Pior do que não ter dinheiro, é ter tido e perdê-lo. É preciso ter prudência sobre o futuro
Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
Quase todos crescemos com demandas reprimidas, especialmente financeiras. A falta de recursos impede certo padrão de consumo. Os que possuem quase nada, os medianos e mesmo os ricos têm algum tipo de repressão ao consumo. Faça um exercício de imaginação: se eu ganhasse cem mil reais por mês. Claro que isso resolveria grande parte das minhas demandas atuais. “Eu poderia viajar, trocar de carro, pagar contas atrasadas!” Sim, minha querida sonhadora e meu estimado sonhador, mas dentro de limites. Há algumas pessoas que ganham cem mil reais por mês e podem viajar, mas não podem, por exemplo, passar as férias todas na suíte real do hotel Burj Al Arab Jumeirah de Dubai. Ali, em dois dias, a renda magnífica da pessoa de cem mil reais estaria consumida. Se optasse pela suíte similar do hotel Presidente Wilson (Genebra, Suíça), necessitaria quase dois meses de renda para passar um dia naquele espaço com vista para o lago. Sim, alguém com cem mil reais por mês (ou até um milhão) também teria “demandas reprimidas”.
A demanda reprimida explica muita coisa na vida profissional e financeira. Pessoas que trabalham demais costumam oferecer a si mesmas recompensas que comprometem sua saúde financeira. “Ah, eu mereço, eu trabalhei tanto!” Além do estresse do excesso laboral, existe um sistema de compensações perigoso quando vivemos sobre o fio da navalha da exaustão. O mesmo ocorre para pessoas que tiveram necessidades básicas severamente reprimidas por muito tempo e, de repente, entram na posse de uma grande quantia. Pode ser uma indenização trabalhista, uma loteria, uma herança súbita: a conta, antes vermelha, torna-se superavitária. Anos lutando com um orçamento que não fechava, evitando comer ou vestir o que desejava, morando em casa onde a reforma essencial era adiada a cada semestre e, de repente, as pepitas de um ouro súbito refulgem. É frequente que o dinheiro se evapore com rapidez. É a tal de “demanda reprimida”. “Dinheiro na mão é vendaval”, cantava Paulinho da Viola.
Quando escrevo isso, não me refiro apenas às histórias contadas por terceiros ou criadas por mente ficcional. Também eu já recebi dinheiros súbitos no passado e já vi o milagre da “subtração dos pães”, a inversão do milagre bíblico. Se a localidade de Tabgha visualizou dois peixes e cinco pães alimentarem milhares de pessoas sob a brisa gentil do Mar da Galileia, cestas repentinas com pães e peixes podem minguar na mão de quem pensa que o fenômeno vai se repetir sempre. Se o universo ao meu redor tiver, igualmente, grande fome, a evaporação se acelera. Trocar meu carro, presentear esposa e filhos, atender a santa mãezinha que não tem casa própria, emprestar a um amigo que se sufoca com dívidas e puf! Sumiu o capital da mesma forma miraculosa com que surgiu.
Sim: pobres, classe média e ricos têm “demandas reprimidas”. Não tratadas ou refletidas, elas podem corroer qualquer montante. A fome excessiva pode levar a um mastigar tão rápido que provoca mal-estar. A sede em excesso possui potencial para que a bebida escorra do copo e dos lábios para se perder entre roupas e mesa. Como pedir moderação a quem atravessou um deserto de austeridade ou necessidade? De que forma se pode incitar à prudência quem carrega uma dor profunda e corrosiva? Em toda cena de filmes nos quais um grupo, quase à morte, encontra um oásis, todos se atiram nas águas, ninguém faz uma degustação equilibrada do líquido. A sede abrasiva derruba civilidades. Dizendo de forma popular, “quem nunca comeu melado, quando come, se lambuza”.
Bem, quanto melado precisamos para um patamar de prudência? Difícil dizer. Há um erro comum no Brasil: supor que educação financeira é coisa de gente muito rica. Na verdade, quanto menor o capital, maior deveria ser a educação dos bens. Voltando um pouco: o cantil deve ser racionado no deserto, não no oásis. Gastos são estudados pelos economistas, todavia, o caso quase sempre é mais psíquico do que de leis de mercado.
Sim, a abundância ajuda. Todas as vezes que meu refrigerador esteve sem nada, tive vontades fortes de comer muito. Com estoques em casa, a vontade diminui. Será que o sábio rei Salomão olhava com tédio para seu harém numeroso com setecentas esposas e trezentas concubinas? Em oposição, como pensava o adolescente hebreu fervente de hormônios que nem uma única mulher conseguia nas vielas de Jerusalém? Se, subitamente, por um passe mágico e inesperado, o jovem ansioso estivesse no lugar do governante, supomos que os dias iniciais seriam de intensidade única. Agora, com o refrigerador cheio, cansaria logo? Alguns especialistas na psique imaginam que hábitos de gastos seguem uma lógica erótica, o que ajuda a explicar minha referência ao rei de Israel. Salomão foi homem de muitas mulheres e de grande fortuna. Uma coisa excluiria outra ou explicaria?
Bem, todos temos carências afetivas, sexuais e financeiras. Ter consciência delas ajuda bastante. Todo dinheiro deve responder a algumas questões antes de assumir a cidadania no meu lar: de onde veio este haverá mais? Como fazer com que ele vire mais dinheiro? Quais demandas posso atender agora e quais posso adiar para que sejam atendidas no futuro sem risco? Sem responder a tais perguntas, há uma chance de evaporação dolorosa. Sim, pior do que não ter dinheiro, é ter tido e perdê-lo. É preciso ter esperança e alguma prudência sobre o futuro.
É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCO-ESPINHO’, ENTRE OUTROS
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