Time de futebol Newcastle United foi comprado por ditador sanguinário, Mohammed Bin Salman, por centenas de milhões de euros
André Fran*, O Estado de S. Paulo
Desde criança sou aficionado por futebol, mas nunca imaginei que um dia estaria na arquibancada do Riade Stadium, na Arábia Saudita, para conferir o clássico local entre Al-Itihad e Al-Hilal. Na verdade, minha missão ali era registrar um momento histórico que pouco tinha a ver com a disputa em campo. Pela primeira vez as mulheres sauditas tinham sido autorizadas a assistir no estádio a uma partida de futebol.
Mohammed Bin Salman, o MBS, havia assumido o comando do país por meio de um golpe em que mandou prender (tudo bem que num hotel cinco estrelas) boa parte de seus opositores (e familiares) e essa concessão às mulheres fazia parte de um inédito plano de reformas liberais. Mas a verdade era muito mais sinistra do que seu sorriso de líder bonachão conseguia esconder. As mulheres no estádio, por exemplo, na verdade eram previamente selecionadas, ficavam isoladas do resto da torcida e deviam permanecer cobertas da cabeça aos pés. Algo similar ocorreu com a liberação para mulheres dirigirem. Se por um lado parecia que a Arábia Saudita finalmente seguia o resto do mundo (foram o último país do mundo a encerrar essa proibição), por outro a ativista que lutou por esse direito ironicamente não estava atrás do volante mas atrás das grades de uma prisão. O reino saudita nunca permitiu a entrada de turistas. Mulheres só podiam viajar ao país acompanhadas ou com a autorização de um homem responsável. Mas, com as novas reformas, vistos passaram a ser concedidos para ocasiões especiais como os torneios de golfe, provas de automobilismo e até shows de música que o país passou a receber. Algo até então impensável.
Bin Salman tentava passar a imagem de reformista e moderado com esse verniz de “transformação” quando o objetivo na verdade era variar a economia de seu país tão dependente do petróleo. E a Arábia Saudita seguia como uma das ditaduras mais fechadas, opressoras e sanguinárias do mundo. Em minha passagem pelo país, visitei a praça onde são decapitados opositores, supostos terroristas, adúlteros e infiéis sem direito à defesa ou julgamento adequado. Registrei a perseguição a homossexuais e a discriminação contra mulheres. Falei da repressão implacável aos ativistas e dos crimes de guerra praticados no Iêmen. Das violações de direitos humanos e do extremismo religioso. E, claro, permaneci o tempo todo preocupado por saber do assassinato de Jamal Khashoggi. O jornalista saudita assassinado dentro da embaixada de seu país em Istambul em uma operação cruel que contou com o envolvimento de MBS.PUBLICIDADE
Mas confesso que durante os 90 minutos daquela partida de futebol minha mente desligou um pouco da triste realidade à minha volta. Mesmo com a baixa qualidade do espetáculo. Não que isso fosse estranho para mim, uma vez que torço para o Botafogo. Nós, botafoguenses, fomos forjados assistindo perebas em campo e temos o caráter formado pelas decepções esportivas. Eu poderia reclamar com meu pai por me condenar a esse destino de sofrimento, mas o coitado passou por coisa ainda pior: ele fez parte da famosa geração que encarou 21 anos sem um título. Mas os laços criados entre pai e filho torcendo (e sofrendo) juntos supera tudo. E estávamos presentes no Maracanã em 1989 quando nosso pesadelo acabou com uma vitória contra o Flamengo na final do Campeonato Carioca. O heróico escrete que encerrou o capítulo mais triste da história do Botafogo havia sido montado por Emil Pinheiro, banqueiro do jogo do bicho que construiu um império na contravenção. Poderia ser uma controversa mancha em nossa história, mas essa relação promíscua não é exclusividade alvinegra. Talvez o mais famoso fora-da-lei envolvido no futebol seja Castor de Andrade, verdadeiro “capo” dos subúrbios cariocas que elevou o humilde Bangu à finalista do Brasileirão. Recentemente, personagens menos românticos também tiveram destaque por aqui. O iraniano Kia Joorabichian e o magnata russo Boris Beresovsky, da suspeita empresa MSI, alçaram com seus investimentos o Corinthians a campeão brasileiro de 2005. Até serem obrigados a deixar o país quando uma investigação do Ministério Público pediu o bloqueio de suas contas por lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Esse tipo de expediente não é exclusividade do Brasil e ganhou proporções gigantescas conforme o futebol foi se profissionalizando e movimentando somas vultosas no mundo todo.
Na Inglaterra, por exemplo, o Manchester City virou clube grande depois que foi comprado por Mansour Bin Zayed, membro da família real da ditadura dos Emirados Árabes. O Paris Saint-Germain contratou alguns dos maiores jogadores do mundo, como Mbappe, Neymar e Messi, graças à fortuna de seu dono, Nasser Al-Khelaïfi, ligado à ditadura do Qatar. E assim voltamos à Arábia Saudita e Mohammed Bin Salman. MBS, que possui uma fortuna dezenas de vezes maior que a dos donos de City e PSG, decidiu entrar na onda e comprar o tradicional Newcastle United, da Premier League. O ditador garante que não vai interferir nas decisões do clube, mas ele também afirma ser inocente no caso Khashoggi, né? Por ora, só há duas certezas: que essa é mais uma das medidas de “sportswashing” de MBS, uma forma de tentar limpar a imagem de seu país com objetivos meramente econômicos e que a torcida do Newcastle está empolgada como nunca. Um clube mediano e de origem operária foi comprado por uma ditadura sanguinária por centenas de milhões de euros. É a possibilidade de pais e filhos que sofreram por anos na arquibancada comemorarem contratações estelares, títulos inimagináveis e glórias antes inalcançáveis. Mas sabendo que cada gol de seu time está manchado de sangue inocente. Um dos dilemas do futebol atual.
Você ficaria feliz se Mohammed Bin Salman comprasse o seu time?
*É DIRETOR, APRESENTADOR DE TV, JORNALISTA E TEM MAIS DE 60 PAÍSES CARIMBADOS NO PASSAPORTE
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