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Antonio Fernando Borges, especial para a Gazeta do Povo
Johann Amos Comenius: depois de sua passagem, a grama verde da Educação nunca mais brotou no terreno árido do ensino universal e obrigatório.| Foto: Wikimedia Commons
Logo na abertura do Diálogo ‘Mênon’, dedicado à natureza das virtudes, o personagem-título pergunta a Sócrates: “Afinal, a virtude pode ser ensinada?”. Muitos leitores do texto têm arriscado que a questão permaneceu sem resposta, enquanto outros dizem que o próprio Diálogo, na íntegra, é uma grande explicação. Mas o que parece escapar à maioria é que a pergunta inaugura uma parceria valiosa entre Educação e Virtude – e essa equivalência sugere não apenas que a Virtude pode (e deve) ser ensinada, mas sobretudo que a própria Educação deve (e pode) ser virtuosa.
Dois milênios e alguns séculos depois, enfrentamos um cenário de ressentimento e burocracia, em que uma jovem com capacidade acima da média (um proverbial superdotado) precisa recorrer à Justiça para garantir matrícula numa Universidade antes de concluir o ensino médio. Sem abusar do direito de tirar conclusões precipitadas, podemos desconfiar de que só nos dicionários Educação e Ensino permanecem sinônimos: na vida real, as duas palavras se tornaram verdadeiramente antípodas. E mais: o fato de o ensino ter se tornado “universal e obrigatório” não parece uma solução, mas parte – gravíssima! – do problema.
O italiano Alessando Manzoni escreveu (no incrível romance ‘Os Noivos’) que historiadores se assemelham a soldados, porque capturam apenas os troféus mais chamativos e supérfluos – tais como “as batalhas e as intrigas políticas”. Como romancista, Manzoni foi também um historiador muito lúcido: os que escrevem a História parecem estar disputando atenções com aqueles que a fizeram – e, preocupados com eventuais glórias futuras, acabam distorcendo os fatos passados. Na História da Educação, há espaço para nomes “chamativos” (de Jean-Jacques Rousseau a Anísio Teixeira e Paulo Freire), mas se reserva apenas uma prateleira secundária para alguém que foi um personagem-chave: o pedagogo Johannes Amos Comenius (1592-1670).
O homem, o “reformador social”
No período final da Idade Média, com o declínio da ordem cristã e a “secularização do mundo”, a avidez de alguns líderes e pensadores religiosos tratou de ganhar espaço entre as almas e mentes mais desavisadas. Foi a era dos “reformadores sociais”, arautos de novos reinos, ou melhor, de um novo reino mundial de Cristo – a chamada ‘Novus Ordo Seclorum’.
Entre eles, havia gênios e loucos, homens santos e um bom punhado de criminosos – em suma, organizadores brilhantes e desordeiros coléricos. Em comum, todos nutriam a mesma intenção de empunhar a chibata da Justiça divina e promover às pressas o anunciado Juízo Final. Talvez seja apenas um truísmo, puro e simples, ou uma constatação das mais óbvias, mas o fato é que, de um modo ou de outro, estamos sempre no fim dos tempos – ou, pelo menos, no “apogeu” do tempo que nos coube atingir. No fim da Idade Média, não aconteceu diferente: pregava-se a renovação, a mudança milenarista, e isso costuma aglutinar os tipos mais extremos.
Um desses malucos perigosíssimos foi Johann Amos Comenius (1592-1670), o bispo protestante de origem tcheca que é considerado “o pai da didática moderna” – o que, num Dicionário de Verdades Escondidas, pode ser traduzido por algo assim como “coveiro da Educação milenar”.
A biografia de todo homem – mesmo em versão compacta – é por certo muito mais do que uma cadeia de fatos entre as duas “datas extremas”. A biografia de Comenius também é marcada por perdas, sofrimento e esforço – como a de qualquer outra criatura. Com a diferença de que seus biógrafos o condenam ou enaltecem em função de seus sofrimentos e perdas, como se houvesse uma inevitável relação de causa e efeito entre a vida, a fama e as ideias de alguém.
Facilitando as coisas para quem entra aqui em contato inicial com nosso personagem:
Comenius nasceu em 28 de março de 1592 em Nivnice, Morávia – atual República Tcheca. Filho único de protestantes do grupo Bohemian Brethren (Irmãos da Boêmia), ficou órfão aos 12 anos de idade, quando perdeu a mãe, o pai e as duas irmãs, vítimas da peste que assolava a Europa. Aos 16 anos, foi enviado para uma escola secundária na cidade de Přerov. onde foi o incentivaram a seguir o ministério. (Assim começa o mal…) Estudou durante dois anos no Herborn Gymnasium, na região de Nassau. Em 1613, ingressou na Universidade de Heidelberg, onde permaneceu apenas um ano. Escolheu então o caminho da profissionalização religiosa e se tornou pastor protestante – mas a guerra o obrigou a fugir em 1618, junto com outros líderes.
As sementes das intenções perigosas de Comenius caíram desde cedo em solo fértil. Aos 26 anos, tornou-se professor da sua antiga escola e, pouco depois, assumiu o cargo de diretor das escolas do Norte da Morávia. Sua carreira ganhou fôlego especial quando o governo sueco o contratou para promover uma reforma do sistema escolar e produzir livros didáticos. Ao completar 50 anos, dois novos convites: fundar o Colégio Pansófico na França e ser reitor na Universidade de Harvard, inaugurada alguns anos antes (1636). Por mais de quatro décadas, Comenius percorreu a Europa cumprindo sua sinistra missão: reformar o ensino. Morreu em 15 de novembro de 1670.
Muitos o citam, alguns o criticam e outros tantos o elogiam, mas raríssimos atribuem a Johann Amos Comenius a responsabilidade que é primordialmente dele, por fato e por direito: depois de sua passagem, a grama verde da Educação nunca mais brotou no terreno árido do ensino universal e obrigatório. Eis aqui duas palavras que promovem coisas terríveis sob a capa de supostos objetivos elevados. Pois, se a universalidade democratiza, a obrigatoriedade faz justamente o oposto, coletivizando as pessoas, com a mesma garra tirânica.
No melhor estilo “aquilo deu nisso”: onde se anunciou a implementação de novos direitos, estabeleceu-se a mais cruenta das obrigações; em vez de se promover uma Educação virtuosa, impuseram-se currículos e, desde então, exigem-se diplomas em escala que tende ao infinito (graduação, mestrado, doutorado e outros tantos pós-isso e aquilo). E tudo, acreditem, começou em Comenius.
O homem, uma “nova ordem” para o velho mundo
Aconteceu assim: chamando para si o aspecto pedagógico da renovação milenarista de seu tempo, Comenius defendeu a necessidade de uma Nova Ordem também nas escolas – o que acabou alicerçando a famigerada Nova Ordem Mundial da qual, mais do que testemunhas, somos todos vítimas.
Sendo cristão, Comenius queria que a religião estivesse no comando; sendo protestante, pretendia que sua reforma fosse igual à Reforma de Lutero – quer dizer, radical e “revolucionária”. Propôs, enfim, uma “educação para todos” e com a “colaboração de todos” – apregoando que todos deveriam ser enviados às escolas sem distinção, e não apenas os filhos dos ricos. Mas, trocando em miúdos, tudo isso significou apenas que o ensino deveria estar a cargo, não dos “mais doutos”, e sim de profissionais especializados. E nisso começou toda a encrenca que chegou até nós.
O livro mais conhecido de Comenius, ‘Didática Magna’, é também o melhor monumento-síntese de todo o projeto. Logo nas primeiras páginas, ele defende a implantação de um método universal de “ensinar tudo a todos”. E a ideia era “ensinar com tal certeza, que seja impossível não conseguir bons resultados”. E mais: ensinar rapidamente, “sem nenhum enfado ou aborrecimento para os mestres e os alunos”, e sobretudo “com sumo prazer para uns e para outros”.
O leitor atento já terá percebido a isca atraente que esconde um anzol afiado: a promessa de uma experiência prazerosa servia para atenuar o desconforto de seu caráter impositivo. E, de fato, o sucesso da proposta diabólica residiu na sua aparente “racionalidade” – na verdade, em sua argumentação falaciosa. Caso alguma dúvida reste, este trecho do livro a dissipa:
“Se um pai de família não cuida ele mesmo de tudo o que é necessário à administração doméstica, mas confia em vários colaboradores, por que também não deve fazer também neste caso [i.e., no caso do ensino]? Quando precisa de farinha, vai ao moleiro; de bebidas, ao taberneiro; de carne, ao magarefe; os pais raramente estão em condições de educar os seus filhos com proveito e raramente tem tempo para isso; seria mais útil instruir a juventude em grupos mais numerosos, porque maior é o fruto do trabalho e maior é a alegria quando uns tem o exemplo e o estímulo dos outros; e serve-nos o exemplo da natureza a mostrar-nos que as coisas, para crescerem em abundância, devem ser geradas em local determinado: as árvores nos bosques, os peixes na água e os metais nas entranhas da terra nascem em grande quantidade”. (Obs.: os grifos são meus)
Grupos mais numerosos de jovens, em locais pré-determinados, aos cuidados de especialistas: onde estaria o prazer, em tudo isso?
Virtudes são qualidades e, nesse sentido, impõem-se como tópicos valorativos, impossíveis de se quantificar. Em contrapartida, o prazer é da ordem no número, porque dependerá sempre de medidas e quantidades. Assim, por mais que muitos julguem que são equivalentes, prazer e virtude pertencem a esferas bem distintas: o primeiro diz respeito ao conjunto de impressões produzidas sobre os sentidos, enquanto o segundo tópico designa itens consoantes com o que for correto e desejável do ponto de vista dos valores morais. Em suma: valores são éticos; prazeres são sensíveis. É claro e simples assim.
Para rechear, confeitar, anunciar e vender seu pão tão amargo e sem substância, Comenius tratou justamente de fundir dois elementos tão diferenciados em seu liquidificador-de-equívocos.
O resultado? Em vez de apostar na virtude como a única trilha para a felicidade (que é, afinal, a modalidade mais sublime de prazer), a Eminência Parda da pedagogia moderna enveredou por um atalho perigoso, elevando os prazeres à categoria de… virtudes! O resto foi questão de tempo e de alguns detalhes funestos.
O resultado final? Um desastre anunciado: o alardeado “acesso universal” ao ensino foi alcançado exclusivamente às custas da mediocrização de conteúdos e da redução dos métodos pedagógicos a um conjunto de malabarismos emocionais. Nos termos do Ortega y Gasset de ‘A Rebelião das Massas’, pode-se abreviar: foi a gênese do homem-massa, em quem o dever cedeu espaço ao prazer.
Não precisa mais do que olhar em volta, leitor. Nunca foi tão fácil, tão rápido e tão agradável “estudar”! Mas o que as estatísticas efetivamente mostram é a quantificação de um batalhão de criaturinhas adestradas, ao mesmo tempo em que escondem o aspecto qualitativo, a saber: a ausência de qualidade em tudo isso. E “tudo isso” se traduz sobretudo no fato de que o “ensino obrigatório para todos” simplesmente acabou com a educação.
Testemunhas e documentos dão conta de que, em muitos lugares, a mudança foi imposta sob a pressão de armas, aos cidadãos que resistiram e buscaram proteger a integridade da família e a sanidade de seus filhos. Por não confiar nos historiadores – verdadeiros “caçadores de troféus” – a História às vezes prefere falar por si mesma. E os fatos cumprem bem essa função, de apresentar o mundo real.
O homem, a face oculta
Na galeria de vilões da História, Johannes Amos Comenius é uma face oculta, sob camadas de poeira e esquecimento. Ao contrário de um Rousseau ou Paulo Freire, não é figurinha fácil no álbum da Educação – até porque ninguém mais do que ele ajudou a esvaziar esta palavra. Entre os motivos para tamanha “discrição” em torno de seu nome, pode-se arriscar um, bem forte: em todo esse processo de degradação progressiva do magistério, a atuação de Comenius aconteceu nos bastidores, mais do que em cena aberta.
Mesmo ao dirigir colégios e universidades, deixava os estragos mais graves para a “calada da noite”. E, embora tenha deixado uma obra extensa, sua atuação foi mais pragmática do que doutrinária – em síntese, foi uma perigosa (não custa repetir) Eminência Parda. O tempo não fez mais do que acentuar essa vocação…
Em termos doutrinários, a pedagogia de Comenius nada tem de original. Nasceu, sobretudo, de um amálgama teorético de racionalismo (a crença na argumentação e na Razão) e pietismo – que, na versão reducionista de Comenius, é justamente seu contrário, ao defender a proeminência da Fé sobre a Razão. Somem-se à receita algumas porções de Bacon, Descartes e do ilustre desconhecido Petrus Ramus (1515-1572), lógico e humanista francês que também se dedicou à reforma deformadora do ensino.
(Ao contrário do que costumam dizer os hagiógrafos de Comenius, Santo Tomás de Aquino e os escolásticos passam ao largo dessa estrovenga.)
Para infelicidade geral do mundo contemporâneo, o saldo final é irrefutavelmente deficitário. Hoje, frases como “Eu acredito na Educação!” ou “A Educação é a saída!” são apenas enunciados vazios, temperados de suspiros nostálgicos – a ponto de se poder aplicar à Educação (mais do que nunca travestida de “ensino”) a máxima com que os iluministas rotularam a religião: “Quando não é loucura, é pura esperteza”.
Mas, se para todo veneno existe a esperança do antídoto, é válido encerrar prescrevendo uma dose diária do escritor Mark Twain, cujas máximas são muito mais pedagógicas e úteis do que a herança nefasta de Comenius. E um dos conselhos de Twain é, por sinal, atualíssimo: “Nunca permita que a escola atrapalhe a sua educação”.
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