Afonso Benites = El País
Amilton Gomes de Paula é um consultor que não sabe explicar como atua sua consultoria. Não sabe direito o telefone dela. Um pastor evangélico formado na Assembleia de Deus, representante da Igreja Batista e com o título de reverendo concedido pela Igreja da Unificação do sul coreano Sun Myung Moon, que admite mentir, mesmo diante de uma série de documentos que o contradigam. É também um empresário, que afirma atuar no ramo de projetos de resíduos sólidos, mas não demonstra um só trabalho que tenha concluído. É um missionário que se apresenta como representante de várias instituições, que nenhuma o reconhece como seu membro. Presidente de uma ONG registrada na área da educação e produção cinematográfica, mas que negocia vacinas. É um bolsonarista, que parece ter sido abandonado pelo Governo Jair Bolsonaro, ainda que tenha se esquivado de responder quais são suas conexões com o Ministério da Saúde.
© ADRIANO MACHADO (Reuters) O reverendo Amilton Gomes de Paula durante a CPI da Pandemia, nesta terça-feira.
Nesta terça-feira, o reverendo Amilton foi o primeiro a depor na Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia após o recesso parlamentar. Foi chamado para que os senadores explorassem o episódio da suposta cobrança de um dólar de propina por dose de vacinas da AstraZeneca. Chorou, disse estar arrependido de ter atuado junto ao Governo, mas pouco acrescentou à investigação. Por fim, expôs a fragilidade no processo de compras de imunizantes. Chama a atenção o fato de as portas do ministério terem sido escancaradas para ele, mesmo que não tenha nunca vendido um lápis sequer para a pasta.
Teve ao menos três encontros com representantes no Ministério da Saúde, nos quais foram oferecidas 400 milhões de doses de vacina contra covid-19. Ele era o intermediador da Davati Medical Suplly, que dizia ter condições de vender os imunizantes da AstraZeneca e da Pfizer, mas na prática, não conseguiu comprovar que teria acesso a esse produto. E por qual razão ele teve acesso rápido, enquanto Pfizer, o Covax Facility ou o Butantan tiveram dificuldades em negociar com o Governo? Isso ainda não está claro.
O religioso diz que não conhecia ninguém no ministério. Em seu depoimento, o reverendo Amilton afirmou que apenas mandou um e-mail para o ministério solicitando uma audiência. Foi recebido no mesmo dia. Quatro horas após enviar a mensagem eletrônica. “Queria essa eficiência do governo também com a Pfizer. O que nos espanta é que farmacêuticas de todo o mundo não tiveram esse tipo de tratamento. É um fenômeno isso”, disse o senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP), em alusão às centenas de e-mails da presidência da Pfizer no Brasil que não foram respondidas pelo Governo Bolsonaro. Os executivos da Pfizer levaram seis meses para serem atendidos.
Nas redes sociais, todavia, o reverendo Amilton posta fotos ao lado de Flávio Bolsonaro. Ele admite ter feito campanha para Jair Bolsonaro em 2018. E, de acordo com os registros do Tribunal Superior Eleitoral, entre janeiro de 2019 e abril de 2021 foi filiado ao PSL em Brasília, o partido pelo qual Bolsonaro se elegeu presidente.
Diante de documentos obtidos após as quebras de sigilos telemáticos de outros investigados, o reverendo ainda admitiu que mentiu, que fez bravatas em ao menos duas ocasiões. Em uma delas, teria dito a um de seus companheiros na tentativa de vender vacinas, Luiz Paulo Dominghetti, que a primeira-dama Michelle Bolsonaro o ajudaria na negociação. “Michelle entrou no circuito”, dizia uma mensagem enviada pelo reverendo a Dominghetti. Na outra, enviada no dia 16 de março, afirmou que teria estado reunido com quem mandava no Governo. “Ontem falei com quem manda. Tudo certo. Estão fazendo uma corrida compliance da informação da grande quantidade de vacinas”. Ocorre que no dia 15 de março, Dominghetti avisou uma terceira pessoa que o reverendo tinha se encontrado com o presidente. “O reverendo, nesse momento, está com o 01”. Na CPI, o religioso voltou atrás. “É, isso aí foi uma bravata”. Ele alegou que tento mostrar um prestígio que não tinha.
Os vaivéns do pastor irritaram a todos na CPI, até os governistas. “Não sei se vossa senhoria foi enganada, ludibriada ou se é parte de uma tríade de golpistas”, disse Marcos Rogério (DEM-RO), principal articulador da defesa do Governo Bolsonaro na CPI da Pandemia. Ele disse estar em dúvida se o reverendo fez parte de uma tentativa de corromper servidores do Governo ou não. Nessa hora, o pastor chorou. Copiosamente. Pediu perdão aos senadores e disse estar arrependido.
Quando indagado sobre o que o motivou a intermediar compra de vacinas com o Governo, o reverendo disse que agiu por causas humanitárias e porque estava sensível por ter perdido um ente querido para a covid-19. Por fim, admitiu que receberia uma doação da Davati, caso fosse firmado o contrato de venda de vacinas com o Governo. Só não quis revelar os valores que receberia. “Nada disso daqui é verdadeiro, nada! A oferta de vacinas é mentirosa, a conversa fiada de apoio humanitário é mentirosa, tudo atrás de dinheiro no pior momento da vida do Brasil”, disse o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). O parlamentar, ainda arrematou: “Se em algum momento o senhor efetivamente teve na sua conduta o princípio cristão, já passou muito da hora do arrependimento; agora é hora de punição”.
Próximas sessões
Nesta terça-feira, além do depoimento do reverendo bolsonarista, os parlamentares da CPI aprovaram a quebra de sigilo da VTLog, uma empresa contra a qual pesa a suspeita de recebimento de propina em contratos com a Saúde e debateram a convocação do ministro da Defesa, Walter Braga Netto. Em princípio, o requerimento seria analisado já, mas acabou sendo postergado para a próxima semana.
Há um temor entre a classe política de que haja um recrudescimento do clima entre as Forças Armadas e o Legislativo num momento em que o presidente Bolsonaro faz ameaças constantes contra a democracia. Braga Netto e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica assinaram uma nota criticando o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), no início de julho.
Nesta quarta-feira, os parlamentares interrogarão o ex-diretor de logística do Ministério da Saúde, coronel Marcelo Blanco, que estava presente no jantar onde teria sido feito um pedido propina – 1 dólar por vacina — a Luiz Dominguetti, representante autônomo da Davati. Na quinta, será a vez do assessor informal da pasta, Airton Cascavel.
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