domingo, 22 de agosto de 2021

NÃO TEMOS CONTROLE ABSOLUTO DO FUTURO

 

  1. Cultura 

‘Capotar’, aqui, significa ir reagindo ao mundo ao redor a partir de pequenos acidentes e acasos. Os exemplos que darei são concretos. Qualquer semelhança com a vida real é verdadeira

Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo

Falamos muito de estratégia: a capacidade de antever e preparar os passos seguintes. Funciona das guerras às carreiras, da educação de filhos ao cálculo político. O termo está em alta nas leituras corporativas. 

Sabemos que ninguém tem controle absoluto do futuro. O que está à frente é aleatório e nunca pode existir um plano minucioso total, pois, necessariamente, o acaso consegue se impor. As teorias costumam debater possibilidades de cenários adversos. O conto A Cartomante (Machado de Assis) sempre mostra que o porvir adora esposar o randômico e união irônica. 

Vou exemplificar. Se você tivesse um filho por volta de 1980, e quisesse prepará-lo para uma carreira brilhante, colocaria em boas escolas, cursos de línguas, viagens instrutivas e muitos cuidados para o mundo. Eu e você jamais imaginaríamos que ser youtuber seria uma das atividades mais lucrativas. Para tal atividade, seria bom ter inscrito o filho em aulas de interpretação, criatividade e uso de iluminação. Quem incluiria ring lights na formação do seu filho até o ano 2000? Claro que a boa formação tradicional continua tendo enorme valor. A vida apenas aumentou muito as possibilidades. 

Olhamos produtos acabados, inclusive biográficos. Gostamos de indicar que foram fruto de muita reflexão estratégica. A realidade? O acaso desempenha um papel central na vida da maioria. Qual o meio de transporte até o ponto a que chegamos? Quase sempre “capotando”. “Capotar”, aqui, significa ir reagindo ao mundo ao redor a partir de pequenos acidentes e acasos. Os exemplos que darei são concretos. Qualquer semelhança com a vida real é verdadeira. 

Uma amiga teve um filho com o marido e, infelizmente, o casamento foi enfrentando dificuldades. Quando o menino tinha dois anos, acharam por bem fazer a separação, porém esbarraram em um problema inesperado: a falta de dinheiro para o divórcio. A renda era escassa para os dois sob o mesmo teto e inviável para promover outro endereço. Decidiram ao melhor estilo harmônico: até que houvesse melhoria financeira, ele dormiria em outro quarto e conviveriam, todavia não seriam mais marido e mulher. Bem, a mesma falta de dinheiro estimulava que ambos não saíssem ou passeassem em separado. Foram “capotando” no mesmo endereço até que, em uma noite fria, sem fundos, com hormônios, geraram uma filha. O casamento segue até hoje. Tudo fruto de “capotagens” variadas. 

A crise estimula mudanças de rota. Claro: podemos ter a estratégia. Todavia, ela dialogará com as cartas que saem de forma indecifrável. Meu exemplo? Terminado o curso superior, comecei a dar aula na mesma universidade que me formou: a Unisinos (São Leopoldo – RS). Inscrevi-me no curso de mestrado da PUC-Porto Alegre. Jovem professor universitário, com 23 anos, parecia ter uma vida inteira decidida. Um amigo meu, Sérgio Bairon, estava em São Paulo começando a pós na USP. Convidou-me para vir conhecer o processo seletivo. Embarquei em um ônibus e, 18 horas depois, estava na rodoviária do Tietê. Decidi fazer a prova da FFLCH-USP. Passei. Pedi demissão da minha querida Unisinos e apostei em São Paulo, morando em uma pensão e voltando a dar aulas para (o que então era) a quinta série. Fiz a pós, doutorei-me, fiz o concurso da Unicamp e entrei. De novo, uma década depois, eu estava em uma linha reta: professor concursado de um dos melhores cursos do país na minha área. Quase uma ferrovia reta e direta para minha vida. Tudo parecia fruto do planejamento estratégico de anos de muito, muito estudo. 

Claro, como professor eu dava palestras acadêmicas em congressos e apresentava trabalhos. Comecei a fazê-lo em ambientes corporativos. Alguns vídeos vazaram na internet e foram viralizando. Os convites cresceram. Surgiram outros caminhos na imprensa e… estou aqui agora. O caso tem ambiguidades: jamais imaginei exercer as funções que tenho hoje. Porém, sem dúvida, os preparos da minha área e das minhas leituras estão presentes em todo ato. Capotei ou dirigi o carro parando em postos que fossem confiáveis na jornada? Há argumentos bons para os dois casos.

Homem reflexivo
Imagem ilustrativa Foto: Pixabay/@Fotorech

Sim, querida leitora e estimado leitor: quando nos sentamos com alunos, orientandos, netos ou funcionários, somos obrigados ao papel hierárquico de mostrar como seguimos rotas claras que expliquem como chegamos até ali. Nossa família? Fruto de escolha racional. Nossas carreiras seguiram um crescente acerto de boas portas abertas por nós mesmos… Passamos a dar conselhos olhando a estrada reta, clara e objetiva que seguimos. Raramente destacamos as capotagens, o acaso, os incidentes, as mudanças sem nenhuma lógica. 

Gauguin deixou a carreira financeira para pintar. Minha amiga Gabriela Prioli se preparou muito para ser uma excelente advogada criminalista. Meu pai abandonou o magistério para ser advogado. Minha mãe planejou o dobro de filhos que realmente teve. Médicos oftalmologistas e cardiologistas se tornaram renomados endocrinologistas ou nutrólogos. Vida, mercado, capotagens, escolhas em meio a mudanças. Se eu tivesse que dar um conselho, diria: “Evite capotar, mas, se acontecer, esteja de cinto e tente transformar os danos em aprendizado”. E repetiria com um uísque: “Keep walking”… Esta é minha esperança maior. 

* Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, autor de A Coragem da Esperança, entre outros

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