Legislação
Compra de terras por estrangeiros: visão ideológica ainda dita as regras no Brasil
Por
Marcos Tosi – Gazeta do Povo
Cerca de 1% das terras brasileiras estão hoje em nome de estrangeiros.| Foto: Jonathan Campos/Arquivo/Gazeta do Povo
Resumo desta reportagem:
Brasil adota desde 2010 uma interpretação que dificulta ao máximo a compra de terras por estrangeiros
Em termos jurídicos, estariam em conflito dois direitos fundamentais: o da soberania nacional e o da livre iniciativa
Projeto que moderniza a lei foi aprovado pelo Senado, mas está parado na Câmara
Decisões jurídicas conflitantes coexistem enquanto o STF não toma uma decisão sobre o tema
Um
dos maiores players do agronegócio global, o Brasil vem adotando desde
2010, no fim do segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na
Presidência da República, uma interpretação mais restritiva quanto à
possibilidade de estrangeiros comprarem e cultivarem terras no país. Uma
decisão que teve como pano de fundo uma suposta preocupação com o
controle territorial, a soberania nacional e a segurança alimentar.
“Ninguém vai pôr a terra num avião e levar embora. Todas as empresas que vêm para cá, sejam majoritariamente ou minoritariamente de capital estrangeiro, têm que cumprir as regras locais, seja a legislação tributária, trabalhista ou cambial. Em relação à segurança nacional, tirando a questão das fronteiras, o que se perde de soberania nacional por algum estrangeiro trabalhar aqui, produzir aqui, empregar aqui, pagar tributo aqui e, havendo lucro, mandar dividendos para fora? Isso acontece em qualquer setor, em qualquer segmento”, questiona Renato Buranello, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e coautor de um estudo de 2021 sobre a necessidade de modernização da lei brasileira.
Durante o governo Lula 2, a Advocacia-Geral da União (AGU) emitiu parecer contrário a dois pareceres anteriores (de 1974 e 1998), entendendo que uma empresa nacional controlada por sócios estrangeiros deveria ter as mesmas restrições da lei aplicada a empresas estrangeiras (Lei 5.709/71).
Buranello lembra que já no início do governo de Dilma Rousseff, em 2011, ouviu do próprio advogado-geral da União à época, Luis Inácio Adams, que o jogo tinha endurecido. “Eu estive num evento com o Adams, e ele disse, olha, é uma questão ideológica sim. A presidente Dilma sentou em cima dessa questão. Isso não vai andar, vai continuar o mais restrito, o mais limitador possível”, recorda.
Visão mais restritiva derrubou compra de terras por estrangeiros
Dentre
as restrições aplicáveis atualmente a estrangeiros, com ou sem empresa
constituída no Brasil, está o limite de tamanho das propriedades, de 50
módulos fiscais (o valor do módulo fiscal é fixado pelo Incra e varia de
5 a 110 hectares, dependendo do município), e a exigência de projeto e
anuência prévia do Ministério do Desenvolvimento Agrário.
A interpretação mais restritiva da lei pelo governo fez cair a um mínimo os investimentos estrangeiros na aquisição de terras no Brasil, mas os negócios não pararam completamente. Ainda há investidores que apelam para contratos de gaveta, com opção de compra, na expectativa de que a questão seja pacificada em médio prazo.
Números de 2020 dão conta de que 3,9 milhões de hectares estavam cadastrados no país como propriedade estrangeira, dos quais 2,5 milhões dedicados à agropecuária. Em comparação ao total de terras agrícolas, de 350 milhões de hectares, a proporção é de pouco mais de 1% em mãos de forasteiros.
É falso que os chineses sejam os maiores detentores de terras no país. À frente deles estão japoneses (10% do total), portugueses, espanhóis, alemães, holandeses, americanos, argentinos e libaneses.
Para Rodrigo Milla, especialista em direito societário da Arauz Advogados, se houver uma regulamentação clara e mais flexível sobre a possibilidade de estrangeiros comprarem terras no Brasil, o efeito será imediato, de valorização. Como o que aconteceu com a Bolsa de Valores quando o país recebeu o grau de investimento.
“Em um dia, todas as ações da Bolsas valorizaram 20%. Por que naquele momento vários fundos de investimento passaram a poder pôr dinheiro no Brasil. E deve acontecer a mesma coisa com a compra de terras. Muitas empresas no estrangeiro, por questões regulatórias e de compliance, não podem comprar terras no Brasil usando subterfúgios, por mais que eles sejam válidos. Elas estão na espera. Na hora que puderem comprar, a lei da oferta e da procura vai fazer com que o preço do ativo aumente”, pondera.
PL 2963, aprovado no Senado, está parado na Câmara
Uma
modernização da lei, o PL 2963/19, do senador Irajá Abreu (PSD-TO), já
foi aprovada no Senado, mas está parada na Câmara há dois anos. Na
prática, a principal mudança envolve não replicar as mesmas restrições
aplicáveis a estrangeiros em casos de pessoas jurídicas brasileiras
controladas direta ou indiretamente por estrangeiros.
O projeto mantém, contudo, várias restrições. Quanto ao tamanho das fazendas, por exemplo, nenhum município poderia ter mais de 25% de sua área em mãos de cidadãos de outras nacionalidades. E a propriedade teria de cumprir sua função social e se manter produtiva, sob pena de sofrer expropriação. A compra seria vedada para ONGs ou fundações com instituidores estrangeiros, fundos soberanos ligados a Estados e empresas estatais estrangeiros, salvo se houver análise e parecer favorável do Conselho de Defesa Nacional (CDN). Ficaria também sujeita à aprovação do CDN a aquisição de imóvel rural situado no Bioma Amazônico.
Estudo comparativo do Insper constatou que a maioria dos países, seja Estados Unidos, Austrália, Rússia, China ou Argentina, tem regras com maior ou menor grau de exigência que restringem a venda de terras a não nacionais. Trata-se de uma questão estratégica, que já esteve até na origem de guerras.
Investimentos estrangeiros em terras no Brasil, atualmente, com
frequência recorrem a contratos de gaveta| Jonathan Campos / Arquivo
Gazeta do Povo
Regras atuais estariam espantando investidores
O
desafio é encontrar uma solução que não esteja ideologicamente
contaminada. “Isso não é livre, não é comum que terras em outro país
estejam totalmente disponível para investidores estrangeiros. Tem que
haver regras, mas as limitações têm que ficar colocadas naquilo que de
fato traz algum risco: áreas de fronteira, fundos soberanos de Estados
estrangeiros, ONGs. O que está acontecendo hoje é que estamos espantando
investimentos que poderiam ocorrer no agronegócio. Isso é um fato. Tem
gente séria, fundos sérios, empresas que querem vir e produzir no
Brasil, mas estão com medo do cenário regulatório. A gente tem deixado
de ser um porto seguro quando se fala em investimentos em áreas rurais
no Brasil”, aponta Buranello.
À época da imposição das regras atuais, o governo militar encorajava a ocupação e exploração da Amazônia por brasileiros, e tentava combater escândalos de negociatas de terras, em que especuladores estrangeiros transacionavam grandes áreas, por vezes de forma consecutiva, e até com documentação falsificada.
Em 2010, mesmo ano em que houve parecer da AGU mais restritivo, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) entendeu que as restrições deveriam se estender às empresas brasileiras controladas por estrangeiros, e recomendou que os tribunais de Justiça fizessem um regulamento para que suas corregedorias fiscalizassem a aquisição de terras por forasteiros.
Imbróglio jurídico aguarda decisão do STF
O Tribunal de Justiça de
São Paulo, no entanto, discordou da interpretação do CNJ e se recusou a
adotar a medida. A Advocacia Geral da União, a mando do Poder
Executivo, entrou então com ação no STF, a Ação Cível Originária (ACO)
2463, para obrigar o TJSP a se adequar à recomendação.
Em outra frente, a Sociedade Rural Brasileira (SRB) impetrou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 342 (ADPF), afirmando haver incompatibilidade de dispositivos da lei de 1971 com a Constituição Federal, ao discriminar empresas nacionais de capital estrangeiro. Para a SRB, a lei dificulta o financiamento da atividade agropecuária e diminui a liquidez dos ativos imobiliários, com perda para as empresas agrárias.
Desde então, apenas o ministro relator do caso, Marco Aurélio Mello, apresentou o voto, antes ainda de se aposentar. Ele decidiu pela necessidade de controle sobre a propriedade de terras por estrangeiros, mesmo que, no caso de empresas, elas tenham substituído o CNPJ forasteiro por um CNPJ nacional.
No desdobramento mais recente da controvérsia, o plenário do STF cassou liminar do ministro André Mendonça que suspendia todos os processos judiciais envolvendo compra de imóveis rurais por empresas brasileiras com participação majoritária de estrangeiros. A suspensão atendia pedido da OAB, que se queixou de inúmeras sentenças conflitantes sobre o tema. A corte entendeu, contudo, que a suspensão de todos os processos causaria uma insegurança jurídica ainda mais grave.
Decisões jurídicas conflitantes coexistem sobre compra de terra por estrangeiros
Em termos jurídicos, estariam em conflito dois direitos fundamentais: o da soberania nacional e o da livre iniciativa. O Supremo Tribunal Federal ainda não tomou sobre o assunto nenhuma decisão vinculante, e, portanto, coexistem no país várias decisões judiciais com interpretações conflitantes.
O assunto tem ganhado relevância em função do crescente interesse de empresas privadas e fundos estrangeiros em investir em “ativos verdes” no Brasil. O país possui o maior estoque mundial de áreas de floresta, mas ainda não tem um mercado regulamentado de créditos de carbono.
“O crédito de carbono no Brasil é um dos mais baratos do mundo. Geralmente, quando você faz negócio com terra, o valor é calculado pelo que ela produz, ou seja, é possível comprar um hectare pagando com tantas sacas de soja. Mas para um hectare no meio da Amazônia, na floresta virgem, a avaliação é outra. E é muito mais baixa. Ou seja, o Brasil está a preço de banana para o estrangeiro que quiser se aventurar por aqui”, avalia Milla, do escritório Arauz Advogados.
Ele aponta que os investidores que compram terras no Brasil, com base em liminares, sabem o risco que correm. Numa situação extrema, poderiam até perder tudo, caso um governo futuro entenda que a compra foi feita em violação à lei. Mas tal decisão, “por canetada”, é improvável, diz o advogado, visto que “criaria uma indisposição geral do Brasil com estrangeiros de todo o mundo, porque já tem muita gente posicionada no mercado brasileiro de terras”.
Insper avaliou prós e contras quanto à compra de terra por estrangeiros
No
estudo do Insper, de 2021, os professores Renato Buranello, Marcos Jank
e Leandro Grillo elencaram os prós e contras, os riscos e experiências
internacionais quanto à compra de terras por estrangeiros.
Quem defende a liberalização aponta para a internacionalização das cadeias agroindustriais brasileiras a partir dos anos 90, que já poderiam estar mais integradas, aumentando a confiança e a dependência bilateral. Por essa ótica, as normas atuais, altamente restritivas, além de afastar investimentos impedem a valorização das terras, a elevação da concorrência, da competitividade e da liberdade econômica. Flexibilizar as regras poderia, ainda, contribuir para a redução do protecionismo contra o Brasil no mundo.
Os críticos reagem dizendo que a “estrangeirização” das terras agrícolas põe em risco a soberania nacional e a segurança alimentar, diminuindo o enfoque de produção de alimentos para o consumo interno. Também apontam para aumento da pressão sobre pequenos produtores e concentração fundiária, elevando a especulação no mercado de terras. Haveria ainda risco aos recursos hídricos, risco de migrações maciças, de aumento do nacionalismo e da xenofobia, além de temores quanto ao crescente poder de mercado da China.
Alguns dos temores, segundo o estudo do Insper, não se justificam. Mesmo havendo uma legislação mais flexível para investimento estrangeiro, isso não significa risco de perda de controle territorial. “O Estado tem poder regulador sobre esse mercado e os investidores estrangeiros (ou empresas brasileiras controladas por capital estrangeiro) estão sujeitos às mesmas regras jurídicas e ambientais que o produtor brasileiro e, no caso de qualquer inobservância à legislação ou uso indevido, pode-se adotar a desapropriação como correção. No caso dos recursos hídricos, o uso destes é condicionado à outorga do Poder Público e, portanto, já regulados”, afirmam.
Nova lei manteria controle estrito dos negócios, mas sem filtro ideológico
Quanto
às preocupações com a segurança alimentar nacional, o Insper concluiu
que “os mecanismos de Defesa Comercial poderiam ser utilizados para
corrigir os fluxos internacionais de comércio caso estes pressionem o
abastecimento interno”.
Os impactos socioambientais seriam mínimos, visto que o país já tem uma legislação que evitaria “qualquer pressão por incremento de desmatamento e conflitos com comunidades locais em fronteiras agrícolas”.
Em relação aos preços da terra, de fato poderia haver tendência à elevação devido ao aumento da demanda. No entanto, tal efeito seria “bastante limitado”, segundo os pesquisadores, visto que “ainda seriam mantidas restrições da lei de 1971 para limites de extensão das propriedades estrangeiras”.
Aprovar uma nova lei pode não ser suficiente para encerrar a polêmica envolvendo o princípio da livre iniciativa. Na análise do advogado Rodrigo Milla, só haverá segurança jurídica quando o STF se manifestar sobre a compra de terras por estrangeiros, e “se ela pode ser regulada por lei sem que isso constitua uma violação da Constituição e do princípio constitucional da livre iniciativa”.
“O debate, na realidade, vai neste sentido: a livre iniciativa pode ou não ser tolhida em benefício de outras questões constitucionais, como a soberania nacional?”, afirma.
Para Buranello, no entanto, não existe colisão dos dois direitos fundamentais. A preocupação com a segurança nacional estaria superada, visto que as restrições em áreas de fronteira existem tanto na lei atual como no projeto aprovado no Senado.
Ele acredita que uma nova lei daria norte ao assunto. “Quando você renova a legislação, você de fato conduz o judiciário a mudar o pensamento. A sociedade vota numa outra direção, então cabe ao judiciário ter uma presença diferente dentro de uma moldura regulatória nova”, argumenta.
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