Ives Gandra Martins e outros
Projetos de lei complementares que tratam da reforma tributária dos impostos sobre o consumo
A
EC (Emenda Constitucional) 132/2023 previu a substituição do ICMS, ISS,
PIS e COFINS por um novo sistema de tributação do consumo, mais
simples, racional e alinhado à prática internacional.
Nesse
sistema, a tributação geral do consumo será dual, com um Imposto
(subnacional) e da Contribuição (federal) sobre Bens e Serviços, IBS e
CBS, instituídos por lei complementar e praticamente idênticos entre si.
Eles serão administrados pelo Comitê Gestor do IBS (CG) e pelo fisco
federal, cabendo aos entes federados definir suas alíquotas padrão.
Haverá, ainda, um Imposto Seletivo para desestimular consumos
prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, que coexistirá com o IPI,
mantido apenas para produtos da ZFM.
A dualidade substitui a
ideia original de um único IBS compartilhado entre os entes, que, como
alertamos desde os primórdios da PEC 45/2019[1], seria inconstitucional, pois suprimir o ICMS (88% da arrecadação estadual) e o ISS (43% da municipal)[2], deixando o novo imposto a critério do Congresso Nacional, afetaria a autonomia financeira dos entes[3].
Contudo,
após a alteração, apontamos para o risco de essa dualidade ser apenas
formal, sem garantir um nível satisfatório de autonomia aos entes[4],
o que, agora, é confirmado pelos recentes PLPs 68 e 108/2024. Afinal,
segundo os PLPs, os entes serão subalternos ao CG, que, por sua vez,
ficará na dependência da União quanto à estrutura comum do IBS/CBS.
E isso os enfraqueceri a, amesquinhando a Federação, o que é vedado.
De
fato, a EC teve o propósito de recuperar a racionalidade do sistema
tributário. Assim, a dualidade do IBS/CBS precisa ser estruturada de
modo a atender à simplicidade, transparência, justiça e cooperação (CF,
art. 145, §3º). E isso implica que, além de duais, os tributos têm de
ser uniformes, tanto em seus aspectos legais (mesmas regras de
incidência) quanto administrativos, com regulamentos, interpretações,
obrigações e procedimentos harmônicos (CF, arts. 149-B, art. 156-B e
195, §16).
Consequentemente, a lei complementar deve dispor sobre
a matéria de modo a garantir suficiente autonomia dos Estados e
Municípios (dualidade), mas, ao mesmo tempo, criar um sistema simples, racional e praticável o bastante (uniformidade) para justificar o abandono do sistema atual, que existe há anos e que, bem ou mal, funciona.
De fato, “a repartição de competências e de receitas tributárias configura um dos pilares da autonomia dos entes” (STF, RE 591033, DJ 24/02/11), pois consagra a descentralização e“divisão de centros de poder”no País (ADI 4228, DJ 10/08/18). Por isso, nem mesmo via emenda pode o Congresso Nacional relativiz& ; ;aac ute;-las“ ou afastá-las”, o que ofenderia “o pacto federativo” e seria “tendente a aboli-lo”, o que é vedado(ADI 926, DJ 06/05/94).
Em
nosso sistema, competência tributária é o poder do ente para instituir
seu tributo por lei própria. Ela não se confunde com a capacidade
administrativa de arrecadá-lo ou alterar-lhe a alíquota, que é
delegável, sem que isso o tornede competência de quem a exerce, ao invés
do órgão legislativo que o cria. Só há competência tributária se o ente
pode criar / modificar o tributo quando conveniente[5].
No caso, há indicativos de que Estados e Municípios podem perder poder em matéria de consumo, pelo prisma tanto da competencia quanto da capacidade tributária.
A
teor da EC, a instituição e a estrutura do IBS serão definidas junto
com as da CBS, por lei complementar de iniciativa federal, editada pelo
Congresso Nacional, ou seja, por veículo e órgão legislativos da União.
Assim, ela passará a de ter competência para dispor sobre estrutura do
tributo, o que, hoje, os entes fazem por leis próprias. Segundo os
idealizadores da EC, isso seria possível por tratar-se de competência
compartilhada, a permitir que tributos “distintos” sejam criados por uma
lei complementar comum, de caráter “nacional”. Todavia, nacionais são
leis complementares de normas gerais para regular a compet encia
dos entes, que a exercem por leis próprias, enquanto as que criam
tributos são leis instituidoras, mas sujeitas a rito mais rigoroso, pela
excepcionalidade do gravame (CF, art. 148 e 154, I).
Além
disso, inúmeras prerrogativas inerentes à capacidade administrativa,
hoje exercidas pelos entes sozinhos, serão centralizadas no CG. Este,
por sua vez, ficará sujeito à União, ao ter de entrar em acordo com ela,
nos temas submetidos a harmonização. Estados e Municípios, sozinhos,
poderão apenas determinar suas alíquotas-padrão e fiscalizar e lançar o
IBS, mas, neste caso, sempre dentro das diretrizes do CG.
Em âmbito infraconstitucional, os PLPsacentuam o risco de centralização, pois, ao preverem estrutura idêntica, evidenciaram a unicidade de fato
do IBS/CBS. É dizer: não serão dois, mas um único tributo, cuja
dualidade operará não na competência (legislativa), mas na destinação
dos recursos e em frações da capacidade de administrar o tributo.
Além
disso, apesar de a representação paritária dos Estados e
Municípiossugerir certa independênciado CG, o âmbito para atuação
autônoma do órgão será estreito, pois todos os temas comuns ao IBS e CBS dependerão de atos conjuntos com a União. Assim, ele só agirá sozinho em relação a temas procedimentais secundários.
Essa
harmonização ocorrerá, conforme a matéria (infralegal/administrativa
e/ou jurídica), nos chamados Comitê das Administrações Tributárias e
Fórum das Procuradorias. Ainda que a União e o CG tenham 50% dos votos
cada, não haverá verdadeiro equilíbrio de forças. Afinal, o interesse da
União tende a ser linear, enquanto os dos representantes do CG não o
serão, pois terá de haver representação satisfatória dos Estados do
Centro-Sul e do Norte/Nordeste, bem como dos grandes e pequenos
Municípios. Assim, a União será um bloco monolítico (50%), enquanto o CG
se apresentará como um conjunto de até quatro sub-blocos (12,5%) com
interesses conflitantes. Logo, bastará à União cooptar um desses blocos
para exercer liderança e fazer-se prevalecer nas discussões, como ela já
faz outras esferas. Para piorar, os PLPs sequer preveem o tipo de
maioria a ser observada nessas votações, o que ficou para um futuro
regimento, apesar do seu impacto sobre a Federação.
Portanto,
a prevalecerem os PLPs, a estruturação do sistema previsto na EC pode
reduzir perigosamente a autonomia dos Estados e Municípios, a ponto de
redefinir, para pior, a qualidade da Federação
brasileira (retrocesso), seja porque eles perderiam o poder que hoje
possuem, seja, ainda, porque serão duplamente inferiorizados, ao ficar
abaixo de um CG central, que, por sua vez, pouco decidirá sem o amém da
União.
Nesse cenário, embora ainda não se possa afirmar que a seja inconstitucional, pode ocorrer um processo de inconstitucionalização
da reforma tributária, caso ela reduza (ao invés de manter ou aumentar)
a capacidade dos Estados e Municípios de custear suas atividades e
serviços sem dependerem da União, o que exigiria a rediscussão do
modelo, com os custos daí decorrentes para o País.
Hamilton Dias de Souza é
sócio fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados e
Advocacia Dias de Souza, mestre e especialista em Direito Tributário
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Humberto Ávila é fundador do escritório Humberto Ávila Advocacia e professor-titular de Direito Tributário na Faculdade de Direito da USP.
Ives Gandra da Silva Martins é
professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU,
do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do
Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal
Regional Federal – 1ª Região, professor honorário das Universidades
Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis
(Romênia), doutor honoris causa das Universidades de Craiova
(Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho
(Portugal), presidente do Conselho Superior de Direito da Fecom
ercio-SP, ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do
Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).
Roque Antônio Carrazza é
fundador do escritório Roque Carrazza Advogados Associados e
professor-titular de Direito Tributário da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
[1] SOUZA, Hamilton D.; ÁVILA, Humberto B.; e CARRAZZA, Roque A. A reforma tributária que o Basil precisa, parte 1. CONJUR, 08/11/2019.
[2] Vide dados do Tesouro Nacional citados no parecer de admissibilidade da PEC 45/2019 apresentado pelo Dep. Fed. João Roma à CCJ/CD.
[3] Vide, p. ex., Substitutivo do Deputado Aguinaldo Ribeiro à PEC 45/2019, na Câmara dos Deputados (fase I).
[4] SILVA MARTINS, Ives G.; SOUZA, Hamilton D.; ÁVILA, Humberto; e CARRAZZA, Roque. Considerações necessárias sobre a reforma tributária. Portal Tributário, 03/07/2023.
[5] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 1997.
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