
disse acima, se forem pessoas abonadas que compram, tudo bem: há
produtos e serviços para elas. E se forem pessoas de baixa renda também: há
produtos e serviços para elas. O mercado de consumo não faz controle
discriminatório de pessoas; e shopping center não é centro de discussão
política ou ideológica. Para isso, existem as universidades, os parlamentos, a
imprensa, a literatura científica ou de ficção, os partidos políticos etc.
Nesse sentido, quer se goste ou não, o mercado é o mais neutro possível. Pode
pagar? Então, leva. Os únicos discriminados do mercado são os inadimplentes e,
ainda assim, o mercado busca reabilitá-los o tempo todo – para que possam
comprar!
O que os
comerciantes querem, e também os frequentadores dos espaços comerciais desejam,
é tranquilidade para trabalhar, como, aliás, se espera em qualquer
lugar organizado. Quando há baderna, tumulto e ameaça à segurança das
pessoas, assim como ao patrimônio, há que intervir a força policial. Qual
o problema com isso?
E, se é
sabido de antemão que, em certo local, dia e horário haverá tumulto, há
que se agir preventivamente. Se for necessário ir ao Judiciário para tanto,
trata-se apenas de exercício regular de direito, como bem se estabeleceu nas
sociedades democráticas.
Evidentemente
que, num país como o Brasil, onde os preconceitos em geral são e sempre foram
fortíssimos – abertamente declarados ou ocultados — em todas suas formas, tais
como o racismo, o machismo, a perseguição às minorias etc., falar em apartheid
soa bem. Dá manchete e fica bonitinho. Mas penso que não é o caso presente.
E mais: o
problema não está no rolezinho em si. Ele pode existir sem nenhuma intervenção
de autoridade. A questão é outra e diz respeito à dimensão e ao espaço.
Se fossem poucos jovens, poderia rolar em qualquer espaço. Em sendo centenas,
em vários lugares não pode ser realizado. E shopping center é um deles.
Outra
afirmação com a qual não concordo é a de que o citado rolezinho é
“fenômeno de massa” de “excluídos” que escolheram o “shopping center” como
forma de demonstração de sua insatisfação ou de uma atitude contrária ao modelo
capitalista que os exclui. Ora, como disse no início, o ajuntamento de
centenas, milhares de pessoas é coincidente com a tecnologia da informação que
propicia fácil contato via redes sociais. Dar rolê em shopping centers, passear
e paquerar nas praças de alimentação é tão antigo quanto os próprios e
primeiros shopping centers. A diferença é a quantidade. Quantidade essa que
atinge números estratosféricos por causa das redes via web.
Não há
nada além disso e bem ao contrário: os “rolezeiros” adoram os shopping
centers. Se deixassem e eles pudessem estariam lá a toda hora. Eles não querem
destruir o “templo de consumo”; querem curti-lo; querem frequentá-lo; querem
idolatrá-lo. De preferência, mostrando no corpo todos os adereços que os
identifiquem como consumidores-padrão do grupo de consumo ao qual pertencem. Os
”rolezeiros” são típicos consumidores muito a favor do consumo. Bastam esses
depoimentos para constatá-lo:
"Rolezinho
é diversão, mano, a gente faz no shopping por que lá é um lugar luxuoso e um
lugar onde nós nos sentimos bem. Tipo assim, nossa intenção é namorar, dar uns
beijos e tal. Só que tem uns ‘lixo’ que não têm dinheiro pra comprar um Mizuno
e ‘vai’ roubar…”[ii]
"O
primeiro que a gente fez em Itaquera foi só para amigos, teve menos de 500
pessoas. Shopping é um local aberto de fácil acesso para várias pessoas de fora
participar. Nosso objetivo é de jovem: pegar mulher…”[iii]
Como o
assunto envolve aspectos antropológicos, consultei meu expert no assunto,
Rodrigo Ferrari-Nunes, Mestre em Antropologia pela Universidade de British
Columbia, em Vancouver, Canadá e Doutorando, em Antropologia Social pela
Universidade de Aberdeen, na Escócia. Veja o que ele me disse: “Bom, o tal
do rolezinho é um fenômeno social. Pode não ter intenção política, mas tem
efeito político – tanto que todo mundo quer comentar sobre o assunto, e se
sente afetado pela coisa em si. Claramente não é um ‘movimento social,’ pois
estes requerem concentração ideológica e uma direção política organizada
– algo que gere a necessidade de luta na arena política e social”
Comentei
o artigo da citada antropóloga e perguntei a opinião dele: “A antropóloga
parece se iludir com um esquerdismo típico de uma elite intelectual alienada (é
um tipo de ideologia da moda, dos que vivem entre o luxo e o prestígio e mesmo
assim fingem estar do lado do ‘povo’). Todos sabem da pobreza de São Paulo, da
falta de segurança, etc. As multidões se alinham nos pontos de ônibus todos os
dias, mães puxam carroças pelas ruas, descalças, procurando lixo para
sobreviver e carregando seus filhos, enquanto outros compram cuecas de dezenas
de dólares nas grifes e dirigem carros importados. Sim, as pessoas da elite do
Iguatemi vivem numa bolha, mas sabem o que está além dela, e não vivem em ‘paz’
– isso a cidade não permite, tanto faz a classe social. Muitos dos ricos
vivem obcecados por trivialidades superficiais e pouco se importam com o
sofrimento alheio.”
“A
antropóloga usou um termo de choque para chamar atenção – apartheid é um
tipo de regime racista organizado pelo governo… O que acontece no Brasil é
simplesmente um reflexo das diferenças brutais de renda entre indivíduos, e da
falta de responsabilidade social dos extremamente ricos, que se vangloriam em
suas banalidades e prazeres, ignorando o sofrimento dos que os rodeiam e
servem. É um argumento padrão entre certos antropólogos, usar os ‘oprimidos’
como sujeitos em seus projetos, pois isso afeta aqueles que não passam tantas
necessidades no dito ‘primeiro mundo’ (um termo colonialista que ainda não saiu
de moda), com o objetivo de trazer à consciência dos mais alienados um pouco
das dificuldades do outro lado do mundo, e que nunca experimentaram.”
E em
relação ao movimento, disse ele: “De fato, é o Facebook que facilita com
suas ferramentas a organização desses ‘eventos.’ Tudo que acaba virando moda na
Internet passa a servir a vários objetivos políticos diferentes, dependendo de
quem está escrevendo.”