Editorial
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Projetos de lei em todo o país pretendem criar passaportes de vacina, ou impedir que eles sejam impostos à população.| Foto: Christian Rizzi/PMFI
A primeira batalha judicial sobre o passaporte sanitário, ou passaporte de vacina, no Brasil foi vencida pelos que defendem a adoção do documento, que só permite o acesso a estabelecimentos comerciais, eventos e instalações públicas e privadas aos que comprovarem terem sido vacinados contra a Covid-19. O passaporte instituído pelo prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, havia sido derrubado liminarmente pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mas foi restaurado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux. Outras cidades e estados estão estabelecendo imposições semelhantes, e há projetos no Congresso Nacional para se criar documentos de validade nacional. Mas até onde a necessidade de combater e derrotar o coronavírus pode justificar restrições a direitos como o de locomoção?
Ainda antes que a britânica Margaret Keenan recebesse sua vacina contra a Covid, em dezembro do ano passado, já se discutiam questões como a obrigatoriedade da vacinação. Na ocasião, a Gazeta do Povo lembrou que a vacinação é um pacto coletivo: as pessoas se imunizam não apenas para protegerem a si mesmas, mas também para impedir que o agente causador da doença chegue a quem não se vacinou, já que há muitos grupos que não podem se imunizar para certas doenças (como gestantes, crianças, idosos ou alérgicos a determinados componentes da vacina). É preciso que determinada parcela da população esteja vacinada para se criar essa barreira natural que impede o vírus ou bactéria de continuar se espalhando, e os recentes surtos de doenças como o sarampo mostram o que ocorre quando a cobertura vacinal fica reduzida. A proteção do bem comum, portanto, poderia justificar, em tese, uma vacinação obrigatória contra a Covid. Mas seria este o caso brasileiro?
No Brasil a adesão à vacinação contra a Covid tem sido bastante alta, sem nenhum tipo de obrigatoriedade, mostrando que no Brasil não foi preciso impor a imunização para que os números da Covid estejam em queda em todo o país
Ao contrário de países como os Estados Unidos, em que o movimento antivacina infelizmente é muito forte, no Brasil a adesão à vacinação contra a Covid tem sido bastante alta. Em 21 de setembro o país superou a marca de 90% da população adulta com ao menos uma dose; no dia anterior, havia sido atingido o patamar de 50% dos adultos com ciclo vacinal completo (duas doses, ou uma dose do imunizante da Janssen). Se esses números não são ainda maiores, não é por relutância da população, mas porque a oferta de vacinas segue menor que a demanda, ou porque muitos ainda estão aguardando o intervalo necessário entre doses. E tudo isso foi conseguido sem nenhum tipo de obrigatoriedade, mostrando que no Brasil não foi preciso impor a imunização para que os números da Covid – novas infecções, mortes e ocupação de leitos hospitalares – estejam em queda em todo o país, permitindo também a retomada de atividades até há pouco proibidas.
E, nas circunstâncias atuais, o que é o passaporte de vacina a não ser uma ferramenta de obrigatoriedade de vacinação? O gestor público não impõe a vacinação obrigatória de forma literal e explícita, mas, ao impedir que os não vacinados realizem uma série de atividades por não terem o documento, cria uma obrigação implícita, inclusive com caráter de punição aos que não obedecerem. Mesmo nos casos em que se aceita a exibição de testes negativos em vez do comprovante de vacinação, há um fator limitante de ordem econômica, pois, enquanto a vacina é gratuita, os testes são caros e sua repetição constante seria financeiramente inviável para a grande maioria dos brasileiros.
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Se, como vimos, a adesão voluntária e maciça dos brasileiros à vacinação torna desnecessária a sua obrigatoriedade, o mesmo se pode dizer do passaporte sanitário. Em um momento anterior, quando ainda havia muitos estabelecimentos fechados, a ideia até poderia servir para apressar a reativação de setores duramente atingidos pela pandemia, como afirmamos em junho, quando o Senado aprovou a criação do Certificado de Imunização e Segurança Sanitária (CSS). No entanto, com a redução cada vez maior das restrições, nem mesmo essa justificativa se aplica mais; no contexto atual, o passaporte serviria apenas como imposição a uma população que não precisa dela, ou seja, trata-se de medida que não passa pelo segundo dos crivos do princípio da proporcionalidade, o da necessidade.
Ainda assim, há quem não queira se vacinar, ainda que seu número não seja expressivo – ou, ao menos no papel, não o suficiente para que a sociedade como um todo siga vulnerável ao Sars-CoV-2. É preciso entender as razões destas pessoas, e muitas delas merecem consideração. É compreensível, por exemplo, a apreensão em relação a possíveis efeitos colaterais, pois ainda se trata de imunizantes em fase experimental. As aprovações definitivas de autoridades sanitárias mundo afora são um trâmite burocrático necessário, mas não evitam o fato de que é preciso esperar um período de tempo mais longo até haver conclusões mais sólidas sobre efeitos colaterais e que grupos estariam mais suscetíveis a eles. Casos de possíveis reações graves podem e devem ser investigados – e conclusões apressadas, tanto culpando quanto isentando a vacina, em nada ajudam a estabelecer a verdade. Estes e outros casos – como os de objetores de consciência que não gostariam de receber vacinas produzidas ou testadas em linhagens celulares provenientes de um aborto, como a HEK-293 – podem ser considerados motivos razoáveis para que alguém relute em receber a vacina contra a Covid.
Tem sido possível conter o coronavírus mantendo-se o respeito à liberdade e à autonomia das pessoas em relação à vacinação; não há por que desviar deste rumo para enveredar pelo das imposições desproporcionais
E, sendo estes motivos razoáveis, tais pessoas não podem ser simplesmente relegadas à condição de “cidadãos de segunda classe” – um risco que também já havíamos apontado antes mesmo da aprovação do CSS no Senado. Parte-se do pressuposto de que um não vacinado é uma ameaça, quando pode muito bem não estar infectado. Além disso, como justificativa para a manutenção de outras medidas profiláticas como o uso de máscaras, autoridades sanitárias têm ressaltado o fato de que mesmo os vacinados podem não apenas contrair a Covid, mas também transmiti-la. Evidentemente, o passaporte continuaria sendo uma medida desproporcional mesmo que a vacina impedisse totalmente a infecção e a transmissão, mas, se todos, vacinados ou não, continuam sendo possíveis transmissores da doença, a segregação se torna ainda mais ilógica.
Disso não se pode concluir que a vacina não funcione – ela funciona, tanto que é a explicação para a regressão da pandemia no Brasil. Ainda que um vacinado possa se infectar, sua chance de desenvolver formas graves da Covid fica bastante reduzida. A vacina é a porta de saída para a pandemia, e os brasileiros compreenderam isso; não precisam, portanto, ser obrigados ou coagidos a se imunizar. O passaporte de vacina, nas condições atuais, é desnecessário e, ainda por cima, viola direitos dos cidadãos que têm objeções bastante compreensíveis a respeito da imunização específica contra a Covid. Tem sido possível conter o coronavírus mantendo-se o respeito à liberdade e à autonomia das pessoas em relação à vacinação; não há por que desviar deste rumo para enveredar pelo das imposições desproporcionais.
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