Editorial
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Gazeta do Povo
Venezuelanos comem perto de comércio que exibe lista de preços em dólar.| Foto: Rayner Peña R./EFE
A existência do Estado e de seu braço executivo, o governo, se justifica pelo fato de pessoas diferentes, cada uma com seus interesses, virtudes e imperfeições, resolverem viver na mesma comunidade em regime de cooperação e competição. De início, há três justificativas para a existência dessa espécie de “síndico social”, o Estado e seu braço executivo. A primeira é que em comunidade torna-se possível dividir as milhões de tarefas, de forma que cada pessoa possa se especializar em uma única tarefa (ou atividade) para juntar uma multidão de bens e serviços diferentes para atender as necessidades de todos. Além de aumentar a produtividade do sistema, a divisão do trabalho permite que a pessoa dedicada a apenas uma tarefa possa exercer sua única atividade, receber remuneração por seu trabalho e adquirir a enorme lista de bens e serviços para sua sobrevivência.
A segunda justificativa é a existência de problemas que escapam à esfera individual para sua solução e, portanto, dependem da ação coletiva. Um exemplo é o caso de uma pandemia. Uma doença que se espalha pela comunidade e é transmitida de um ser humano a outro somente pode ser extirpada se todos os membros do grupo adotarem as medidas que impeçam contaminação e transmissão. Outro exemplo é a capacidade de defesa diante de um ataque de força armada estrangeira, que somente se viabiliza por ação coletiva dos membros da comunidade. A lista de exemplos é longa e vai além dos eventos que se tornaram comuns: tempestades, terremotos, tsunamis, inundações etc. A terceira justificativa está na necessidade de serem construídos bens coletivos, como uma praça pública, uma estrada, uma avenida ou um poço artesiano para fornecer água a moradores do local. No mundo moderno, vários bens passaram a ser produzidos de forma coletiva, conquanto possam ser ofertados pela iniciativa privada, como educação, saúde, lazer etc.
O debate sobre Estado máximo ou Estado mínimo contém uma falácia: a discussão essencial não é o tamanho, mas sua constituição, seu corpo de leis, sua estrutura e seu funcionamento
Sendo assim, o síndico social (o Estado) é constituído para resolver problemas e gerenciar o atendimento das necessidades da vida coletiva, além de adicionalmente estabelecer as regras de convivência, definir punições e administrar o sistema judicial executor dessas regras. Assim, nasce um “condomínio social”, formado por Constituição, leis e normas de funcionamento, cujas atividades requerem dirigentes eleitos e funcionários contratados. A estrutura do sistema estatal, suas burocracias e atividades operacionais exigem um sistema de imposição e arrecadação de tributos com os quais serão pagos os investimentos, serviços e custeio necessários para que o Estado cumpra, então, suas funções.
Nesse condomínio social, nasce um poder que legisla, outro que executa e um terceiro que processa, julga e pune as pessoas naturais (físicas) e jurídicas transgressoras das leis e normas aprovadas. Embora essa introdução pareça óbvia, com o passar do tempo muitas questões vão perdendo sua compreensão e finalidade, abrindo espaço para desvios e distorções que fazem a tentativa de solucionar um problema tornar-se ela própria um problema novo, como bem alertou Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos de 1981 a 1989, ao desabafar dizendo: “O governo é o problema, não a solução”. É nesse contexto que o país constrói um arcabouço de leis civis, leis comerciais, leis ambientais, leis trabalhistas, leis tributárias e milhares de normas de conduta sobre as “obrigações de fazer” e as chamadas “obrigações de não fazer” (as proibições). O problema se torna dramático quando uma nação chega a um ponto em que seu corpo de leis e normas atinge um grau de distorção e confusão que acaba por transformar o sistema estatal, suas leis e seu funcionamento num aparato gigantesco, ineficiente, corrupto e disfuncional que, apesar de atender muitas necessidades, termina por ser o principal entrave ao crescimento e saída da pobreza e do atraso.
Não é exagero afirmar que um dos desafios principais das sociedades modernas é conseguir evitar que o Estado, seus três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e seu corpo de leis se transformem em um monstro devorador de recursos materiais, recursos financeiros e recursos tecnológicos de forma tão distorcida que a solução coletiva dos problemas sociais acabe por sufocar os indivíduos e a própria comunidade, impedindo assim seu desenvolvimento. Ou seja, um Estado inchado, lento, ineficiente, burocrático, desperdiçador e corrupto passa de instrumento de solução a ser ele próprio um problema, como um remédio que, para curar uma doença, gera efeitos colaterais tão perversos que são capazes de levar o paciente à morte. Um caso típico atualmente citado por analistas internacionais é o da Venezuela. Apesar de o país deter a maior reserva de petróleo do mundo, a pobreza na Venezuela atingiu em 2021 a taxa de 94% de sua população, e o país vive um colapso econômico e social.
O tão insultado “neoliberalismo” foi um grito de revolta, sobretudo a partir dos anos 1970, contra o monstro em que o Estado, seus poderes e suas estruturas muitas vezes se transformavam. Por isso, o debate sobre Estado máximo ou Estado mínimo contém uma falácia: a discussão essencial não é o tamanho, mas sua constituição, seu corpo de leis, sua estrutura e seu funcionamento. Daqui a algumas semanas, o Brasil entrará em 2022, ano de eleições federais e estaduais, e um tema crucial é a estrutura do sistema estatal brasileiro, que definitivamente não vem dando mostras de se tornar menos inchado, menos ineficiente e menos corrupto. Cabe à sociedade fiscalizar, pressionar e se mobilizar para que o aparato estatal não se torne ele próprio um problema coletivo cuja solução se torne impossível.
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