Em uma década, Brasil teve ao menos 2 mil mortes de crianças de até 4 anos por agressão
Caso Henry, morto no Rio, mostra riscos desse tipo de violência doméstica; para cada óbito registrado dessa forma, especialistas estimam outros 20 subnotificados
Roberta Jansen, O Estado de S.Paulo
RIO – A morte de Henry Borel, de 4 anos, por espancamento não é um caso isolado de violência doméstica. Segundo levantamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), ao menos 2.083 crianças até essa idade foram mortas por agressão no Brasil, de janeiro de 2010 a agosto de 2020. Para cada caso de óbito registrado dessa forma, especialistas estimam haver outros 20 subnotificados.
Os dados de mortalidade de 2020 ainda são preliminares e não foram consolidados até o fim do ano. Mas os especialistas acreditam que o isolamento social adotado na pandemia expôs as crianças a mais violência doméstica. Em consequência, dizem, aumentaram os casos letais. O problema deve se repetir neste ano. Segundo a SBP, os autores de 80% das agressões são os pais ou responsáveis, e elas acontecem dentro de casa.
“O caso do menino Henry não pode ser ignorado e deve ser apurado com todo o rigor que a lei exige”, defende a presidente da SBP, Luciana Rodrigues Silva. “Tal barbárie deve alertar, ainda, para a existência de outras crianças e famílias que vivem dramas semelhantes que não chegam à mídia.”
As agressões estão agrupadas no Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, conforme a Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Estão entre os motivos mais comuns de morte de menores no Brasil. Somadas aos acidentes, as agressões são a principal causa de morte de crianças e adolescentes de 1 a 19 anos.
Em 2019, foram 188 óbitos por agressão na faixa etária até 4 anos – o patamar ficou próximo a 200 nos anos anteriores. No ano passado, até agosto, foram registrados 71 casos, mas os dados são preliminares.
O problema não é exclusivo do Brasil, mas global. Apareceu em levantamento da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2016. O estudo estimou que em todo o mundo 1 bilhão de crianças e adolescentes tinham sofrido violência psicológica, física ou sexual no ano anterior à coleta dos dados.
As medidas de distanciamento social, incluindo o fechamento de escolas, foram adotadas por mais de 170 países e afetaram quase 80% de toda população estudantil mundial. Fizeram a maior parte das crianças permanecer praticamente todo o tempo em suas casas. Sabe-se, por exemplo, que só em março de 2020 o Brasil apresentou aumento de 17% no número de ligações notificando a violência contra mulheres. “De maneira similar, trabalhos nacionais e internacionais destacam que, diante de um cenário de risco e vulnerabilidade social, o isolamento domiciliar expõe crianças e adolescentes a maiores conflitos e tensões e à piora da violência intrafamiliar, sem que tenham condições de denunciar esta violência ou de ela ser percebida em outros locais que a criança estaria frequentando, como a escola”, explica o presidente do Departamento Científico de Segurança da SBP, Marco Gama.
Até agosto de 2020, dados preliminares apontam 4.142 mortes de crianças e adolescentes de 1 a 19 anos – menos da metade da média dos anos anteriores. “Mas sabemos que o número de casos aumentou muito porque tivemos que pedir várias intervenções da Justiça para proteger crianças ao longo de 2020”, diz a pediatra Luci Pfeiffer, do Departamento Científico de Segurança da SBP, coordenadora do programa Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Dedica).
Desde o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, a tendência tem sido de aumento dos registros de violência contra crianças (com exceção do ano passado). “A violência sempre existiu, mas era muito encoberta”, explica Luci Pfeiffer. “As notificações só começaram a partir do ECA. Até então não se sabia nem identificar os casos.”
Ciclo de violência
Segundo especialistas, pais agressores, em geral, foram vítimas de agressão na infância. “A violência contra as crianças acontece em todas as classes sociais, em todas as culturas”, afirma Luci. “Não depende de escolaridade, religião ou etnia, é uma doença que vai passando de pai para filho. É preciso interromper essa cascata. Existe tratamento para essas famílias.”
O caso dos supostos agressores de Henry – a mãe do menino, Monique Medeiros, e seu namorado, o vereador Jairo Santos Júnior, o Dr. Jairinho – é visto como diferente. “Esse perfil é de pessoas extremamente covardes e cruéis, que sentem prazer na agressão”, diz Luci.
As agressões que resultam em morte da vítima raramente são o primeiro episódio de violência. Em geral, os maus-tratos se agravam com o tempo. “Quando uma criança é agredida nesse nível do Henry, todos à volta costumam saber”, afirma a especialista. “Não denunciam por conivência ou indiferença.”
Um dos aspectos mais chocantes do crime é que Henry teria falado sobre as agressões para a babá e a própria mãe. A avó materna e uma tia também teriam sabido da violência.
“É como se todas as esferas de proteção não funcionassem”, afirma a juíza Andrea Pachá, da 4.ª Vara de Órfãos e Sucessões do Tribunal de Justiça do Rio. “Quando a tragédia acontece e a criança aparece morta, fica tudo tão óbvio: como ninguém deu atenção às reclamações dessa criança? Vivemos numa sociedade em que os adultos não se sentem responsáveis pelas crianças. É dever do Estado, das famílias, das comunidades, de todo mundo, cuidar das crianças”, afirma ela. “Quando percebemos que o pedido de socorro circulou por essas esferas e não foi ouvido, me pergunto que sociedade é essa. Se ele não tivesse morrido, a violência ia continuar. É uma normalização da violência, como se fosse mais conveniente não acreditar, se omitir.”
Coordenador da Infância e Juventude da Defensoria do Rio, Rodrigo Pacheco concorda. “Todos têm de estar imbuídos desse espírito de proteger as crianças e, sempre que tiver notícia de alguma violência, ouvir e acreditar nas crianças”, diz. “Se alguém tivesse tentado intervir antes, a violência maior não teria acontecido’, completa ele. “Ninguém precisa sentir dor para aprender”, diz Luci.
Para entender – Lei da Palmada criou polêmica
A Lei 13.010, a Lei da Palmada, entrou em vigor em 2014 e estabelece que “crianças e adolescentes têm o direito de serem educados e cuidados sem uso de castigos físicos ou tratamento cruel ou degradante”. Ela causou polêmica porque grupos mais conservadores a viam como uma interferência do Estado na família. O presidente Jair Bolsonaro já manifestou seu apoio a castigos para crianças. “Em casa, não era bronca não, o ‘pau cantava’”, disse durante vídeo nas redes sociais em dezembro. “Saudade daquela época em que você tinha muito mais deveres que direitos.”
Como ajudar
– Sinais físicos
Hematomas frequentes e dores pelo corpo podem indicar agressão. Outros sinais de estresse e ansiedade devem ser observados, como náuseas, tonturas, vômito, taquicardia. Vale atenção a mudanças de apetite ou de sono.
– Sinais emocionais
Se uma criança se recusa a ver certa pessoa, dá as costas para ela, desvia o olhar, é preciso estar atento. O que é interpretado como birra pode ser medo. Agressividade em excesso com colegas é outro sinal. Problemas de autoestima devem ser levados a sério: podem indicar a internalização de impressões negativas passadas por adultos.
– Sinais cognitivos
Problemas de aprendizado e de rendimento escolar são frequentes em crianças agredidas.
– Escuta e denúncia
Segundo os especialistas, é preciso ouvir as crianças e levar a sério o que elas dizem. Qualquer problema ou mesmo suspeita deve ser denunciado à polícia, ao Ministério Público ou a autoridades competentes. Denúncias podem ser feitas até mesmo de forma anônima, pelo Disque 100.
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