Cultura
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Maria Clara Vieira – Gazeta do Povo
Árvore de Natal em Berlim: em 2021, documento da UE propôs evitar “Feliz Natal”| Foto: EFE
Quando a vacinação contra a Covid-19 ainda caminhava a passos lentos ao redor do mundo, o “cancelamento” do Natal em dezembro de 2020 foi amplamente repercutido e comentado tanto nos países onde a festa do nascimento de Cristo é celebrada entre flocos de neve de verdade como onde o clima do final do ano remete ao Festival do Sol Invicto, a festa pagã que originalmente marcava o solstício de verão.
Parece óbvio, afinal de contas, que, ao menos para cerca de 31,4% do planeta – percentual estimado de cristãos segundo dados do Pew Research Center de 2017 – o feriado de 25 de dezembro é mais do que a data festiva mais rentável do ano: suas raízes estão fincadas pelo Ocidente. Ecoando o historiador britânico Tom Holland, segundo o qual toda civilização ocidental “nada em águas cristãs” – desde seu corpo jurídico básico à noção de direitos humanos -, pode-se dizer que o inverso também é verdade: as raízes do Ocidente estão fincadas no Natal.
Ignorar esta realidade requer que se cerre os olhos para as gigantescas árvores de Natal erguidas nas principais capitais europeias anualmente, enquanto teatros e praças exibem peças, cantatas e toda sorte de decorações dedicadas à data. Não foi à toa, portanto, que o documento interno da Comissão Europeia – instituição independente que aplica as resoluções da União Europeia – vazado no final do mês de outubro causou tanto furor. O guia recomendava que os funcionários evitassem “pressupor que todos são cristãos” e, nas mensagens e comunicados internos substituíssem a saudação “Feliz Natal” por “Boas Festas”, além de evitar nomes associados ao Cristianismo como “Maria” e “João”.
A reação foi enérgica e imediata a ponto de, no dia 1º de dezembro, a comissária de Igualdade da CE, Helena Dalli, anunciar a suspensão da diretriz, afirmando que a versão divulgada “não é um documento maduro e não preenche todos os requisitos de qualidade da Comissão”. “As recomendações claramente precisam ser mais trabalhadas. Portanto, retiro as recomendações e trabalharei mais nesse documento”, concluiu a comissária de Igualdade, em breve comunicado. Ninguém menos do que o Papa Francisco havia reagido ao texto, classificando-o como um “anacronismo”, fruto de uma “laicidade liquefata”. Em mais uma de suas críticas às ideologias modernas que passou despercebida pela imprensa, o Pontífice foi além: remeteu a iniciativa às ditaduras do nazismo e do comunismo.
Os “cancelamentos” do Natal
Não é a primeira vez na história que o Natal incomoda a ponto de ser alvo de tentativas de “cancelamento”; o que pouca gente imagina é que os pioneiros deste movimento foram os próprios cristãos. Quando a Reforma Protestante aterrissa na Inglaterra do século XVII, as festividades natalinas são proibidas por puritanos, incomodados com as raízes pagãs da tradição.
“A preocupação com isso [a forma correta de celebrar o Natal] é, em si, uma tradição muito cristã. Mas quando você chega à Inglaterra reformada, os puritanos em particular estão muito, muito ansiosos sobre a maneira como eles veem a Igreja Romana como tendo falhado em arrancar os espinhos do paganismo. Existe a tradição de generosidade no Natal que, sem dúvida, surge da maneira como os cristãos entendem seu dever para com os pobres. Mas, nessa época, o sentido já foi misturado e estes grupos se preocupam se essas celebrações não acontecem por motivos cristãos, mas sim por motivos pagãos”, explica Holland.
Apesar de todos os esforços, o Natal continuou dentro das casas: em fevereiro de 1656, o ministro puritano Ezekiel Woodward admitiu, com amargor, que “o povo continua apegado a seus costumes pagãos e abomináveis idolatrias”. Foi somente quando o rei Carlos II subiu ao trono em 1660 que a festa do nascimento de Cristo – com suas árvores, guirlandas e duendes no pacote – voltou à esfera pública, garantindo ao monarca o apelido de “o Rei do Natal”. Do outro lado do oceano, comemorar o Natal “seja pela abstenção do trabalho, festa ou qualquer outra forma” segundo a lei do estado americano de Massachussetts, colonizado por puritanos, podia render uma multa de 5 xelins. A festa só se tornaria um feriado em 1856.
A próxima tentativa de “cancelamento” no Natal começaria, enfim, a se assemelhar aos esforços contemporâneos: o período do terror que sucedeu a Revolução Francesa traria uma guerra declarada às festividades religiosas no espaço comum, que deveriam ser substituídas pelo culto à razão. Algumas décadas depois, seriam os nazistas que fariam o esforço de se livrar do Natal por sua evidente origem cristã e judaica. Desta vez, contudo, o movimento foi mais sutil: ao invés de proibir a festa, a propaganda hitlerista tentou reescrever a história europeia, ressaltando e idealizando as culturas germânicas pagãs e excluindo a herança cristã. Mulheres assavam biscoitos em formato de suástica, a Estrela de Belém se transformou na “roda do sol de Odin” e o Papai Noel ganhou as feições do deus germânico Wotan.
Na mesma época, no continente vizinho, o Natal era expurgado da recém-nascida União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Como uma festa cujo intuito é celebrar a união familiar, a tradição e a religião – o “ópio do povo” de Karl Marx -, o nascimento de Cristo era uma enorme pedra no sapato da “ditadura do proletariado” e seu ateísmo militante. Para não perder por completo o apoio da população, contudo, era preciso agir com estratégia. Quando os soviéticos tomaram a Hungria, em 1948, escolheram o dia seguinte ao Natal para prender o arcebispo local, e, no ano seguinte, substituíram a data por uma celebração da figura de Josef Stálin. Na Rússia, a exemplo da Alemanha, o próprio Stálin incentivaria a comemoração de um Natal descolado do Cristianismo, com figuras da mitologia local, mesmo depois de denunciá-las como “aliadas da Igreja”.
Da proibição ao apagamento
O Natal sobreviveu ao nazismo, ao comunismo, ao fim da URSS e chegou são e salvo ao século XXI, ainda que com o mesmo potencial para causar incômodo. O documento politicamente correto da União Europeia pode ser visto como a ponta do iceberg de uma controvérsia nascida nos Estados Unidos e que tomou proporções internacionais.
Desde o começo dos anos 2000, o uso da expressão “boas festas” versus o bom e velho “Feliz Natal” está no cerne de discussões acirradas que, nos EUA, já alcançaram os palanques. Em 2005, o apresentador da Fox News Bill O’Riley publicou o livro “A Guerra no Natal: Como a conspiração progressista para proibir o feriado sagrado cristão é pior do que você pensava”. A obra versa principalmente sobre casos de escolas que, em nome da “pluralidade”, estariam evitando símbolos cristãos durante o período natalino. Ainda que contendo informações inverídicas, exageradas ou seletivas – algumas escolas foram falsamente acusadas de proibir as cores verde e vermelho, por exemplo, enquanto governadores republicanos que optaram por “boas festas” passaram incólumes -, as histórias repercutiram no canal.
Naquele ano, a rede de supermercados Wal-Mart “encorajou” seus funcionários a utilizarem “boas festas” no lugar de “Feliz Natal”, enquanto a Casa Branca ocupada por George W. Bush também optava pela saudação genérica em seu cartão de final de ano. Seria, contudo, o presidente Barack Obama quem, em 2016, chamaria a atenção por desejar “boas festas” via Twitter, na época em que marcas como Barnes & Noble, Best Buy, Victoria’s Secret e Starbucks evitavam menções à festa religiosa em seus catálogos de dezembro, preferindo referências ao inverno ou à “harmonia social”. Tudo isso serviu de armamento para que o então candidato à presidência Donald Trump afirmasse, em um comício em Wisconsin, que traria o “Feliz Natal” de volta.
Assim, ano após ano, a celeuma de grupos progressistas com o Natal ganha um novo capítulo. Ainda em 2016, a American Civil Liberties Union (ACLU) em Indiana entrou com uma ação em nome de um residente da cidade de Knightstown que se opôs a uma cruz exibida no topo da árvore de Natal oficial do município. A cruz foi removida. “Enquanto o próprio governo não promover a doutrina religiosa, essas celebrações são inteiramente constitucionais”, afirmou o representante do grupo.
O argumento da ACLU é, na verdade, extremamente revelador – e essencial para que se compreenda o movimento da União Europeia. “O cerne deste problema é a visão do liberalismo secularista que se tornou a mentalidade dominante das democracias ocidentais. Com a desintegração da Cristandade medieval e o surgimento do Estado nacional moderno como gestor da violência, há a promessa de segurança em troca da perda de algumas liberdades. Há, então, um enfraquecimento das identidades pessoais na esfera pública, e a religião é relegada ao espaço privado. Nasce essa ideia de que você pode professar a religião que quiser, desde que seja dentro da sua casa. Isso surgiu para pôr um fim às guerras religiosas e teve efeitos positivos no sentido de evitar o absolutismo, mas o laicismo também tem seus excessos”, explica o historiador Alex Catharino, pesquisador do Russell Kirk Center.
“Um destes problemas é a ideia de que a ação pública, cuja finalidade é a justiça, deve promover uma equalização a qualquer custo. Na prática, você cria um achatamento, destroi a diversidade das culturas locais e a própria identidade da sociedade ao promover uma neutralidade impossível”, explica. “O que esses burocratas não entendem é que o Estado é laico, mas é composto por pessoas religiosas – e não é como se na esfera pública elas fossem se despir de tudo. O medo de ferir o diferente pela mera menção ao Natal é perigoso porque caímos na tentação dos regimes totalitários de tentar reescrever a história”, explica Catharino.
A reflexão do historiador ecoa a resposta do Papa Francisco à proposta europeia: “A União Europeia deve tomar em mãos os ideais dos Pais fundadores, que eram ideais de unidade, de grandeza, e ter cuidado para não dar lugar a colonizações ideológicas. Isto poderia levar à divisão dos países e ao fracasso. A União Europeia deve respeitar cada país como ele está estruturado dentro, (…) e não querer padronizar. (…) É por isso que o documento do Natal é um anacronismo”.
Por que o Natal incomoda tanto?
À parte do “multiculturalismo” amorfo expresso no documento da Comissão Europeia, o universo “woke” tem sua própria cruzada contra o Natal: uma pesquisa rápida revela dezenas de artigos sobre filmes de Natal “problemáticos” que deveriam ser “evitados” por jovens desconstruídos. Entre eles, o clássico “A Felicidade Não Se Compra” (1946), de Frank Capra, cujo protagonista George Bailey seria um homem “abusivo e manipulador” – uma lista de reclamações que parece vir não de jovens usuários do Twitter, mas da encarnação do ranzinza Ebenezer Scrooge, do clássico “Um Conto de Natal” de Charles Dickens (“Que vá para o diabo o Feliz Natal!”, diz o velho).
“O problema com o Natal, como diria G. K. Chesterton, é que ele é um sinal de contradição para quem pensa em tecnologia, riqueza e consumo. É a festa na qual a sociedade é confrontada com um menino frágil que era Deus. O ‘Feliz Natal’ é uma lembrança de que o mundo não é uma marcha inexorável rumo ao progresso, e é o momento de nos voltarmos à nossa pequenez. É quando conservadores e liberais simplificam em achar que é só um problema de Estado: o problema é a cultura”, reforça Catharino.
De fato, talvez poucos pensadores tenham exposto de forma tão clara o incômodo inerente à festa que, mais do que qualquer outra, clama pelo retorno ao familiar. “O período natalino é doméstico; e por esta razão a maioria das pessoas se prepara para ele apertando-se em ônibus, esperando em filas, correndo pelos metrôs, comprimindo-se em casas de chá, e imaginando quando ou se vão chegar em casa algum dia”.
“Exatamente antes do grande festival do lar, toda a população parece ter se tornado desabrigada. É o supremo triunfo da civilização industrial que, nas enormes cidades que parecem ter casas em excesso, há uma desesperada falta de moradia. (…). Tenho em mente o contrário da irreverência quando digo que o único ponto de semelhança entre eles e a família natalina arquetípica é que não há espaço para eles na estalagem. Ora, o Natal é feito de um belo e intencional paradoxo; que o nascimento do desabrigado deve ser comemorado em todos os lares”, escreveu Chesterton, desnudando o motivo pelo qual não é de se surpreender que uma geração afeita à individualidade e ao externo tenha perdido o apreço pela comemoração.
Por trás da Cortina de Ferro que Chesterton viu ser erguida no oriente, sabia-se que o Natal incomodava por sua relação íntima com a religião e a tradição. Há, no fundo deste desprezo, um elemento comum aos burocratas e aos “canceladores” de plantão, também identificado e descrito pelo ensaísta: a aversão à existência de um espaço pessoal, íntimo e inalcançável, capaz de sobreviver às mais nefastas ou insossas ideologias: “que exista uma noite que as coisas brilhem desde dentro: e um dia que os homens procurem por tudo que está enterrado em si mesmos, e descubram – no lugar onde ele está realmente escondido, por trás de portões trancados e janelas cerradas, por trás de portas três vezes trancadas e aferrolhadas – o espírito de liberdade”.
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