Ministros divergem sobre a validade de diálogos da Operação Spoofing, obtidos de forma ilícita e atribuídos ao então juiz Sérgio Moro e a procuradores da Lava Jato no Paraná
Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – A validade das mensagens obtidas por hackers que entraram na mira da Operação Spoofing divide ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O plenário da Corte ainda não decidiu sobre a licitude dessas conversas, obtidas por um grupo criminoso que invadiu celulares de autoridades e revelou mensagens atribuídas ao ex-juiz Sérgio Moro e a ex-integrantes da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Mesmo sem uma definição sobre a controvérsia, seis ministros do STF já se manifestaram sobre o assunto em julgamentos, decisões e entrevistas concedidas recentemente. A definição sobre a validade dos diálogos como prova ou não é crucial para o legado e desdobramentos da Lava Jato.
As mensagens apreendidas na Spoofing abalaram os processos decorrentes do trabalho da força-tarefa e colocaram em xeque a atuação de Moro e de procuradores de Curitiba. O conteúdo – de origem criminosa, e, portanto, ilícita – tem sido usado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para reforçar a narrativa de que o ex-juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba agiu em conluio com procuradores e foi parcial nas investigações. Outros réus da Lava Jato também buscam se beneficiar, na esteira do petista, como o senador Renan Calheiros (MDB-AL) e o ex-governador do Rio Sérgio Cabral.
O assunto voltou à tona, em 22 de abril, no julgamento do STF em que a maioria dos ministros confirmou a decisão da Segunda Turma que havia declarado a suspeição de Moro no processo do triplex do Guarujá – Lula foi condenado nesta ação. O resultado marcou uma das maiores derrotas da Lava Jato no STF. Na sessão, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu a operação. “Prova ilícita, produto de crime, é prova ilícita e sua utilização, sobretudo para sanção de quem quer seja, é expressamente vedada pela Constituição. Trata-se de material sem autenticidade comprovada. A partir da invasão criminosa de privacidade passou-se a vazar a conta-gotas cada fragmento do produto do crime do hackeamento, para que os corruptos se apresentassem como vítimas”, disse Barroso. A Constituição prevê que “são inadmissíveis, no processo, provas obtidas por meios ilícitos”.
“Nas conversas privadas, ilicitamente divulgadas, encontraram pecadilhos, fragilidades humanas e, num show de hipocrisia, muitos se mostraram horrorizados, gente cuja reputação não resistiria a meia hora de vazamento de suas conversas privada”, afirmou Barroso.
O tom incisivo do ministro irritou Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes – expoentes da ala crítica aos métodos da Lava Jato –, que bateram boca com o colega na sessão. Em março, com os votos de Lewandowski e Gilmar, a Segunda Turma do STF declarou Moro parcial.
Naquele julgamento, Gilmar e Lewandowski listaram sete episódios para demonstrar que Moro foi parcial na ação do triplex, como a condução coercitiva de Lula, a quebra de sigilo telefônico de advogados do ex-presidente e o levantamento do sigilo da delação do ex-ministro Antonio Palocci na véspera do primeiro turno das eleições de 2018. As mensagens hackeadas foram usadas como “reforço argumentativo”.
“A utilização das referidas mensagens, como reforço argumentativo à corroboração das teses já contidas (de suspeição de Moro), revela-se, insisto, não apenas legítima, mas de indiscutível utilidade para evidenciar ainda mais aquilo que já se mostrava óbvio, isto é, que o paciente (Lula) foi submetido não a um julgamento justo, segundo os cânones do devido processo legal, mas a um verdadeiro simulacro de ação penal, cuja nulidade salta aos olhos, sem a necessidade de maiores elucubrações jurídicas”, disse Lewandowski.
Gilmar destacou que o Supremo entende que o interesse de proteção às liberdades do réu “pode justificar a relativização à ilicitude da prova”: “Na doutrina brasileira, sustenta-se a possibilidade de utilização de prova ilícita pró-réu, a partir do princípio da proporcionalidade, considerando o direito de defesa”. O terceiro voto pela suspeição de Moro veio da ministra Cármen Lúcia, que não se manifestou sobre a validade das mensagens dos hackers.
Antes de Barroso expor no plenário seu entendimento sobre a polêmica, o uso dos diálogos obtidos pelos hackers já havia sido contestado pelos ministros Kassio Nunes Marques, Edson Fachin e Rosa Weber. No julgamento da Segunda Turma sobre Moro, Nunes Marques rechaçou as mensagens, sob o argumento de que validá-las seria uma forma de “legalizar a atividade hacker” no País. “Se hackeamento fosse tolerável para meio de obtenção de provas, ninguém mais estaria seguro de sua intimidade, tudo seria permitido. São absolutamente inaceitáveis tais provas, por serem obtidas diretamente de crimes”, disse. “Essa prática abjeta de espionar, bisbilhotar a vida das pessoas, estaria legalizada e a sociedade viveria um processo de desassossego semelhante às piores ditaduras. Não é isso que deve prevalecer em sociedades democráticas.”
Fachin considerou “inconcebível” a utilização do material “sem que as dúvidas sobre sua legalidade sejam completamente espancadas”. Em entrevista ao Estadão, o relator da Lava Jato disse que não acha que prova ilícita “pode ser varrida para debaixo do tapete, agora é preciso saber o que fazer com ela”.
Inquérito no STJ
Não foi só a defesa de Lula que buscou garantir acesso aos diálogos hackeados. O material também serviu para o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, determinar, por conta própria, a abertura de inquérito sigiloso para apurar suposta tentativa de investigação ilegal de ministros da Corte por parte de procuradores da extinta força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Um dos diálogos mostrou a intenção de procuradores de investigar, sem autorização, a movimentação patrimonial de ministros. O inquérito, no entanto, acabou suspenso por Rosa Weber, o que acirrou os ânimos entre STF e STJ. Para Rosa, não é possível usar prova ilícita para condenar alguém. “Não há margem no texto constitucional que admita interpretação voltada a legitimar seu uso (das mensagens obtidas por hackers) em processo voltado à responsabilização criminal de alguém, por mais graves que sejam os fatos imputados.”
O uso das mensagens hackeadas também esbarra em relatório da Polícia Federal, que já concluiu que não é possível confirmar a autenticidade dos diálogos. No documento, a PF afirma que “a autenticidade e a integridade de itens digitais obtidos por invasão de dispositivos alheios não se presumem, notadamente quando se reúnem indícios de que o invasor agiu com dolo específico não apenas de obter como também de adulterar os dados”. O documento reforça a posição da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o inquérito do presidente do STJ, Humberto Martins.
“A regra que veda a utilização da prova ilícita em desfavor do acusado é vista como absoluta, já que não admite qualquer exceção nem mesmo em casos de crimes graves não só no Brasil, como na maior parte dos países de tradição democrática. Por outro lado, é também largamente aceita no mundo a noção de que provas ilícitas podem ser utilizadas em benefício do réu”, disse o advogado Ademar Borges, professor de direito constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Na avaliação do advogado Marcelo Knopfelmacher, defensor dos procuradores da Lava Jato, o conteúdo obtido pelos hackers, “além de ilícito, é imprestável”. “Em duas oportunidades a Polícia Federal fez constar, em laudos distintos, que o material apreendido com os hackers não pode ter sua autenticidade aferida”, ressaltou. Moro não se manifestou. O STJ, por sua vez, alegou que o inquérito aberto por Martins está em sigilo, suspenso por decisão do STF, e “não há mais nada a informar”. / COLABOROU PAULO ROBERTO NETTO
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