Primeiras teorias sobre a inflação no Brasil eram como a cartografia primitiva
Gustavo H.B. Franco, O Estado de S.Paulo
Ressurgiram recentemente as preocupações com a inflação e, ainda mais assustadoras, as “despreocupações” com a inflação, vale dizer, as mensagens pelas quais a inflação não é um problema assim tão sério. Um perigo.
Diante desse quadro, antes que seja tarde demais, me ocorre registrar algumas velhas e sábias lições de batalhas anteriores, antes que caiam no esquecimento.
Três lições me parecem particularmente importantes e atuais. Não são as únicas, longe disso, mas o espaço é limitado, vamos focar:
1. A inflação não está obsoleta, não há imunidade decorrente de contágio e cura no passado;
2. Não existe inflação do bem, não há justificativa plausível para o uso de drogas pesadas que fazem mal à saúde; e
3. A inflação é uma doença da moeda. Nada a ver com a jabuticaba ou com o Tratado de Tordesilhas.
Sobre a primeira lição, a velha analogia com o alcoolismo continua válida: não existe cura, apenas abstinência. O organismo ficou estragado. A esse respeito vale o registro de testemunhas idôneas: o presidente do nosso Banco Central vai todos os meses a Basileia, simpática cidade na Suíça, no centro de uma fronteira tríplice com a França e a Itália, onde está localizado o Banco de Compensações Internacionais, entidade que congrega os principais bancos centrais do planeta, senta-se na roda entre seus pares de outros países e diz: “Sou do Brasil, me chamo Roberto Campos Neto, e estamos limpos há um quarto de século”.
Ninguém nessa roda deixa de levar o depoimento muito a sério. Todos tiveram a sua adolescência monetária e sabem como funciona: você precisa lutar no espaço que vai até os 10% ao ano, pois daí para os 100% é só um empurrãozinho até a cracolândia. Não se pode enganar quem conhece esse caminho.
A segunda lição, sempre atual, é que não existe inflação que favoreça o desenvolvimento ou que ajude a reduzir a pobreza e a desigualdade: a inflação é sempre o pior jeito de financiar qualquer gasto público, pois é um imposto sobre o pobre.
A sempre oblíqua defesa da inflação se expressa na acusação pela qual a “austeridade” (há grande esforço para importar esse vocábulo, a fim de ganhar apoios de observadores no exterior) é um passo na direção do “Estado mínimo”. Mas esse palavreado nunca “pegou”.
É fácil enxergar, na verdade, um Estado obeso capturado por uma plêiade de parasitas e aproveitadores sempre às voltas com a proteção de seus espaços.
Pode parecer apenas uma cretinice imaginar políticas de combate à pobreza com recursos produzidos pela tributação do pobre, não é uma inconsistência inocente, mas uma das muitas explicações para a obesidade do Estado.
Sobre a terceira lição, vale lembrar que as primeiras teorias sobre a inflação no Brasil eram como a cartografia primitiva: roteiros para a imaginação muito mais que representações científicas e confiáveis da verdadeira geografia.
No decorrer do tempo, emergiram teorias imaginosas que tomavam emprestadas à engenharia duas palavras que mudariam para sempre nossa maneira de olhar a inflação brasileira, que passava a ser “estrutural” ou “inercial”, talvez as duas juntas!
Esse palavreado conferia uma charmosa complexidade ao fenômeno, que deixava de pertencer às más intenções de governantes vigaristas utilizando-se da mágica de fabricar papel pintado ou impulsos magnéticos para pagar suas contas, e passava ao domínio de criaturas temíveis, como os monstros que ilustravam os espaços vazios dos mapas de antigamente.
Esses dois tipos de inflação eram incuráveis. A “estrutural” nos levava a discutir a identidade nacional e defeitos de fabricação sobre os quais não há o que fazer. A “inercial” levava ao desafio de alterar o passado, eis que as determinações deste, através da indexação, eram inexoráveis.
Nenhum desses dois tipos de inflação era fenômeno monetário, segundo se dizia. Em 1994, não obstante, acabamos com as duas com uma reforma monetária.
* EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS
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