Álbum de família
Por
Paulo Polzonoff Jr.
A imagem de Lula apontando para o próprio umbigo é uma tradução
até poética da vulgaridade do petismo.| Foto: Reprodução/ Twitter
Dois
neurônios desencapados causaram um curto-circuito por aqui e, quando
dei por mim, tinha sido transportado para a Umuarama do começo da década
de 1990. Anos Collor. Ou talvez o presidente já fosse o Itamar. Família
toda reunida. Churrasco. Os tios já meio cozidos. A louça empilhada na
pia, à espera de quem a lavasse. E eis que alguém – um primo e o único
universitário da mesa – sabe-se lá por que resolve falar de política.
Todos prestavam atenção ao que o Aluno do Ensino Superior (!) dizia. Mas será que ele estava falando mesmo aquilo?! O escândalo, veja só, não era o primo se declarar petista. Isso estava fora de cogitação! O escândalo era ele ponderar a possibilidade de talvez quem sabe um dia votar em Lula. “Por que não? Vai que muda alguma coisa…”, perguntou. E era como se ele confessasse práticas sexuais naquela época inconfessáveis.
Lembro bem. Minha avó quase teve um treco. As tias todas balançaram a cabeça em sinal de reprovação. A mãe dele não sabia onde enfiar a cara. O pai, depois de algumas muitas cervejas, prometeu deserdá-lo da herança inexistente. “Não criei filho para ser vagabundo!”, disse. Ou pelo menos é assim a memória lembra. Enquanto nós, os primos, tirávamos sarro do rebelde patético.
Pensei nisso depois de preencher o termo de não-aceite (termo horrível!) da taxa assistencial do glorioso sindicato do qual sou obrigado a fazer parte. Todo ano a mesma palhaçada! E aí você sabe como é essa coisa de pensar, né? Não sabe?! Te explico. Uma coisa leva a outra: você está preenchendo o documento, pensa que a chateação é melhor do que dar dinheiro para comunista, se dá conta de que provavelmente não é benquisto pelos membros dessa nobre instituição, se lembra dos amigos de faculdade de jornalismo, é transportado de volta ao centro acadêmico… Aí, do nada, quando você até já decidiu dar o expediente por encerrado, o pensamento tropeça na memória, te derruba no chão e, quando você percebe, a crônica já está no quarto parágrafo.
O fato é que, por muito tempo, se declarar de esquerda, e quanto mais petista (comunista nem sem fala!), não era socialmente aceito entre as famílias de bem. Petismo/comunismo era coisa de – com o perdão da palavra – vagabundo. Só os marginais votavam em Lula e no Brizola. Só os maconheiros falavam em igualdade, pô, mó legal aê. E, depois de 1991, só os loucos e fanáticos ousavam ostentar qualquer coisa que remetesse ao comunismo. Mesmo na faculdade de jornalismo da minha desnaturada alma mater, a UFPR, todo aquele papo de “Fora FHC!” era ridicularizado por nós, estudantes. Lula era uma figura patética e os professores mais radicais eram vistos com a zombaria devida.
Eu tenho um sonho
Isso mudou em 2002. Na minha família mesmo,
aquela descrita lá em cima, as tias e tios escandalizados passaram a
exibir orgulhosamente a estrelona vermelha. Dos primos, provavelmente só
eu ainda resistia à sedução das massas hipnotizadas pelo discurso
populista – e cafona – do PT. Naquele ano, se duvidar até minha avó
votou no Lula. Mais do que tolerável, infelizmente se tornou até
admirável se declarar petista.
Mas não comunista. Tanto que, durante muitos anos ainda, organizações comunistas como o Foro de São Paulo eram tratadas como conspiração e paranoia. O Partido Comunista era uma relíquia caricata. Até o fim da primeira década do século XXI, chamar alguém de comunista era visto como um exagero. Imaginar que alguém pudesse querer instalar uma ditadura de esquerda no Brasil era delírio. Supor que um dia jornalistas apoiassem a censura de colegas era caso de hospício. E por aí vai.
Não preciso nem falar que hoje em dia se dizer petista e comunista é a coisa mais comum do mundo. Não preciso, mas falo mesmo assim: hoje em dia ser dizer petista e comunista é a coisa mais comum do mundo. Repetir slogans rançosos é aceitável. Defender ideias que já se provaram fracassadas é digno de aplausos. Contestar verdades históricas não rende mais o xingamento de “revisionista” – ou simplesmente “burro!”. Até sonhar com um paredónzinho deixou de ser considerado imoral, coisa de psicopata.
E agora vou encerrar a crônica subindo num caixote para, emulando as palavras do grande Martin Luther King, dizer que tenho um sonho: o de uma sociedade onde se declarar petista e comunista volte a ser motivo de escárnio, gargalhada e preocupação de mãe. Mas tem que ser algo natural. Orgânico, como se diz. Sem Lei Anticomunismo, sem que o Estado proíba a estupidez.
Sonho com um país onde se dizer leitor de Marx , usar boné do MST ou andar por aí com a carona feia de Lula estampada na camiseta volte a ser considerado coisa de jeca-mais-jeca-que-o-jeca-tatu. Sonho, por fim, em conviver com amigos que, ao avistarem o conhecido comunistinha, sussurrem: “Xi, lá vem aquele chato comunistinha. Tomara que não venha se sentar aqui. Disfarça! Disfarça!”.
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