Editorial
Por
Gazeta do Povo
Bento XVI, quando ainda exercia o pontificado, em viagem a Cuba em março de 2012.| Foto: EFE/Alejandro Ernesto
Na
manhã deste sábado, dia 31 (madrugada no horário brasileiro), o
Vaticano confirmou o falecimento do papa emérito Bento XVI, aos 95 anos,
e cujo estado de saúde havia se agravado repentinamente nos últimos
dias. Os católicos perdem um líder que esteve no centro da vida eclesial
por quase três décadas e meia, somando-se seu pontificado e o período à
frente da Congregação para a Doutrina da Fé, no papado de João Paulo
II; e o mundo perde um dos maiores intelectuais de seu tempo, cujas
reflexões devem servir de guia não só para os que compartilham da fé
católica, mas para “todos os homens de boa vontade”, como tantos papas
costumam direcionar alguns de seus documentos.
Resumir a trajetória de Bento XVI à frente da Igreja Católica como “o papa que renunciou” é uma simplificação enorme e que não lhe faz justiça. Sim, a renúncia de 2013, inédita em muitos séculos, foi um ato de enorme coragem, humildade e desprendimento da parte de alguém que julgou não ter mais as condições de exercer a função para a qual tinha sido escolhido oito anos antes. Mas seu pontificado, embora curto para os padrões atuais – nos últimos 100 anos, apenas João XXIII e João Paulo I governaram a Igreja por menos tempo que Bento XVI –, foi repleto de contribuições para a teologia católica, como o aprofundamento da correta compreensão que se deve dar ao Concílio Vaticano II (do qual ele participou como perito) ou do verdadeiro sentido da liturgia católica. Dedicou-se com afinco a mostrar que a fé era algo perfeitamente razoável no mundo moderno. Acima de tudo, para os católicos a mensagem de seu pontificado foi a de que o cristianismo não era a mera adesão intelectual a um corpo de ideias, mas o encontro pessoal e a amizade com Jesus Cristo.
Sim, existem verdades objetivas e o homem é capaz de atingi-las por meio da razão
O que mais nos interessa aqui, no entanto, é um tema central do pensamento de Joseph Ratzinger e que transcende completamente os limites do catolicismo: o do respeito pela verdade. O cardeal que não se furtou a participar de debates célebres, por exemplo com os filósofos Jürgen Habermas e Paolo Flores d’Arcais (ambos publicados no Brasil), no início dos anos 2000, via com muita preocupação como se espalhavam pelo mundo os ares de uma pós-modernidade que negava o papel essencial da verdade. Todo o empenho intelectual se transformava em simples “batalhas de discursos” igualmente válidos, em que as ideias se impunham menos pela sua capacidade de explicar a realidade que pela persuasão ou mesmo pela força – o que se aplicava também à religião, e era a isso que Bento XVI se referia no tão incompreendido discurso de Ratisbona, em que suas palavras foram distorcidas e causaram furor no mundo islâmico.
Quando, na célebre homilia da missa que abria o conclave de 2005, Ratzinger denunciou um “relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades”, e que era visto como “a única atitude à altura dos tempos hodiernos”, ele chamava a atenção para o grande engano de um mundo que recusava a existência de verdades e padrões morais objetivos; um mundo em que, nas palavras imortais do personagem Ivan Karamazov, de Dostoievski, “tudo é permitido” – não só permitido, como até mesmo elogiado.
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O jovem Ratzinger fora testemunha em primeira mão de como essa
mentalidade se concretizara nos horrores do nazismo, assim como seu
predecessor João Paulo II o havia sido do comunismo na Polônia, mas não é
preciso que um sistema totalitário se implante para que fiquem
evidentes os males do relativismo: o esgarçamento do tecido social, o
florescimento do individualismo e do hedonismo, e a intolerância com
qualquer crença em princípios universais e com a manifestação nessa
crença. Este é o momento em que o castelo de cartas do relativismo
desmorona e sua incoerência intrínseca fica evidente: o relativista diz
que a verdade absoluta não existe e tudo é questão de pontos de vista,
que devem ser igualmente respeitados – mas esse ponto de vista é imposto
justamente como se fosse verdade absoluta, enquanto o ponto de vista
segundo o qual existem verdades absolutas não recebe respeito algum e é
denunciado como “fundamentalismo”, afirmava o cardeal Ratzinger.
Sim, existem verdades objetivas e o homem é capaz de atingi-las por meio da razão. Ao tornar-se arcebispo, em 1977, Joseph Ratzinger escolhera a expressão latina “cooperatores veritatis” (“colaboradores da verdade”) em seu lema episcopal, e levou a cabo com maestria a função autoatribuída. Sua mensagem precisa ecoar com mais força neste mundo que encara a desejável pluralidade de ideias como um fim em si mesmo, e não como o ponto de partida a partir do qual a razão humana se empenhará com todas as suas forças para separar o joio do trigo. O legado do intelectual Bento XVI merece e precisa ser levado adiante mesmo por quem não compartilha da mesma fé do religioso Bento XVI.
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