‘É preciso recuperar a sobriedade do Itamaraty após o banho de obscurantismo que se impôs àquela Casa’; leia a crônica de Hussein Kalout
Hussein Kalout*, O Estado de S.Paulo
Olá meu jovem, como você está? Ah, sim, voltei. A causa é nobre e imperativa. Quero transmitir uma singela mensagem ao novo chefe do Itamaraty. Vamos, vamos, estou apurado! Finalmente, o inominado foi despachado para fora da cadeira que com tanta dignidade leguei a tantos sucessores. Sabe meu jovem, é preciso recuperar a sobriedade do Itamaraty após o banho de obscurantismo que se impôs àquela Casa. Tá chegando o Dia do Diplomata e dois dedos de prosa no pé do ouvido do novo incumbente serão mais do que necessários.
Note, meu rapaz, a reclamação no céu é generalizada. Nossa reputação lá no além está na lona. Os meus pares estrangeiros mal conseguem acreditar como o nosso país foi arrastado para o fundo do poço. Seja na economia, no meio ambiente e agora com essa pandemia mortífera. Ah, se é a culpa do presidente? É culpa de tanta gente que não cabe aqui tecer um tomo de consideração. Muita gente caiu no conto do vigário. Uns por opção e outros….deixe para lá! Vamos, por favor, me ajude aqui com essa caixa. O que tem nela? Acalme-se, segure a sua curiosidade, meu rapaz! No final te explico. No final!
O San Tiago Dantas me implorou a aconselhar o novo chanceler de que é preciso, urgentemente, reorganizar as linhas estratégicas da política externa. Veja, meu rapaz, o dano foi tamanho que o altíssimo está boquiaberto com nosso Brasil. A última coisa que ele quer ouvir é que “Deus é brasileiro”. Quem poderia imaginar que um país miscigenado como o nosso iria sucumbir a uma seita escabrosa como essa que se instalou no poder. É inimaginável pensar que suprematistas delinquentes tomaram conta das mais elevadas funções da nação.
O “cabeção” está em estado de revolta. Quem é o “cabeção”? É o Rui Barbosa, ora! A nossa imortal enciclopédia jurídica! Por que ele está todo “enfezado”? Você não viu o que ocorreu no Senado da República? Ele queria até vir comigo para papear com os confrades daquela Casa. Foi um ultraje o que lá ocorreu. Me sinto até constrangido em replicar as palavras do distinto Horácio Lafer. Esbravejou e com razão. Aqueles cujas família sofreram com a indignidade do Holocausto nazista estão todos revoltados em ver como o extremismo tomou conta do nosso país. Não se pode esquecer a história, meu jovem!
Repare você, até o velho portuga pernambucano veio falar comigo. Quem é ele? Ah…Oliveira Lima, um velho desafeto. Coisa do passado. Lá em cima ficou tudo superado. Aturdido com a pasmaceira que se tornou a nossa diplomacia, o velho Lima veio me pedir para alertar o novo chefe do Itamaraty que é preciso altivez e serenidade no exercício dessa difícil função. A genialidade dele me causava certa inveja. O chamavam de o “embaixador intelectual do Brasil”.
Aliás, em nossa última confraria o Luís Felipe estava com aquela cara enraivecida. Quem é? O Lampreia, meu jovem. Um sucessor meu que exerceu com recato a função de ministro do exterior. Entre conversa e outra, ele não se refutou em questionar como seria aceitar ser ministro de um presidente distópico, irascível e que afundou o país nesse descambo humanitário que o povo vive. Não é fácil, meu jovem, compor um gabinete ministerial com um cemitério de 370 mil mortos e um inapagável passivo de um Brasil totalmente desgovernado.
Argumentei, na tentativa de acalmá-lo, que deveríamos estar aliviados pela troca no nosso Itamaraty. Disse a ele que precisaríamos compreender que não cabia ao chanceler recusar tal missão. Um funcionário de Estado que dedicou 30 anos de sua vida profissional a uma instituição como é o Itamaraty, não estaria em condição de se eximir da tarefa de ajudar a sua própria Casa e seus pares da desventura que sobre eles e sobre o Brasil foi lançada. Como? Se ele estava muito bravo? Estava esbravejando. O Vasco e o Afonso tentaram acalmá-lo da agrura que dominava o seu ímpeto.
Que Vasco??? Não, não, não, não é o time de futebol da segunda divisão do futebol brasileiro, meu jovem! Se estou sabendo que eles são os fregueses do Flamengo. Ah, meu jovem, disso o universo inteiro sabe. Aliás, nos convescotes da brasileirada o pessoal da fuzarca não quer saber de futebol. Quando o mestre Ziza e o Didi Folha Seca começam a falar do “Mais Querido do Brasil”, os vascaínos logo se escondem. Quem é o seu Didi? Não, meu jovem, não é humorista de “Os Trapalhões”. Como diz o hilário Mussum da Mangueira em nossas rodas de mé: “a ignorância reina a galopis no Brasil…cacildes!” Conheces da televisão. Entendi! Enfim, voltemos ao nosso foco. Falei do Vasco Leitão da Cunha. Um diplomata conservador e de bom tirocínio. Não é um desses conservadores mequetrefes de hoje em dia, meu jovem!
Ah, quer saber quem é o Afonso…? Isso? É o Arinos de Mello Franco. Foi chanceler do Jango, o último presidente antes do regime militar inaugurado em 1964. Os generais? O que tem? Estão pê da vida com o presidente atual? Não é para menos, estavam ou estão sendo arrastados pelo atual mandatário para fundo do buraco. Soube que caiu toda a cúpula da Defesa do país em 24 horas. Santo Deus, quanto desatino. O Caxias está em polvorosa. Caixa? Que caixa? Não, esquece a caixa. Segura a sua curiosidade. Falo de Duque de Caxias, o patrono dos Verde Oliva, o Exército Brasileiro. Ah… o quê? O presidente disse que é dele o Exército? O quê…? Chamou de “seu”, foi? Não é possível! As Forças Armadas são patrimônio do povo brasileiro. Coitado do presidente Ernesto…tá enlouquecido com o tenente Bolsonaro. Ah, é capitão?! Certo! Araújo..? Não, não é o inominável. Esse tem muita conta a prestar ao altíssimo! Falo do presidente Geisel. Enfim, deixa para lá…
Como será a minha conversa como novo Chanceler? Direi ao França, se consignar essa intimidade é claro, o que penso com toda franqueza. Embaixador de onde? Da França? Não, meu rapaz. Falo do meu sucessor, o embaixador Carlos França. O Evandro Lins e Silva disse que seria uma loucura aceitar ser ministro do exterior de um homem com pouco apreço pela democracia e pelo Estado de direito.
O Domício da Gama, arguto como é, sublinhou que seria ato de acovardamento se o jovem embaixador França tivesse recusado a designação. Recusar a missiva, alertou Domício, lançaria em desgraça o indicado junto ao próprio presidente e ainda junto aos seus companheiros de carreira. Não somente seria chutado para fora do Palácio do Planalto como assessor presidencial, mas, seria posto ao relento.
Quando defrontados com a tentativa de compreender como é aceitar servir a um presidente da República cujo seu confesso projeto internacional, desde o nascedouro, se esmerava na destruição do corolário doutrinário da nossa política exterior e na refundação dos cânones de regerem a nossa diplomacia desde os tempos do Conselho do império, é de fato escabroso. Se passou pela cabeça dele quais seriam as consequências? Penso que sim! A seu favor, cabe alegar que se cercou de duas boas cabeças. Juntou a experiência com a capacidade de formulação. Indicou um bom secretário-geral para as relações exteriores e competente diplomata para a chefia de gabinete. Mas, o problema é se terá autonomia e independência para trabalhar.
Não irei me furtar em lhe transmitir a mensagem de Ítalo Zappa: “não se esqueça da África”. Será preciso tirar da inércia a nossa relação bilateral com os países daquele continente. Pois, não podemos negar a nossa ancestralidade. Precisamos lembrar de onde viemos e quem somos! Ah, e o Simon me indagou outro dia sobre os nossos crassos erros na América do Sul. Disse-me com todas as letras que estamos à deriva. Quem é o Simon? É o Bolívar, meu jovem. Conhecido como “El Libertador” de Américas. O que? Amigo de Chávez? Não creio que sejam, meu jovem. Não creio. Se o Brasil demorar a recobrar a sua capacidade de atuar no xadrez sul-americano, será tarde e o vácuo por nós deixado não será mais recuperado. Quem não lidera em sua própria região, não liderará em lugar algum, meu jovem! Sempre buscamos ser os promotores da paz e indutores do desenvolvimento em nossa vizinhança. E hoje já padecemos do respeito de nossos irmãos sul-americanos. É muito grave, meu jovem! É o maior risco estratégico ao interesse nacional!
Chegamos, Chegamos! Me ajude a descer, por favor! Essa minha protuberância é um caso sanitário! Ah…se eu vou falar com o Presidente sobre a crise sanitária?! Ah, não! Deste Senhor eu já desisti. Não há a menor condição! Espero que o Brasil acorde logo e veja o descalabro em que virou a República.
Pegue a caixa também. O que há nela? És um curioso teimoso! São três livros para o meu novo sucessor. Talvez ele já os tenha lido. Mas, não custa revisitá-los. Um deles é do melhor chanceler que o Brasil nunca teve o privilégio de ter. A Diplomacia na Construção do Brasil de Rubens Ricupero. Uma grande obra! O outro é do mestre dos mestres: Casa Grande e Senzala. Do imortal Gilberto Freyre. Ah, como? Se é comunista? Oh, céus! E o último é Raízes do Brasil do magnífico Sérgio Buarque de Holanda.
Sabe, meu jovem, está na hora de devolver ao Itamaraty o mínimo de integridade e ao ofício de ministro do exterior a sua devida dignidade! O Brasil está exaurido de tanto desvario. Grato e até breve, meu jovem!
*HUSSEIN KALOUT, é cientista político, professor de Relações Internacionais e pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018).
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