Autonomia médica
Por
Leonardo Desideri – Gazeta do Povo
Brasília
CPI da Covid criou um canal de denúncias sobre tratamento precoce.| Foto: Pedro França/Agência Senado
A CPI da Covid do Senado aprovou na semana passada a criação de um canal de e-mail para o recebimento de denúncias relacionadas à pandemia de Covid-19 no Brasil. O vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), disse via Twitter que o principal objetivo do canal é “receber denúncias de cidadãos a respeito da recomendação e execução de ‘tratamento precoce’”.
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A proposta foi sugerida pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que alegou a necessidade de dar um caráter oficial às denúncias que os senadores têm recebido de forma individual em seus perfis nas redes sociais e por mensagens de celular.
Mas, até o momento, a prescrição de medicamentos para o tratamento precoce da Covid-19 não é considerada irregular por algumas das principais autoridades sanitárias do Brasil, que respaldam a autonomia médica na decisão de uso de alguns medicamentos para tratar os pacientes nos primeiros dias de sintomas da doença.
O Conselho Federal de Medicina (CFM), por exemplo, já deixou claro que, embora não recomende o tratamento precoce, também não atesta sua ineficácia. O seu comitê técnico vem fazendo um acompanhamento atualizado das pesquisas sobre o tema. O presidente do CFM, Mauro Ribeiro – que se tornou mais um dos investigados pela CPI nesta quarta (6) – considera equivocada a ideia disseminada por políticos e meios de comunicação de que este tipo de tratamento seria “comprovadamente ineficaz”.
Já o Ministério da Saúde, que até o fim de 2020 recomendava abertamente o tratamento precoce, deixou de fazê-lo depois que o atual ministro, Marcelo Queiroga, assumiu a pasta em março deste ano. Por outro lado, o ministério nunca afirmou que o tratamento precoce contra a Covid-19 é comprovadamente ineficaz – apenas que drogas específicas associadas a esse tipo de tratamento, como a hidroxicloroquina, a azitromicina e a ivermectina, não têm evidência científica que justifique seu uso.
Se não é crime, tratamento pode ser alvo de denúncia?
Se a prescrição do tratamento precoce não é um crime e se a autonomia médica neste ponto está respaldada por autoridades da saúde, é possível criar um canal de denúncias relacionadas ao tratamento precoce dentro de uma CPI?
Dário Júnior, doutor em Direito Processual pela PUC de Minas Gerais, explica que os senadores tentam enquadrar a receita do tratamento precoce como um tipo de improbidade administrativa. É a mesma linha de atuação do Ministério Público, que abriu inquéritos pelo país acusando de improbidade administrativa autoridades que avalizaram o tratamento precoce e os medicamentos chamados pejorativamente de “kit Covid”.
Em julho, por exemplo, o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) por “adoção ilegal do tratamento precoce como política pública contra a pandemia”. Em agosto, o Ministério Público do Estado da Bahia abriu uma ação contra a prefeitura de Porto Seguro exigindo que o município pare de distribuir medicamentos usados no tratamento precoce, como cloroquina, hidroxicloroquina, nitazoxanida e ivermectina.
A CPI da Covid estaria seguindo a mesma estratégia, com base no fato de que os tratamentos receitados ainda não têm eficácia totalmente comprovada. “Mesmo não sendo crime, eles podem querer enquadrar isso como improbidade administrativa e excluir o médico dos quadros do SUS ou de hospitais públicos, mesmo com esse respaldo do CFM”, afirma Dário Júnior.
Os médicos que receitam o tratamento precoce, contudo, não estão totalmente desprotegidos. “Se a pessoa fizer uma denúncia e depois o médico conseguir se defender e provar que não infringiu nenhuma norma ou código ético, o denunciante pode ter que responder por perdas e danos”, explica o jurista.
Caça às bruxas contra o tratamento precoce é anticientífica, afirma biólogo
Para Eli Vieira, biólogo geneticista com pós-graduação pela UFRGS e pela Universidade de Cambridge, a caça às bruxas contra o tratamento precoce que ocorre no debate público brasileiro é anticientífica. “São autoridades, políticos e influencers querendo interferir num debate que tem que acontecer dentro da ciência”, diz.
Para ele, algumas drogas utilizadas no tratamento precoce, como a ivermectina, podem ter alguma eficácia para minimizar os sintomas da Covid-19. “Quando eu digo eficácia, não quero dizer que é a panaceia, não. Tem um grupo que atrapalhou todo mundo, que foi o grupo que insistiu que a ivermectina ia dar conta de tudo”, afirma.
Colocar o foco em opiniões como essa para refutar o outro lado, segundo ele, prejudica o debate científico. “As partes desonestas dos debates sempre fazem isto: elas escolhem os piores exemplares do outro lado. É uma atitude de discussão que não é racional, não é produtiva.”
Outro problema, para Vieira, é a noção de que precisaria haver um consenso geral entre cientistas para que o tratamento precoce fosse considerado uma alternativa. “Consensos não são os reis da decisão do que é científico ou não. Quem manda são as evidências. E, por definição, evidências novas não são consensuais, porque a comunidade que pesquisas o assunto não está sabendo totalmente delas. São evidências novas”, diz. “É danoso esse papo de que ‘não há consenso’. E, com isso, não estou querendo dizer que consenso não importa”, acrescenta.
Para o cientista, a ideia de que nada pode funcionar como tratamento precoce para a Covid-19 é uma postura dogmática, e não científica. “Seria o primeiro caso na história de um vírus para o qual não existe nada no nosso arsenal de drogas que possa fazer efeito. Então, essa posição de que todo tratamento precoce está descomprovado, está refutado, é totalmente absurda.”
A visão de que seria necessária comprovação definitiva sobre a eficácia de uma droga, aliás, também carrega um equívoco, destaca ele. “Em ciências empíricas, a gente trabalha com evidências, com acúmulo de evidências. Prova é coisa da matemática e da lógica. Esse papo de comprovação dá uma impressão de certeza, o que não existe. O que a gente faz sempre é comparar: ‘tem mais evidência para isso do que evidência para aquilo’”, explica Vieira.
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