O convite à desistência parecia ter chegado cedo. Mas seguimos em frente
Luiz Carlos Trabuco Cappi*, O Estado de S.Paulo
Há dois anos, ao completar cinco décadas de carreira para a organização que me acolhe desde os 17 anos de idade, decidi realizar um sonho antigo: atravessar a rota de peregrinação de 12 séculos, e 779 quilômetros, que separa Saint-Jean-Pied-de-Port, no lado francês dos Pirineus, de Santiago de Compostela, na Galiza – noroeste da Espanha. Foram pouco mais de quatro semanas de caminhada ao passo de 25 quilômetros por dia, experiência que me inspirou algumas reflexões sobre a atual travessia vivida no País.
Antigamente, trilhar um dos vários caminhos que levavam a Santiago era uma maneira de pagar promessas, expurgar pecados e obter perdão divino. Hoje, não. Ninguém sabe ao certo porque trilha por aquele caminho, mas grande parte dos “caminantes” está lá para pontuar um ciclo em suas vidas. Ideia que me faz lembrar uma passagem de Nietzsche em Assim Falou Zaratustra: “A grandeza do homem consiste em que ele é uma ponte, e não fim”, já que o tempo é passagem, além do próprio horizonte da vida.
O início de qualquer travessia costuma ser o momento mais inquietante. No primeiro dia de andança, eu e Lucília, minha esposa, saímos de uma altitude de 175 metros acima do nível do mar para subirmos, a pé, até os 1.430 metros de altura do Collado Leopoeder. Em seguida, descemos a Roncesvalles, a 930 metros de altitude – 12 horas de caminhada para vencer 26 quilômetros de serra. Isso em meio à neblina pesada, temperatura baixa, tempestade de granizo e lama até as canelas em alguns trechos. O convite à desistência, comum às jornadas grandiosas, parecia ter chegado cedo. Mas seguimos em frente.
O caminho se faz etapa por etapa, é um esforço contínuo para extrair força física da mente. A travessia mimetiza a vida: começamos receosos do desconhecido. Para “chegar lá”, é preciso acordar cedo e caminhar com urgência até o próximo ponto do mapa, caso contrário, você conviverá com a incerteza de não conseguir boa comida e um teto razoável para dormir. O espaço é o mesmo para todos, você o perde ou conquista. Já o tempo é irrecuperável. Ele se esvai a cada segundo, insensível às intempéries que atrapalham a jornada.
A experiência é absolutamente individual, ainda que caminhemos o tempo todo na companhia de outras pessoas com propósito semelhante ao nosso; no entanto são entendimentos e motivações distintos. A dor e o fortalecimento do espírito são inevitáveis. Os companheiros de estrada nem sempre comungam dos nossos valores.
A imensa maioria traz histórias maravilhosas e tem empatia genuína pela condição humana. Mas há os que estão no caminho por vaidade, assim como os mal-humorados, os estúpidos e os que tiram proveito de quem quer viver sua jornada em paz.
Não obstante, logo aprendemos a aceitar o que o caminho nos dá: todos ali são resultado de suas circunstâncias. O caminho de Santiago nos ensina a ter calma e paciência, não antecipar problemas e aflições. Cada trecho inspirava pequenas alegrias e até mesmo momentos sublimes. Toda ponte nos contava uma história; a de dois lados que se uniram, em determinado tempo e espaço, para assegurar travessias seguras às futuras gerações.
Ao trazer este aprendizado à nossa realidade, creio que nós todos devemos “ser pontes”, e encarar nossa responsabilidade com as futuras gerações. Zelando pela educação infanto-juvenil, estimulando práticas ESG nas organizações ou cobrando governança e reformas dos governos, como a tributária e a administrativa, embora as vias que demandam mais estrutura neste momento são as da vacinação em massa e da preservação das vidas enfermas.
O físico norte-americano Archibald Wheeler cunhou a expressão: “Tempo é o que impede tudo de acontecer de uma vez.” Hoje, superar os desafios do presente pode parecer uma realidade distante. Mas não para quem segue acreditando no Brasil. Potencial, recursos e talentos nós temos. Que nossas lideranças se inspirem nos versos do poeta andaluz Antonio Machado, adotado na jornada até Compostela: “Não há caminho, se faz caminho ao andar”!
* PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS
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