Artigo
Mundo à beira do totalitarismo ‘woke’
Michael Shellenberger e Alex Gutentag – Gazeta do Povo
Em todo o ocidente há pressão por critérios antiliberais de
limitação da expressão. Complexos industriais da censura se formam pela
colaboração de elites acadêmicas, burocráticas e institucionais.| Foto:
Eli Vieira com Midjourney
Os Twitter Files [série de arquivos internos do Twitter que
serviram de base para reportagens mostrando como a rede social, antes da
compra por Elon Musk, censurou informações verdadeiras nos últimos
anos] nos deram uma visão de como agências governamentais, sociedade
civil e empresas de tecnologia trabalham juntas para censurar usuários
das redes sociais. Agora, países importantes estão tentando codificar
essa coordenação em lei explicitamente.
Em todo o mundo, políticos acabaram de aprovar ou estão prestes a aprovar novas leis abrangentes que permitiriam aos governos censurar cidadãos comuns nas mídias sociais e outras plataformas da Internet.
Sob o disfarce de prevenir “danos” e responsabilizar grandes empresas de tecnologia, vários países estão estabelecendo um vasto e interligado aparato de censura, revela uma nova investigação da Public.
Políticos, ONGs e seus facilitadores na mídia afirmam que seu objetivo é apenas proteger o público da “desinformação”. No entanto, definições vagas e brechas nas novas leis criarão vias para ampla aplicação, excessos e abusos.
Na Irlanda, por exemplo, o governo pode em breve ser capaz de prender cidadãos simplesmente por possuírem material que os oficiais considerem “odioso”. Sob a Lei Restrict nos EUA, o governo pode em breve ter autoridade para monitorar a atividade na Internet de qualquer americano se considerá-la um risco à segurança.
Governos visam o controle total. No Canadá, uma agência estatal pode filtrar e manipular o que os canadenses veem online. Na Austrália, um único funcionário do governo pode obrigar as empresas de mídia social a remover postagens.
Governos e ONGs aliadas pretendem forçar as empresas de tecnologia a cumprir suas regras. Legisladores do Reino Unido ameaçaram prender administradores de rede social que não censurarem conteúdo suficiente. E o Brasil deve introduzir severas penalidades para plataformas que não removam “notícias falsas”.
A principal área de ação é a União Europeia. Ela busca novos poderes abrangentes para regular as empresas de mídia social. E, se agir, pode mudar a forma como as redes sociais operam em todo o mundo, dada a força econômica e influência global da UE.
Sob a Lei de Serviços Digitais da UE, grandes empresas de tecnologia devem compartilhar seus dados com “pesquisadores credenciados” de organizações sem fins lucrativos e do meio acadêmico, o que cederia a moderação de conteúdo às ONGs e seus patrocinadores estatais.
A Lei Restrict dos EUA, encabeçada pelo senador Mark Warner (democrata da Virgínia), ameaça com 20 anos de prisão ou uma multa de 250.000 dólares [R$ 1 milhão na cotação atual] quem acessar sites de uma lista negra por meio de “redes privadas virtuais” ou VPNs, que são maneiras de criar uma conexão privada entre um computador ou telefone e a Internet.
Nunca houve um momento semelhante a este nos cerca de 30 anos de uso generalizado da Internet pública nas sociedades ocidentais.
Agentes do governo introduziram essas políticas principalmente na calada da noite, com pouca publicidade ou protesto. Houve praticamente um apagão sobre o que está acontecendo nos veículos de notícias convencionais, com muitos, aparentemente, apoiando as novas leis.
Como foi revelado nos Twitter Files, o Complexo Industrial da Censura pretende tanto desacreditar fatos precisos, narrativas verdadeiras e criadores de conteúdo que ameacem seu poder, quanto impulsionar aqueles que o reafirmem.
Estamos, portanto, testemunhando o surgimento de um aparato governamental com poder para controlar o ambiente de informação de maneiras que determinam o que as pessoas acreditam ser verdadeiro ou falso.
Como tal, não é exagero dizer que o Ocidente está à beira de uma forma de totalitarismo muito mais poderosa do que o comunismo ou o fascismo, que eram limitados em seu alcance pela geografia.
Se quisermos derrotá-lo, precisamos entendê-lo. Por que os governos estão buscando reprimir a liberdade de expressão da Nova Zelândia aos Países Baixos e do Brasil ao Canadá? Por que agora? E por que estão conseguindo?
Por dentro do complô para censurar o planeta
O momento da repressão global à liberdade de expressão não parece ser coincidência.
No ano passado, o governo Biden tentou criar um departamento de censura (“Disinformation Governance Board”, ou “Conselho de Governança da Desinformação”, em tradução livre) no Departamento de Segurança Interna que provocou uma reação forte o suficiente do público para encerrá-lo.
O conselho de censura foi idealizado por Renee DiResta, “ex”-membro da CIA que atua no Observatório da Internet de Stanford, e seus aliados, incluindo o senador Warner, o Atlantic Council (think tank de política internacional), a Universidade de Washington e a Graphika (empresa de análise de redes sociais).
O que está acontecendo agora parece representar a reagrupação da defesa da censura que ocorreu após essa derrota. Com algumas exceções notáveis, a demanda por censura está sendo impulsionada por partidos de centro-esquerda, com ONGs desempenhando um papel subordinado.
Os políticos estão invocando uma defesa woke (woke significa algo como “lacradora” ou “identitária”) de “prevenção de danos” muito diferente do pretexto mais antigo para a censura, a segurança nacional. A pressão é baseada em raça, imigração (por exemplo, Irlanda), questões trans (por exemplo, Irlanda e Austrália) e segurança ou saúde (por exemplo, UE).
No entanto, pesquisas mostram que as pessoas nas sociedades ocidentais têm se tornado mais tolerantes há décadas. Por exemplo, a porcentagem de americanos que aprovam casamentos entre brancos e negros aumentou de 4% em 1958 para 87% em 2013 e 94% em 2021.
Enquanto isso, não há evidências de um aumento no assassinato de pessoas trans ou mesmo que pessoas trans sejam mortas a uma taxa maior que a média. Na verdade, nenhum grupo minoritário na história passou de estigmatizado a celebrado mais rápido do que as pessoas trans.
Na Irlanda, os legisladores avançaram com legislação que criminaliza a posse e preparação de material com o “potencial” de causar violência ou ódio. Segundo esta lei, mesmo que os indivíduos não se comuniquem ou distribuam o material de seus dispositivos, serão considerados culpados até que se prove o contrário. Eles podem enfrentar até cinco anos de prisão.
Nenhum dos políticos que defendem a censura parece ser um peso pesado intelectual, muito menos líder. Em vez disso, todos parecem ser ferramentas para interesses governamentais e financeiros poderosos, incluindo líderes militares e de inteligência, escondidos nas sombras.
O projeto de lei 2630 do Brasil propõe a censura para proteger as instituições da violência e deslegitimação institucional após o ataque este ano na Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro, que foi assustadoramente semelhante à falha de segurança de 6 de janeiro de 2021 em Washington, D.C.
No Canadá, os políticos defendem a censura em nome da promoção da cultura e do conteúdo canadenses, mas alguns críticos do projeto especulam que foi elaborado em resposta ao “Comboio da Liberdade” de caminhoneiros em 2021. O comboio foi celebrado no YouTube e nas redes sociais e incorretamente difamado como “racista” na imprensa canadense convencional.
Em outros lugares, os políticos buscam censura em nome da proteção às crianças. Nos EUA, os políticos inseriram medidas abrangentes de vigilância na legislação para proibir o TikTok e, assim, expandir a espionagem para prevenir a espionagem chinesa em crianças. O Reino Unido também está focado em expandir os poderes de censura do estado para proteger as crianças.
Mas as piores ações estão vindo da Europa, onde a UE busca poderes abrangentes para censurar opiniões indesejadas e entregar as decisões de moderação de conteúdo a ONGs privadas, que poderiam regular efetivamente as empresas de mídia social.
A lei daria “direito de ação coletiva às ONGs”, disse um dos principais lobistas europeus pelo projeto em um evento no Observatório da Internet de Stanford, que é liderado, intelectualmente, se não oficialmente, por DiResta.
Por que os políticos buscam reprimir a liberdade de expressão? Porque se sentem ameaçados pela “revolta do público”, possibilitada pela Internet, e trabalharam durante anos para orquestrar essa repressão.
Por que agora? A eleição de Biden, o fracasso do “Conselho de Governança da Desinformação” do Departamento de Segurança Interna e o lançamento dos Twitter Files parecem ter forçado a defesa da censura a se mudar dos EUA para outras nações, particularmente a Europa, a fim de censurar os americanos e o resto do mundo pela porta dos fundos.
Como podemos detê-los?
O aspecto mais chocante desta história é
que os totalitários estão se safando. Eles já aprovaram sua legislação
na Europa e agora paratiram para a implementação. A legislação foi
aprovada no Canadá, na câmara baixa da Irlanda e pode ser aprovada em
breve no Brasil.
É possível que, à medida que o liberalismo iluminista seja superado pelo totalitarismo woke, os crescentes níveis de liberdade e livre expressão desfrutados pelas pessoas nas sociedades ocidentais, particularmente nos Estados Unidos, por centenas de anos, estejam chegando ao fim.
Mas nós e muitos outros não desistiremos de nossas liberdades sem lutar. Com este artigo, temos o prazer de anunciar a expansão global de nossa investigação e luta contra o Complexo Industrial de Censura. Em meados de junho, realizaremos um evento público em Londres com Matt Taibbi, do Racket, para construir o movimento global de resistência ao totalitarismo. E buscamos aliados em todas as nações onde a liberdade de expressão está sob ataque.
A resistência está crescendo na esquerda e na direita. Na Irlanda, o deputado ecossocialista Paul Murphy argumentou que a Seção 10 do projeto “é a criação de um crime de pensamento”. Murphy propôs emendas que foram derrotadas, enquanto o deputado conservador Peadar Tóibín argumentou: “Este projeto é uma ameaça à função democrática de nossa sociedade a longo prazo. O projeto está em descompasso, em muitos aspectos, com as opiniões das pessoas.” E o grupo Free Speech Ireland, iniciado por estudantes da Universidade Cork, criou uma petição contra o projeto de lei. A petição ainda não atingiu sua meta de assinaturas.
No Canadá, a famosa romancista Margaret Atwood (autora de “O Conto de Aia”) criticou a onda de censura, dizendo ao Globe and Mail: “Burocratas não devem dizer aos criadores o que escrever.” E um deputado conservador alertou: “O Projeto C-11 é perigoso por si só, mas também é um precedente para um governo que deseja estender essa forma de controle tecnocrático a outras áreas além do conteúdo online. Ele estabelece a base e o campo de testes para a inteligência artificial e algoritmos serem usados para controlar as massas.”
A resistência está crescendo em todos os lugares. Na Nova Zelândia, documentos mostram coordenação direta entre o “Projeto Desinformação”, um think tank, a mídia e o gabinete do primeiro-ministro. E na Austrália, o think tank de liberdade de expressão Instituto de Assuntos Públicos está lutando vigorosamente contra um referendo constitucional proposto que criará um órgão baseado em raça separado do executivo e do legislativo. No Brasil, a Folha de S. Paulo deu ao jornalista vencedor do Pulitzer e pioneiro contra a censura, Glenn Greenwald, uma coluna para se manifestar contra a repressão. [Nota do editor: A Gazeta do Povo iniciou este mês a campanha “A liberdade fortalece a verdade”, em defesa da liberdade de expressão. O objetivo é conscientizar a opinião pública sobre os riscos dos ataques à liberdade de expressão para a democracia e para os brasileiros.]
A pressão pública ainda pode influenciar a política e salvaguardar a liberdade de expressão. Um rascunho anterior do projeto de lei das “Fake News” do Brasil tinha um dispositivo que permitiria às autoridades enviar uma pessoa para a prisão por cinco anos por compartilhar conteúdo que ameaçasse “a paz social e a ordem econômica”. Após um enorme clamor público, esse dispositivo parece ter sido removido.
Acreditamos que as elites foram longe demais. Se elas se sentissem seguras em sua agenda de censura, não estariam escondendo e apressando isso nos legislativos em todo o mundo ou tentando introduzir a censura nos EUA através da União Europeia.
Parte da razão para tão pouca censura nos EUA é a cultura singular de liberdade de expressão do país. Mas outra parte da razão é o crescente clamor público, incluindo a reação ao conselho de censura à “desinformação” de Biden-DiResta, à censura em informações sobre a Covid e a outros escândalos revelados nos arquivos do Twitter e do Facebook.
E agora novos processos estão sendo movidos. Só na terça (02/05), uma ação foi movida contra DiResta e Alex Stamos, do Observatório da Internet de Stanford, e o Departamento de Segurança Interna dos EUA por suas atividades de censura em 2020 e 2021.
Parece que os cidadãos de todo o mundo devem tomar medidas para defender a liberdade de expressão dos totalitários que tentam assumir o poder em todo o mundo, assim como fizeram há 75 anos. A demanda global totalitária por censura está nos despertando para a natureza preciosa de nossa liberdade. E agora, não só estamos nos encontrando uns aos outros, como também estamos contra-atacando.
Michael Shellenberger é um ambientalista americano, autor e fundador do Environmental Progress, uma organização sem fins lucrativos dedicada à promoção de tecnologias de energia limpa e soluções ambientais baseadas em evidências científicas. Ele é conhecido por seus livros “Apocalypse Never: Por Que o Alarmismo Ambiental Prejudica a Todos” e “Break Through: From the Death of Environmentalism to the Politics of Possibility [Ruptura: da morte do ambientalismo à política da possibilidade]”
Alex Gutentag é colunista na Tablet Magazine e editora-colaboradora na Compact Magazine
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