A cultura do cancelamento teve o mérito de chamar a atenção para grandes preconceitos e para intolerâncias, mas tem a tendência de também produzir linchamentos de pessoas, boicotes e interdições
Celso Ming*, O Estado de S.Paulo
Em seu livro Meditaciones del Quijote, o filósofo e ensaísta espanhol Ortega y Gasset, deixou um pensamento que continua despertando debates. E deve ser lembrado especialmente agora quando recrudesce a chamada cultura do cancelamento. Escreveu ele: “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”.
Alguém já chamou São Paulo de escravocrata? Não, provavelmente. Não consta que ele tivesse escravos. No entanto, ele assumiu posições que aceitavam a escravidão. É o que se pode conferir na Epístola a Timóteo 6:1: “Todos os que estão sob o jugo da escravidão devem considerar os seus próprios senhores como dignos de todo o respeito…”. Ou seja, Paulo de Tarso não tacaria fogo na estátua de Borba Gato por ter sido um preador de índios, tal como também foi outro bandeirante, Fernão Dias Paes Leme, sepultado com honras na nave central da igreja do Mosteiro de São Bento, em São Paulo.
A cultura do cancelamento não nasceu com as redes sociais. É coisa antiga, ainda que com outros nomes. Algumas vezes teve o mérito de chamar a atenção para grandes preconceitos e para intolerâncias, mas tem a tendência de também produzir linchamentos de pessoas, boicotes e interdições, como se viu nos tempos da Santa Inquisição, da caça às bruxas e ao longo de tantas guerras religiosas.
O termo “bugre” não está apenas carregado de depreciação dos indígenas do Brasil. Não se limita a considerá-los brutos e atrasados. Também encerra preconceitos de outra ordem. Quando chegaram ao Brasil, os portugueses ficaram estupefatos com duas práticas dos nativos: a antropofagia e a larga difusão de relações homoafetivas, que os jesuítas chamaram de “pecado nefando”. É que, no século 11, aparecera uma doutrina nos Bálcãs que não se limitava a pregar ensinamentos maniqueístas, mas, também, a recomendar relações homossexuais. Depois de condenada, ficou conhecida como “heresia búlgara”. Quando chegaram a estas terras, os portugueses viram o que viram entre os índios e os apelidaram de “búlgaros”. Como são dados a comer letras e fonemas, os lusitanos abreviaram “búlgaros” por “bugres”. Esta é, pelo menos, a explicação que prevalece na obra clássica Casa Grande & Senzala, do antropólogo Gilberto Freyre.
Aparentemente, o comportamento dos nativos das Américas continua chocando aqueles que vieram depois. A expressão “mulher de apache” indica que ela está habituada a apanhar dos seus maridos. As feministas que chegaram ao Brasil com o objetivo de proteger os yanomami da devastação produzida pelos brancos se decepcionaram quando viram que suas mulheres são habitualmente agredidas pelos seus companheiros.
As obras de Richard Wagner foram (ou continuam sendo) canceladas em Israel porque foi considerado o músico predileto dos nazistas. Os soviéticos baniram não só o que consideravam “a arte burguesa decadente” dos modernistas, mas, também, importantes áreas da ciência, como os princípios de genética do agostiniano Gregor Mendel.
Não se pode desqualificar a arte de Picasso apenas porque ele explorava suas mulheres a ponto de apagar seu cigarro na pele de uma delas.
Não é queimando estátuas ou trocando os nomes de algumas das principais rodovias de São Paulo – como Bandeirantes, Anhanguera, Fernão Dias e Raposo Tavares –, que se vão reparar as atrocidades que os bandeirantes cometeram quando escravizaram indígenas e arrasaram a tiro e espada quilombos e quilombolas. Eles não foram apenas isso. Também aprofundaram as fronteiras nacionais, contribuíram para domar o áspero sertão e para escrever a História do Brasil, não a ideal, mas a que aconteceu.
Isso não significa que erros, preconceitos e doutrinas condenáveis, como a escravidão, o nazismo, o racismo, a homofobia, a misoginia e tantas formas de discriminação e opressão tenham de ser tolerados. Quer dizer que as pessoas não podem ser linchadas ou excomungadas, apenas, pelos seus erros ou seus preconceitos, especialmente quando esses boicotes não deixam espaço para retratações e mudanças de mentalidade.
O julgamento sobre elas tem de ser filtrado pelas circunstâncias que as envolveram e que as condicionaram, sem o que não se salvará ninguém, nem os que condenam nem os que hoje praticam a cultura do cancelamento.
*CELSO MING É COMENTARISTA DE ECONOMIA
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