Era início da década de 1970 quando uma jovem advogada saiu do Rio de
Janeiro rumo a Brasília para participar de um julgamento no Supremo
Tribunal Federal (STF).
Trajando roupa social, composta por blazer e calça comprida, a mulher
vinha desempenhar um papel de destaque na sessão que participaria. No
plenário da Corte faria uma sustentação oral, isto é, quando advogados
falam diante dos ministros para defender réus daquele processo. Mas o
julgamento teve início antes mesmo dela entrar no plenário da Suprema
Corte brasileira: a advogada teria sido barrada pelos seguranças por
estar usando calças e não vestidos ou saias, que eram as vestimentas
consideradas adequadas para mulheres que frequentavam o STF naquela
época. Alguns funcionários mais antigos dizem que a mulher chegou a
tirar as calças e entrar só de blazer e calcinha. Outros dizem que a
afronta não atingiu tamanha proporção. A história foi virando uma lenda
e, mesmo sem comprovações oficiais do episódio, pode ser ouvida nos
corredores e gabinetes do Supremo.
Lenda ou não, nos anos que se seguiram ao suposto episódio até os
dias atuais, o STF acumulou diversas outras situações de mulheres que
foram impedidas de entrar por não estarem vestidas “de forma adequada”. A
instituição não foi a única, nem o Judiciário o único poder da
República, que manteve a exigência de vestidos e saias para mulheres em
suas dependências mesmo após décadas de aceitação da sociedade
brasileira ao uso de calças compridas femininas.
O cenário só começou a mudar em 1997. Ao menos no papel.
Naquele ano, o então presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães,
autorizou que mulheres utilizassem calças compridas no plenário, salas
de comissões e outros locais de circulação da Casa.
Eleita senadora pelo PT (Partido dos Trabalhadores) no ano seguinte,
em 1998, Heloísa Helena foi uma das primeiras parlamentares a colocar em
prática a medida e tornar habitual o uso de calças femininas: “antes
tarde do que nunca”, respondeu ao ser indagada pela Agência Pública sobre
o assunto. A ex-parlamentar lembra que 20 anos antes, em 1978, quando
uma mulher assumiu pela primeira vez uma cadeira no Senado, sequer
existia banheiro feminino no plenário, construído somente em 2016.
Na esteira do que acontecia no Legislativo, no Supremo, os anseios
pela liberação do uso de calças para mulheres já não se ancoravam apenas
em longínquas histórias ou lendas sobre as vestimentas femininas no
local, mas na realidade das servidoras da Corte, que decidiram se unir
no início do ano 2000 para pleitear a autorização da vestimenta. Um
ofício assinado por 63 servidoras foi enviado ao gabinete do então
presidente do Tribunal, ministro Carlos Velloso.
Uma familiar de uma servidora da época, uma advogada – que preferiu
não se identificar – contou que, curiosamente, naquele momento foi
constatado que não havia de fato uma norma que proibisse mulheres de
usar calças. “Uma regra oculta, não sei. Ninguém sabia explicar, mas o
regramento oficial só previa normas sobre roupas masculinas”, disse a
advogada. Ela relatou ainda que há poucos anos, quando ainda era
estudante de Direito, foi barrada em uma visita ao Superior Tribunal de
Justiça (STJ) por estar usando “calça muito justa, que parecia legging”.
Segundo ela, a análise da roupa foi feita por um segurança que passava
no segundo andar do prédio onde acontecem os julgamentos.
A mobilização das servidoras ganhou força e foi endossada pelo
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No processo, as
trabalhadoras do Tribunal alegavam que a limitação do vestuário
representava um “cerceamento do direito à liberdade das mulheres”,
garantido pelo ordenamento jurídico e pela Constituição Federal. A OAB
falava em “postura discriminatória”.
O Ministério Público Federal (MPF), por outro lado, se manifestou
contra a liberação do uso de calças para mulheres. Ronaldo Bomfim dos
Santos, subprocurador-geral que atuou no caso, defendeu que as roupas
“distinguiam os personagens” e que a saia estava para a mulher assim
como o terno e gravata estavam para o homem, a toga para o juiz, a
batina para o padre e o uniforme para o militar. Em sua manifestação, o
subprocurador recorreu ainda a dogmas religiosos cristãos para defender a
permanência da obrigatoriedade de saias e vestidos: “Se Deus não fez o
homem e mulher iguais é porque não quer que os sejam iguais”.
Mas o apelo das servidoras foi atendido, por maioria de votos. Assim,
três anos após o Senado, em 2000, o STF autorizou que mulheres usassem
calças compridas, além dos vestidos ou saias, mas não sem o uso
obrigatório de blazer compondo o ‘dress code’.
A decisão foi tomada em uma sessão administrativa, ocorrida em 3 de
maio de 2000, onde só ministros homens votaram. Isso porque, até aquele
momento, em mais de um século de existência, nenhuma mulher tinha
ocupado uma cadeira de ministra do Supremo – o que mudou meses depois,
no final do mesmo ano 2000, quando Ellen Gracie foi empossada ministra.
No meio jurídico, quando a Suprema Corte do Judiciário toma uma
decisão, diz que se abre um precedente para que os demais tribunais do
país sigam a mesma linha. Nesse caso, porém, isso não ocorreu. O
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pioneiro no tema, já não impunha que
mulheres usassem só vestidos e saias. No Tribunal Superior do Trabalho
(TST) e no STJ a autorização ocorreu depois, mas o assunto ainda rende
discussões e, de tempos em tempos, mudanças nas normas sobre
vestimentas.
No STJ, a mudança mais recente no código de vestimentas foi aprovada
em fevereiro deste ano e gerou muita polêmica. Entre as peças proibidas
estavam calças justas tipo legging, blusas sem manga e cropped (peça que
deixa parte da barriga à mostra). A nova regra não durou muito. Dois
meses depois, em abril, foi suspensa pelo corregedor nacional de
Justiça, Luís Felipe Salomão, que também é ministro no STJ. Salomão
alegou que as exigências poderiam constranger o público feminino.
Direito adquirido não foi direito garantido
Seis anos após o STF permitir que mulheres usassem calças compridas,
além de vestidos e saias, trabalhadoras, jornalistas e até visitantes
que chegavam ao local continuavam sendo barradas. Ex-assessoras e
jornalistas que estavam frequentemente na Corte contaram à Pública que as regras, por vezes, eram subjetivas e determinadas pela segurança ou cerimonial.
Em 2006, já senadora pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), a
mesma Heloísa Helena, citada no início da reportagem, causou desconforto
no Supremo. Conhecida por usar calças jeans e camiseta no plenário do
Senado, ela foi ao STF acompanhar o julgamento de uma ação proposta pelo
seu partido. Vestindo seu “look” trivial de sempre, a parlamentar só
não foi barrada por recomendação da ministra Ellen Gracie. Ao ser
questionada por jornalistas, a senadora disse aos jornalistas que não
sabia da regra sobre as roupas.
O episódio foi noticiado pela imprensa e
efervescia outra vez a discussão sobre a patrulha das vestimentas de
mulheres, que começaram a levar reclamações para ministros, em conversas
informais. Meses após o episódio do jeans, a tradição foi quebrada.
Menos de um ano após sua posse como ministra do STF, ocorrida em 21
de junho de 2006, Cármen Lúcia – a segunda mulher a ocupar uma cadeira
no Tribunal – decidiu colocar em prática a regra deliberada sete anos
antes. A ministra tinha ouvido queixas de mulheres que davam expediente
na Corte e as reclamações iam desde tamanho de vestido ou saia até a cor
da roupa.
Segundo contou à Pública, em 14 de março de 2007 ela
estava “determinada a quebrar com o protocolo arcaico e obsoleto”.
Cármen avisou aos pares que no dia seguinte iria para o trabalho de
calças compridas. E assim o fez. O anúncio atraiu olhares e deixou a
imprensa preparada para os registros. A ministra chegou ao plenário
usando um terninho preto e foi a primeira vez que uma mulher ministra
participou da sessão e votou usando calças compridas.
Uma jovem advogada – com seus trinta e poucos anos – que assistia a
sessão e testemunhou tudo, descreveu o momento como “um dia de muita
emoção” e disse que algumas mulheres que lá estavam tiveram vontade de
aplaudir Cármen Lúcia: “Com muita alegria eu estava lá quando a primeira
mulher entrou vestindo uma calça comprida. Ela não foi a primeira
ministra da Suprema Corte, mas foi a que fez a diferença. É sempre
importante a gente tentar fazer a diferença nos espaços que atua.
Naquele dia, a ministra Cármen Lúcia liberou as mulheres do Brasil todo
para se vestirem de forma digna, mas de calça. Uma coisa que chegou com
100 anos de atraso”.
O gesto da ministra Cármen Lúcia entrou para a história e ilustrou
capas de jornais. Mas, na prática, a ruptura com o antigo código de
vestimenta foi sendo conquistada aos poucos, ao longo dos anos. A mesma
advogada que foi espectadora daquele momento foi proibida, tempos
depois, de entrar no plenário pois a manga curta do blazer deixava à
mostra quatro centímetros do seu punho: “Fui barrada uma vez no plenário
do Supremo porque minha calça era um pouco curta e aparecia o
calcanhar, e meu blazer era curto e aparecia meu punho. E o segurança
mediu e disse que aparecia mais de 4 centímetros do meu punho e eu não
poderia entrar no Tribunal. Tentei alegar que estava na moda, que a
então presidente Dilma Rousseff usava um modelo parecido, mas não
adiantou. Tive que trocar de roupa com minha estagiária porque eu ia
fazer uma sustentação oral e não poderia faltar”.
Tentar fazer a diferença, no menor espaço que seja, foi o lema que
conduziu a advogada Daniela em sua trajetória profissional até 2023,
quando chegou a vez dela ser protagonista da história. Passados 16 anos,
o blazer e a calça, milimetricamente medidos, foram substituídos pela
toga e Daniela Teixeira passou a ser ministra do Superior Tribunal de
Justiça.
Congresso não estava preparado para receber mulheres
O fato de o Judiciário ter sido, de todos os três Poderes, aquele que
mais demorou para romper com a rigidez e exigências sobre o dress code
feminino, não deu às mulheres eleitas no Legislativo uma vida mais
fácil.
Benedita da Silva (PT-RJ) conta que quando chegou na Câmara para seu
primeiro mandato, como deputada Constituinte, não havia banheiros
femininos. “A primeira dificuldade que nós encontramos foi no plenário
da Câmara, que não tinha banheiro feminino. Isso era muito sério”.
O plenário da Câmara ganhou seu primeiro banheiro feminino somente em
1987, ou seja, 27 anos depois de sua inauguração. “Mas nós também
tivemos dificuldade de ter a residência funcional, porque muitos
deputados que não eram reeleitos já passavam o apartamento para outros
homens recém eleitos. Eu, por exemplo, levei um tempo para conseguir”,
afirmou Benedita.
Ela ressalta que a presença de mais mulheres, sobretudo mulheres
negras, foi mudando o cenário com o tempo e trouxe uma diversidade
positiva para o Congresso. “Eu sempre procurei ter uma boa vestimenta,
mas tudo era dentro das minhas condições financeiras. Hoje nós temos
mais mulheres negras que se vestem igual a mim na Câmara. E [a mudança]
vai do cabelo até o modo de se vestir, de andar e falar, porque temos
diversidade”.
Ainda assim, a deputada que já está em seu sexto mandato conta que
presenciou situações recentes em que colegas parlamentares foram
barradas por não estarem “se vestindo adequadamente”. “Vi mais situações
fora, de nós irmos para o Supremo, e dizerem que mulher de calça e sem
blazer não podia entrar. Eu vi uma cena com a Jandira Feghali [deputada
federal pelo PCdoB do Rio] sendo barrada por estar sem blazer. Ela disse
para o segurança que nunca tinha usado isso na vida, que nunca gostou, e
a gente teve que fazer uma ‘guerrinha’ lá para conseguir entrar”.
Da construção do primeiro banheiro feminino à aceitação de calças
• 1987: deputadas pressionam e conquistam a construção de um
banheiro feminino no plenário e flexibilização nas regras de
vestimentas;
• 1997: Senado passa a aceitar que mulheres usem calças no plenário e outros espaços da Casa;
• 2000: após processo movido por servidoras do STF, o Tribunal
também passa a aceitar o uso de calças compridas para mulheres, mas com a
obrigatoriedade do uso de blazer;
• 2007: ministra Cármen Lúcia usa calças em sessão, tornando-se a primeira mulher da Corte a usar a vestimenta no plenário;
• 2016: Sob a pressão de mulheres parlamentares, Senado instala o primeiro banheiro feminino em seu plenário.
Ministras do TSE: “patrulha maior com mulheres negras”
Edilene Lôbo e Vera Lúcia, ministras do TSE, alertam que a “patrulha
da moda” atua de forma ainda mais rigorosa com mulheres negras. As duas
foram as primeiras mulheres negras a assumir uma cadeira de ministra na
Corte Eleitoral.
“Já me pararam na entrada do TJDFT [Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e Territórios], onde eu ia sempre, seja para checar a roupa,
pelo jeito que estava o meu cabelo. Os seguranças me conheciam, mas não
me viam como advogada”, contou à Pública a ministra Vera.
A ministra Edilene levanta a questão de que as regras rígidas sobre
vestuário dificultam não somente o acesso das mulheres aos espaços de
poder, como também da população mais pobre.
A dificuldade citada pela ministra se revela em dados registrados por
órgãos oficiais, que mostram a desigualdade e sub-representação. Em
cargos eletivos, seja no Legislativo ou Executivo, dados do TSE mostram
que de presidente da República a vereador, nenhum cargo atinge uma
porcentagem equilibrada de homens e mulheres entre os ocupantes. O que
mais se equilibra é o de segundo suplente de senador, com 44% de
mulheres.
No Judiciário a situação se repete. A última pesquisa realizada pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o perfil sociodemográfico dos
magistrados brasileiros, em 2018, mostrou que em nenhum dos cargos do
Poder Judiciário a quantidade de mulheres atingiu a porcentagem de 50%. O
maior equilíbrio ocorre entre juízes substitutos, primeiro cargo da
carreira, com 44% de mulheres no posto. À medida que a carreira evolui, a
quantidade de mulheres diminui consideravelmente. Atualmente, a
instância mais alta da Justiça brasileira, o STF, possui 11 ministros,
sendo 10 homens e apenas uma mulher.
O presidente Lula foi bastante cobrado nas duas últimas oportunidades
que teve de indicar novos membros para a Corte – quando Ricardo
Lewandowski e Rosa Weber se aposentaram. Movimentos sociais, diversas
entidades, organizações da sociedade civil e até parte da base
governista reivindicaram a indicação de mulheres, sobretudo de uma
mulher negra – fato que seria inédito no Supremo. No entanto, Lula
acabou optando por indicar homens para as duas vagas.
No último 8 de março, dia Internacional da Mulher, a ministra Cármen
Lúcia foi categórica ao afirmar no plenário do Supremo que a
possibilidade de construção conjunta muitas vezes foi negada às
mulheres. A magistrada conclui com uma frase forte, em referência a
diversas violências que a mulher ainda sofre na sociedade: “Dizem que
fomos silenciosas historicamente. Mentira! Nós fomos silenciadas, mas
sempre continuamos falando, embora muitas vezes não sendo ouvidas”.
Era início da década de 1970 quando uma jovem advogada saiu do Rio de
Janeiro rumo a Brasília para participar de um julgamento no Supremo
Tribunal Federal (STF).
Trajando roupa social, composta por blazer e calça comprida, a mulher
vinha desempenhar um papel de destaque na sessão que participaria. No
plenário da Corte faria uma sustentação oral, isto é, quando advogados
falam diante dos ministros para defender réus daquele processo. Mas o
julgamento teve início antes mesmo dela entrar no plenário da Suprema
Corte brasileira: a advogada teria sido barrada pelos seguranças por
estar usando calças e não vestidos ou saias, que eram as vestimentas
consideradas adequadas para mulheres que frequentavam o STF naquela
época. Alguns funcionários mais antigos dizem que a mulher chegou a
tirar as calças e entrar só de blazer e calcinha. Outros dizem que a
afronta não atingiu tamanha proporção. A história foi virando uma lenda
e, mesmo sem comprovações oficiais do episódio, pode ser ouvida nos
corredores e gabinetes do Supremo.
Lenda ou não, nos anos que se seguiram ao suposto episódio até os
dias atuais, o STF acumulou diversas outras situações de mulheres que
foram impedidas de entrar por não estarem vestidas “de forma adequada”. A
instituição não foi a única, nem o Judiciário o único poder da
República, que manteve a exigência de vestidos e saias para mulheres em
suas dependências mesmo após décadas de aceitação da sociedade
brasileira ao uso de calças compridas femininas.
O cenário só começou a mudar em 1997. Ao menos no papel.
Naquele ano, o então presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães,
autorizou que mulheres utilizassem calças compridas no plenário, salas
de comissões e outros locais de circulação da Casa.
Eleita senadora pelo PT (Partido dos Trabalhadores) no ano seguinte,
em 1998, Heloísa Helena foi uma das primeiras parlamentares a colocar em
prática a medida e tornar habitual o uso de calças femininas: “antes
tarde do que nunca”, respondeu ao ser indagada pela Agência Pública sobre
o assunto. A ex-parlamentar lembra que 20 anos antes, em 1978, quando
uma mulher assumiu pela primeira vez uma cadeira no Senado, sequer
existia banheiro feminino no plenário, construído somente em 2016.
Na esteira do que acontecia no Legislativo, no Supremo, os anseios
pela liberação do uso de calças para mulheres já não se ancoravam apenas
em longínquas histórias ou lendas sobre as vestimentas femininas no
local, mas na realidade das servidoras da Corte, que decidiram se unir
no início do ano 2000 para pleitear a autorização da vestimenta. Um
ofício assinado por 63 servidoras foi enviado ao gabinete do então
presidente do Tribunal, ministro Carlos Velloso.
Uma familiar de uma servidora da época, uma advogada – que preferiu
não se identificar – contou que, curiosamente, naquele momento foi
constatado que não havia de fato uma norma que proibisse mulheres de
usar calças. “Uma regra oculta, não sei. Ninguém sabia explicar, mas o
regramento oficial só previa normas sobre roupas masculinas”, disse a
advogada. Ela relatou ainda que há poucos anos, quando ainda era
estudante de Direito, foi barrada em uma visita ao Superior Tribunal de
Justiça (STJ) por estar usando “calça muito justa, que parecia legging”.
Segundo ela, a análise da roupa foi feita por um segurança que passava
no segundo andar do prédio onde acontecem os julgamentos.
A mobilização das servidoras ganhou força e foi endossada pelo
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). No processo, as
trabalhadoras do Tribunal alegavam que a limitação do vestuário
representava um “cerceamento do direito à liberdade das mulheres”,
garantido pelo ordenamento jurídico e pela Constituição Federal. A OAB
falava em “postura discriminatória”.
O Ministério Público Federal (MPF), por outro lado, se manifestou
contra a liberação do uso de calças para mulheres. Ronaldo Bomfim dos
Santos, subprocurador-geral que atuou no caso, defendeu que as roupas
“distinguiam os personagens” e que a saia estava para a mulher assim
como o terno e gravata estavam para o homem, a toga para o juiz, a
batina para o padre e o uniforme para o militar. Em sua manifestação, o
subprocurador recorreu ainda a dogmas religiosos cristãos para defender a
permanência da obrigatoriedade de saias e vestidos: “Se Deus não fez o
homem e mulher iguais é porque não quer que os sejam iguais”.
Mas o apelo das servidoras foi atendido, por maioria de votos. Assim,
três anos após o Senado, em 2000, o STF autorizou que mulheres usassem
calças compridas, além dos vestidos ou saias, mas não sem o uso
obrigatório de blazer compondo o ‘dress code’.
A decisão foi tomada em uma sessão administrativa, ocorrida em 3 de
maio de 2000, onde só ministros homens votaram. Isso porque, até aquele
momento, em mais de um século de existência, nenhuma mulher tinha
ocupado uma cadeira de ministra do Supremo – o que mudou meses depois,
no final do mesmo ano 2000, quando Ellen Gracie foi empossada ministra.
No meio jurídico, quando a Suprema Corte do Judiciário toma uma
decisão, diz que se abre um precedente para que os demais tribunais do
país sigam a mesma linha. Nesse caso, porém, isso não ocorreu. O
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pioneiro no tema, já não impunha que
mulheres usassem só vestidos e saias. No Tribunal Superior do Trabalho
(TST) e no STJ a autorização ocorreu depois, mas o assunto ainda rende
discussões e, de tempos em tempos, mudanças nas normas sobre
vestimentas.
No STJ, a mudança mais recente no código de vestimentas foi aprovada
em fevereiro deste ano e gerou muita polêmica. Entre as peças proibidas
estavam calças justas tipo legging, blusas sem manga e cropped (peça que
deixa parte da barriga à mostra). A nova regra não durou muito. Dois
meses depois, em abril, foi suspensa pelo corregedor nacional de
Justiça, Luís Felipe Salomão, que também é ministro no STJ. Salomão
alegou que as exigências poderiam constranger o público feminino.
Direito adquirido não foi direito garantido
Seis anos após o STF permitir que mulheres usassem calças compridas,
além de vestidos e saias, trabalhadoras, jornalistas e até visitantes
que chegavam ao local continuavam sendo barradas. Ex-assessoras e
jornalistas que estavam frequentemente na Corte contaram à Pública que as regras, por vezes, eram subjetivas e determinadas pela segurança ou cerimonial.
Em 2006, já senadora pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), a
mesma Heloísa Helena, citada no início da reportagem, causou desconforto
no Supremo. Conhecida por usar calças jeans e camiseta no plenário do
Senado, ela foi ao STF acompanhar o julgamento de uma ação proposta pelo
seu partido. Vestindo seu “look” trivial de sempre, a parlamentar só
não foi barrada por recomendação da ministra Ellen Gracie. Ao ser
questionada por jornalistas, a senadora disse aos jornalistas que não
sabia da regra sobre as roupas.
O episódio foi noticiado pela imprensa e
efervescia outra vez a discussão sobre a patrulha das vestimentas de
mulheres, que começaram a levar reclamações para ministros, em conversas
informais. Meses após o episódio do jeans, a tradição foi quebrada.
Menos de um ano após sua posse como ministra do STF, ocorrida em 21
de junho de 2006, Cármen Lúcia – a segunda mulher a ocupar uma cadeira
no Tribunal – decidiu colocar em prática a regra deliberada sete anos
antes. A ministra tinha ouvido queixas de mulheres que davam expediente
na Corte e as reclamações iam desde tamanho de vestido ou saia até a cor
da roupa.
Segundo contou à Pública, em 14 de março de 2007 ela
estava “determinada a quebrar com o protocolo arcaico e obsoleto”.
Cármen avisou aos pares que no dia seguinte iria para o trabalho de
calças compridas. E assim o fez. O anúncio atraiu olhares e deixou a
imprensa preparada para os registros. A ministra chegou ao plenário
usando um terninho preto e foi a primeira vez que uma mulher ministra
participou da sessão e votou usando calças compridas.
Uma jovem advogada – com seus trinta e poucos anos – que assistia a
sessão e testemunhou tudo, descreveu o momento como “um dia de muita
emoção” e disse que algumas mulheres que lá estavam tiveram vontade de
aplaudir Cármen Lúcia: “Com muita alegria eu estava lá quando a primeira
mulher entrou vestindo uma calça comprida. Ela não foi a primeira
ministra da Suprema Corte, mas foi a que fez a diferença. É sempre
importante a gente tentar fazer a diferença nos espaços que atua.
Naquele dia, a ministra Cármen Lúcia liberou as mulheres do Brasil todo
para se vestirem de forma digna, mas de calça. Uma coisa que chegou com
100 anos de atraso”.
O gesto da ministra Cármen Lúcia entrou para a história e ilustrou
capas de jornais. Mas, na prática, a ruptura com o antigo código de
vestimenta foi sendo conquistada aos poucos, ao longo dos anos. A mesma
advogada que foi espectadora daquele momento foi proibida, tempos
depois, de entrar no plenário pois a manga curta do blazer deixava à
mostra quatro centímetros do seu punho: “Fui barrada uma vez no plenário
do Supremo porque minha calça era um pouco curta e aparecia o
calcanhar, e meu blazer era curto e aparecia meu punho. E o segurança
mediu e disse que aparecia mais de 4 centímetros do meu punho e eu não
poderia entrar no Tribunal. Tentei alegar que estava na moda, que a
então presidente Dilma Rousseff usava um modelo parecido, mas não
adiantou. Tive que trocar de roupa com minha estagiária porque eu ia
fazer uma sustentação oral e não poderia faltar”.
Tentar fazer a diferença, no menor espaço que seja, foi o lema que
conduziu a advogada Daniela em sua trajetória profissional até 2023,
quando chegou a vez dela ser protagonista da história. Passados 16 anos,
o blazer e a calça, milimetricamente medidos, foram substituídos pela
toga e Daniela Teixeira passou a ser ministra do Superior Tribunal de
Justiça.
Congresso não estava preparado para receber mulheres
O fato de o Judiciário ter sido, de todos os três Poderes, aquele que
mais demorou para romper com a rigidez e exigências sobre o dress code
feminino, não deu às mulheres eleitas no Legislativo uma vida mais
fácil.
Benedita da Silva (PT-RJ) conta que quando chegou na Câmara para seu
primeiro mandato, como deputada Constituinte, não havia banheiros
femininos. “A primeira dificuldade que nós encontramos foi no plenário
da Câmara, que não tinha banheiro feminino. Isso era muito sério”.
O plenário da Câmara ganhou seu primeiro banheiro feminino somente em
1987, ou seja, 27 anos depois de sua inauguração. “Mas nós também
tivemos dificuldade de ter a residência funcional, porque muitos
deputados que não eram reeleitos já passavam o apartamento para outros
homens recém eleitos. Eu, por exemplo, levei um tempo para conseguir”,
afirmou Benedita.
Ela ressalta que a presença de mais mulheres, sobretudo mulheres
negras, foi mudando o cenário com o tempo e trouxe uma diversidade
positiva para o Congresso. “Eu sempre procurei ter uma boa vestimenta,
mas tudo era dentro das minhas condições financeiras. Hoje nós temos
mais mulheres negras que se vestem igual a mim na Câmara. E [a mudança]
vai do cabelo até o modo de se vestir, de andar e falar, porque temos
diversidade”.
Ainda assim, a deputada que já está em seu sexto mandato conta que
presenciou situações recentes em que colegas parlamentares foram
barradas por não estarem “se vestindo adequadamente”. “Vi mais situações
fora, de nós irmos para o Supremo, e dizerem que mulher de calça e sem
blazer não podia entrar. Eu vi uma cena com a Jandira Feghali [deputada
federal pelo PCdoB do Rio] sendo barrada por estar sem blazer. Ela disse
para o segurança que nunca tinha usado isso na vida, que nunca gostou, e
a gente teve que fazer uma ‘guerrinha’ lá para conseguir entrar”.
Da construção do primeiro banheiro feminino à aceitação de calças
• 1987: deputadas pressionam e conquistam a construção de um
banheiro feminino no plenário e flexibilização nas regras de
vestimentas;
• 1997: Senado passa a aceitar que mulheres usem calças no plenário e outros espaços da Casa;
• 2000: após processo movido por servidoras do STF, o Tribunal
também passa a aceitar o uso de calças compridas para mulheres, mas com a
obrigatoriedade do uso de blazer;
• 2007: ministra Cármen Lúcia usa calças em sessão, tornando-se a primeira mulher da Corte a usar a vestimenta no plenário;
• 2016: Sob a pressão de mulheres parlamentares, Senado instala o primeiro banheiro feminino em seu plenário.
Ministras do TSE: “patrulha maior com mulheres negras”
Edilene Lôbo e Vera Lúcia, ministras do TSE, alertam que a “patrulha
da moda” atua de forma ainda mais rigorosa com mulheres negras. As duas
foram as primeiras mulheres negras a assumir uma cadeira de ministra na
Corte Eleitoral.
“Já me pararam na entrada do TJDFT [Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e Territórios], onde eu ia sempre, seja para checar a roupa,
pelo jeito que estava o meu cabelo. Os seguranças me conheciam, mas não
me viam como advogada”, contou à Pública a ministra Vera.
A ministra Edilene levanta a questão de que as regras rígidas sobre
vestuário dificultam não somente o acesso das mulheres aos espaços de
poder, como também da população mais pobre.
A dificuldade citada pela ministra se revela em dados registrados por
órgãos oficiais, que mostram a desigualdade e sub-representação. Em
cargos eletivos, seja no Legislativo ou Executivo, dados do TSE mostram
que de presidente da República a vereador, nenhum cargo atinge uma
porcentagem equilibrada de homens e mulheres entre os ocupantes. O que
mais se equilibra é o de segundo suplente de senador, com 44% de
mulheres.
No Judiciário a situação se repete. A última pesquisa realizada pelo
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre o perfil sociodemográfico dos
magistrados brasileiros, em 2018, mostrou que em nenhum dos cargos do
Poder Judiciário a quantidade de mulheres atingiu a porcentagem de 50%. O
maior equilíbrio ocorre entre juízes substitutos, primeiro cargo da
carreira, com 44% de mulheres no posto. À medida que a carreira evolui, a
quantidade de mulheres diminui consideravelmente. Atualmente, a
instância mais alta da Justiça brasileira, o STF, possui 11 ministros,
sendo 10 homens e apenas uma mulher.
O presidente Lula foi bastante cobrado nas duas últimas oportunidades
que teve de indicar novos membros para a Corte – quando Ricardo
Lewandowski e Rosa Weber se aposentaram. Movimentos sociais, diversas
entidades, organizações da sociedade civil e até parte da base
governista reivindicaram a indicação de mulheres, sobretudo de uma
mulher negra – fato que seria inédito no Supremo. No entanto, Lula
acabou optando por indicar homens para as duas vagas.
No último 8 de março, dia Internacional da Mulher, a ministra Cármen
Lúcia foi categórica ao afirmar no plenário do Supremo que a
possibilidade de construção conjunta muitas vezes foi negada às
mulheres. A magistrada conclui com uma frase forte, em referência a
diversas violências que a mulher ainda sofre na sociedade: “Dizem que
fomos silenciosas historicamente. Mentira! Nós fomos silenciadas, mas
sempre continuamos falando, embora muitas vezes não sendo ouvidas”.
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